Em 1857 os Cipaios, indianos que integravam as tropas da Companhia das Índias, revoltaram-se contra os seus amos. Na Inglaterra essa revolta dos “bárbaros” causou uma onda de espanto, terror e ódio que a imprensa se encarregou de espalhar e em alguns casos aumentar com detalhes inventados. Karl Marx, correspondente do New York Tribune, jornal americano com a maior circulação no mundo, escreveu um artigo em que evidenciou a hipocrisia histórica das classes dominantes em relação à violência consoante esta é praticada pelos seus pares ou pelos dominados. Hoje quase poderíamos reproduzir linha por linha este artigo em relação com o que se vive na Palestina.
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As atrocidades cometidas pelos cipaios(1) em revolta na Índia são, de facto, terríveis, hediondas, indizíveis – daquelas que só se está preparado para ver nas guerras insurrecionais, nacionais, raciais e, acima de tudo, religiosas; numa palavra, daquelas que a respeitável Inglaterra costumava aplaudir quando perpetradas pelos vandeanos(2) contra os “azuis”(2), pelos guerrilheiros espanhóis contra os infiéis franceses, pelos sérvios contra os seus vizinhos alemães e húngaros, pelos croatas contra os rebeldes vienenses, pela Garde Mobile de Cavaignac(3) ou pelos decembristas de Bonaparte(4) contra os filhos e filhas da França proletária.
Por muito infame que seja o comportamento dos cipaios, ele é o mero reflexo, concentrado, do próprio comportamento da Inglaterra na Índia, não só do comportamento que teve na época da fundação do seu Império do Oriente, mas mesmo do dos últimos dez anos, de domínio já bem estabelecido. Para caracterizar esse domínio, basta dizer que a tortura constituía um instituto orgânica da política financeira. Há, na história humana, a noção de retaliação: e uma sua regra histórica é que quem forja o instrumento da retaliação é quem ofende, não quem é ofendido.
Quem desferiu o primeiro golpe contra a monarquia francesa foi a nobreza, não foram os camponeses. A revolta indiana não começou pelos ryots (camponeses), que os britânicos torturaram, desonraram e despiram, mas pelos cipaios, que eles vestiram, alimentaram, acarinharam, engordaram e mimaram. Para encontrar paralelos para as atrocidades dos cipaios, não é preciso, como pretendem alguns jornais londrinos, recuar à Idade Média, nem sequer afastar-nos da história da Inglaterra contemporânea. Basta estudar a primeira guerra chinesa, um acontecimento praticamente de ontem. Ali, os soldados ingleses cometeram abominações por mero divertimento; as suas paixões não eram nem santificadas por algum fanatismo religioso, nem exacerbadas pelo ódio a uma raça prepotente e conquistadora, nem provocadas pela resistência tenaz de um inimigo heroico. Mulheres, violadas; crianças, empaladas; aldeias inteiras, incendiadas: tudo não passou de desporto gratuito, não merecedor de nota nem dos mandarins nem dos próprios oficiais britânicos.
Mesmo ante a presente catástrofe, seria erro sem apelo supor que a crueldade estivesse inteiramente do lado dos cipaios, e todo o leite da bondade humana corresse do lado inglês. As cartas dos oficiais britânicos estão eivadas de maldade. Um oficial, de Peshawar, escrevendo sobre o desarmamento do 10º de cavalaria irregular, por não ter atacado o 55º da infantaria nativa, apesar da ordem recebida, exulta não só por o regimento ter sido desarmado, mas também por terem tirado aos homens casacas e botas e, depois de darem 12 dinheiros a cada um, os terem posto em marcha até à margem do rio, metido em barcos e mandado Indo abaixo, esperando o autor, com gozo, que cada um dos filhos da mãe tenha a oportunidade de se afogar nos rápidos. O autor de outra carta informa-nos de que alguns habitantes de Peshawar, que tinham causado alarme noturno ao fazerem explodir pequenas minas de pólvora em honra de um casamento (um costume nacional), na manhã seguinte foram amarrados, e “levaram umas chicotadas de que não se vão esquecer tão cedo”.
Houve notícias de Pindee: três chefes nativos estavam a conspirar. Sir John Lawrence respondeu, mandando uma mensagem em que ordenava a um espião que fosse assistir à reunião. Lido o relatório do espião, Sir John Lawrence enviou uma segunda mensagem: “Enforquem-nos”. Os chefes foram enforcados.
Um funcionário público de Allahabad escreve:
“Temos nas nossas mãos o poder de vida ou morte; e garantimos-lhe que não andamos a poupá-lo.”
Outro, da mesma localidade:
“Não passa dia sem que penduremos uns dez a quinze deles (não combatentes).”
Um oficial escreve, eufórico:
“O Holmes é uma rocha, pendura-os à dúzia.”
Outro, aludindo ao enforcamento sumário de grande número de nativos:
“Aí é que começámos a curtir”.
Um terceiro:
“Fazemos conselhos de guerra a cavalo, e, todos os pretos que encontramos, ou os enforcamos ou os fuzilamos.”
