Que ele viva ou morra, Ariel Sharon acaba de deixar o cenário político israelense. Recorrendo a um americanismo, “Ele é o último dos epígonos de 1948”. Que significa isto: Bem, ele é o último dos últimos soldados-políticos que tomaram parte na chamada guerra de Israel pela Independência ou, como é apelidada em hebraico, guerra da libertação. A liberação seria do mandato britânico sobre a Palestina, ou liberação do território de Israel das mãos não-judias. Foi também a guerra que significou jogar em campos de refugiados muitos habitantes dessa região, os palestinos, onde estes permanecem até hoje, na ocupada Palestina, na Jordânia e no Líbano.
Os antecedentes de Ariel Sharon, como o de todos os demais da mesma laia que participaram da guerra de 1948, transitavam na chamada esquerda da política de Israel, e não na direita, segundo muitos entendem, por causa de sua postura ultra -direitista.
Sharon fazia parte da geração conhecida como primeira aliá (a) ou imigração para a Palestina no século 19. Sua mãe era russa, e estou certo de que foi em seu colo que ele absorveu a arrogância e a superioridade sionistas que moldaram sua personalidade para o resto da vida.
Sua ficha militar é bem conhecida, sua autoconfiança e sua indiferença quanto a opinião de outrem e não a sua impediram-no de atingir o posto de qualquer outro general israelense com seu registro manchado de sangue teria conseguido, o de chefe-de-estado-maior. A primeira-ministra de seu tempo, Golda Meir(b) a quem cabia fazer esta designação, com muita propriedade afirmou, “Se eu o fizer chefe-de-estado-maior ele cercará meu gabinete com tanques de guerra!” Ao que Sharon peremptoriamente retrucou “Aqueles que não me desejam como chefe-de-estado-maior me terão como primeiro-ministro”. Ele estava certo.
Recordo-me, antes de conhecer algo a respeito da historia de Sharon, de minha primeira reação ao vê-lo na TV. O homem deixou-me preocupado, se é possível detectar o mal através de uma tela de TV, então foi o que me aconteceu. Lembro-me de uma quinta-feira de setembro de 1982 durante a guerra do Líbano, quando Sharon, na qualidade de ministro da defesa, enganou o primeiro-ministro israelense Menachen Begin(c) ao iniciar a ofensiva, prometendo que seria uma guerra limitada que o levaria a apenas 40 km dentro do Líbano, para desalojar Yasser Arafat e seus combatentes da Organização Palestina de Libertação.
Vejamos. Beirute fica a bem mais de 40 km. da fronteira de Israel. E naquela quinta-feira Sharon fez a aviação de Israel bombardearr aquela cidade impiedosamente. A pequena força aérea libanesa consistia de somente alguns caças Hawker britânicos há muito varridos do ar pelo que é inquestionavelmente a melhor força aérea do mundo. Foi um massacre.
À medida que o exército israelense avançava a mídia de Israel fazia o mesmo. Os repórteres apareciam na TV em uniformes militares, pois como reservistas tinham sido recrutados para o serviço militar. A rádio estava divulgando vividamente breves registros noticiosos nos exatos momentos em que estavam acontecendo no espaço aéreo sobre Beirute. Eis uma cidade totalmente indefesa que estava sendo pulverizada, bloco de apartamento após bloco de apartamentos. O acontecimento mereceu um telefonema de Ronald Reagan, o presidente dos Estados Unidos, solicitando a Begin para parasse com o terrível bombardeio, mas naturalmente, como é sabido, o pior estava para acontecer.
Num sábado, o serviço internacional da BBC afirmou que “notícias estavam chegando sobre o número de mortos num campo de refugiados palestinos no Líbano”. (Não é uma citação direta). Era como eu, o mundo e Menachem Begin primeiramente ouvimos falar de Sabra e Shatila(d), campos de refugiados cujos nomes para sempre estariam ligados ao de Ariel Sharon. As imagens de corpos ensangüentados e deitados sobre ruínas, permanecerão eternamente gravados em meu espírito.
Os massacres de Sabra e Shatila foram perpetrados pelas milícias cristãs maronitas libanesas. As forças maronitas estavam sob o comando direto de Elie Hobeika (e), que mais tarde se tornou membro do parlamento libanês, alcançado a posição de ministro do gabinete nos anos 1990s. As milícias eram comandadas por Israel com o objetivo de localizarem e expulsarem os membros da OLP(f). Enquanto estava ocorrendo o massacre, os campos permaneciam cercados por soldados israelenses. O comandante das forças de Israel era Ariel Sharon. Ele permitiu que a chacina acontecesse, e era óbvio que tinha trabalhado estreitamente com as milícias maronitas.
Realizou-se um inquérito ao final recomendando-se que Sharon fosse demitido do posto de ministro da defesa e que nunca mais ocupasse qualquer ministério. Sharon recusou-se a sair, forçando Begin a demiti-lo algo que Begin recusava fazer. Para Begin, a despeito de Sharon lhe haver mentido e enganado, este ainda era um herói de Israel porque, em 1973, na guerra do Iom Kipur(g) ele abertamente desobedeceu à ordem de seu superior e cruzou o Canal de Suez, operação esta considerada como a salvação de Israel de uma derrota.