De Benares ficamos a saber que trinta zamindares(5) foram enforcados pela mera suspeita de simpatizarem com os seus próprios compatriotas, e incendiaram-se aldeias inteiras com o mesmo argumento. Um oficial de Benares disse, em carta que The London Times imprimiu, que
“As tropas europeias ensandeceram no confronto com os nativos.”
E convém não esquecer que, enquanto as crueldades dos ingleses são relatadas como atos de vigor marcial, contadas com simplicidade e rapidez, sem perder tempo em pormenores repugnantes – já as atrocidades dos nativos, chocantes como são, ainda são deliberadamente exageradas. Qual a origem, por exemplo, do relato circunstancial das atrocidades perpetradas em Deli e Meerut, que começou por ser publicado em The Times e depois andou por toda a imprensa londrina? Um cónego cobarde, residente em Bangalore, Mysore, a mais de mil e quinhentos quilómetros de distância do local da ação, a voo de abelha. Os relatos autênticos chegados da própria Deli mostram que a imaginação de um cónego inglês é capaz de gerar horrores maiores do que a mais fértil fantasia de um revoltoso hindu. Narizes, seios, etc. cortados, numa palavra, as horríveis mutilações cometidas pelos cipaios, são evidentemente mais revoltantes para o sentimento europeu do que se um secretário da Sociedade da Paz de Manchester arremessar projéteis a arder sobre casas em Cantão, ou se um marechal francês mandar incinerar vivos árabes enclausurados numa caverna, ou se o conselho de guerra mandar esfolar vivos soldados britânicos pelo método do gato de nove caudas ou outro qualquer dispositivo filantrópico usados nas colónias penitenciárias britânicas. A crueldade tem, como tudo, as suas modas, que mudam com o tempo e o lugar. O grande erudito que foi César narra sem rodeios como mandou cortar a mão direita a muitos milhares de guerreiros gauleses. Napoleão teria vergonha de o fazer: preferiu despachar os seus próprios regimentos franceses, suspeitos de republicanismo, para S. Domingos, para aí morrerem às mãos dos negros e da peste.
As infames mutilações cometidas pelos cipaios fazem lembrar as práticas do Império Bizantino Cristão, as disposições da lei penal do Imperador Carlos V e a punição por alta traição dos ingleses, tal como registada ainda pelo Juiz Blackstone. Para os hindus, cuja religião fez deles virtuosos na arte da autotortura, tais torturas infligidas aos inimigos da sua raça e do seu credo parecem naturais, devendo parecer ainda mais naturais aos ingleses, que, poucos anos mais tarde, ainda costumavam fazer receita nos festivais do Juggernaut(6), protegendo e ajudando aos ritos sangrentos de uma religião de crueldade.
O rugido frenético do “Times dum raio”, como Cobbett lhe costumava chamar – no seu papel de personagem furiosa numa das óperas de Mozart, que, em melodiosos acordes, acaricia a ideia de primeiro enforcar o seu inimigo, depois assá-lo, a seguir esquartejá-lo e empalá-lo e, por fim, esfolá-lo vivo – na sua redução da paixão da vingança a farrapos e trapos – tudo isto pareceria mera tolice se, sob o pathos da tragédia, não se divisassem claramente os truques da comédia. O London Times exagera no seu papel, e não apenas por pânico. Fornece à comédia um tema que nem Molière viu, o do Tartufo da Vingança. O que ele quer é simplesmente pôr a escrita a render e dar cobertura ao Governo. Como Deli não caiu, ao contrário das muralhas de Jericó, ao simples sopro de vento, afogue-se John Bull até às orelhas em gritos de vingança para ele se esquecer de que o seu Governo é responsável pelo mal que se engendrou e pelas dimensões colossais que o deixou tomar.
Notas da tradução
(1) Cipaios: Soldados indianos do exército inglês (e de outros exércitos europeus) na Índia.
(2) Vandeanos e azuis: No seguimento da revolução francesa de 1789-92, o movimento contra-revolucionário da Vendeia opôs, em 1793, a reacção monarquista (“brancos”) aos republicanos (“azuis”) no Noroeste de França.
(3) Garde Mobile de Cavaignac: A guarda nacional móvel, força paramilitar comandada pelo general Cavaignac, que teve papel primordial no esmagamento da revolta operária nas jornadas de Julho de 1848 em Paris.
(4) Decembristas de Bonaparte: recrutados no lumpen de Paris, membros de uma sociedade criada em 1850 para agitar a favor do Presidente da República, Luís Bonaparte, ameaçado pelos monarquistas.
(5) Zamindares, “proprietários de terra”, membros da aristocracia fundiária na Índia.
(6) Juggernaut ou Jaganatha, “senhor do mundo”, deus hindu (Krishna). Nas grandes festas em sua honra, os fiéis atiravam-se em sacrifício religioso para debaixo do rodado, que os esmagava, dos gigantescos carros ornamentados que carregavam em procissão as imagens do deus.