Eu ouvi dizer que se o evidente desconhecimento de tal ordem tivesse acontecido no exército britânico o militar em questão, não importa qual fosse o resultado de sua ação ou sua patente, seria disciplinado. Mas Sharon foi em frente. Da mesma forma, sua ameaça de tornar-se primeiro-ministro equivale a um evidente desconhecimento da recomendação judicial de que após os eventos de Sabra e Shatila ele não devia de novo ocupar cargos políticos. Proclama-se, todo instante, que Israel é a única “democracia” do Oriente Médio, e nas democracias supõe-se que ninguém está acima da lei, exceto se Israel não estiver em causa e o nome do provocador e tirano não seja Ariel Sharon.
A guerra do Líbano desfalcou mais de 600 famílias israelenses de um marido, de um pai, de um irmão, gerou inúmeros terrivelmente mutilados e milhares de civis libaneses mortos ou feridos. Para Israel, a incursão no Líbano não acrescentou absolutamente nada; para os palestinos foi ainda pior. A despeito de todo o derramamento de sangue de ambos os lados, os Acordos de Oslo etc., eles ainda estão retidos nos campos de refugiados e Israel não desfruta de paz.
Todas as metas que Sharon alcançou foram às custas de vidas de outros, fossem eles judeus ou árabes. E foi desta forma que em 28 de setembro de 2000 o capítulo final da saga de Ariel Sharon começou. Naquele dia,
Sharon, então líder da oposição, fortemente guardado por soldados israelenses e policiais, adentrou a mesquita Al-aqsa (fancês: Al-Aksa) em Jerusalém.
Foi um gesto calculado para provocar uma reação irada da população muçulmana, que considera a mesquita o terceiro lugar mais sagrado do Islã, e com isto ele gerou exatamente a reação que Sharon desejava, mais violência, e a frágil paz que prevalecia entre Israel e os palestinos se transformou na segunda Intifada. Isto efetivamente levou às eleições em Israel e à promessa que Sharon tinha feito aproximadamente há 30 anos de que um dia estaria à frente do governo se realizou.
Os anos de Sharon como líder principal de Israel têm sido dos piores na curta historia deste jovem país. Os palestinos têm sofrido mais ainda e comem o pão eu o diabo amassou. A lista de atrocidades cometidas contra eles é longa e tem sido documentada em artigos anteriores neste website. Foram violentamente submetidos ao talante de Sharon a aceitarem a difícil solução de dois estados que não funciona. A retirada de Sharon da faixa de Gaza deixou os residentes desta região sem ganho real, mas levou o mundo capitalista a saudar Sharon como o “Um homem da paz”. Todas as coisas terríveis que ele tem feito no seu passado têm sido convenientemente esquecidas, simplesmente porque neste mundo pós-9 de novembro qualquer pessoa deste mundo burguês, vista como combatente do terrorismo, tem suas transgressões passadas convenientemente perdoadas. Conforme um comentarista sarcasticamente afirmou, se ele, Sharon, pudesse ter continuado com sua política sem dúvida teria recebido o prêmio Nobel da paz!
Na frente interna, as coisas tampouco andaram bem durante o mandato de Sharon. A economia estagnou. Os ricos tornaram-se muito mais ricos, e dos seis milhões de habitantes de Israel, um milhão e meio vivem agora abaixo do nível de pobreza, criando-se o maior divisor entre ricos e pobres no mundo ocidental. Cozinhas de sopa para os pobres surgiram por todo o país. 75% dos pobres não têm condições de adquirir os remédios de que necessitam. Crianças judias vão para a cama com fome todas as noites nesta terra onde supostamente manava leite e mel.
Sim, leite e mel existem abundantemente, mas apenas para aqueles que podem adquiri-los. No Reino Unido onde criei-me, às vezes diziam-me não-judeu:. “O que admiramos em seu povo é a forma como cuidam uns dos outros”. Isto ainda é verdade lá fora, mas não mais em Israel. A introdução de um acabado sistema econômico de livre-mercado, com privatização em larga escala, no regime de Sharon desembocou numa sociedade do salve-se quem puder.
Ironicamente, essa atitude pode ser a razão determinante do estado de saúde em que se encontra Sharon. A notória arrogância que ele tem demonstrado por toda sua vida tem-se tornado norma aqui. Por breve período depois do derrame que o acometeu, alguns médicos alegaram que se registrara um diagnóstico falho após o primeiro distúrbio circulatório que ele sofreu três semanas antes e que o levou à presente condição.
No entanto, o mito que rodeia este homem ainda permanece. Um seu amigo afirmou, “Não há maneira alguma de ele vir a findar seus dias assim. Estou certo de que se recuperará e terminará seus dias em seu rancho, não desta maneira”. Nas escolas, pede-se às crianças que lhe escrevam cartas desejando-lhe o restabelecimento.
Lembra-nos como pessoas da ex-URSS choravam quando souberam que Stalin tinha morrido. Aquela gente poderia ser perdoada, porque na paranóica sociedade que Stalin criara a maioria, à época de sua morte, não sabia a verdade a seu respeito. Ela, a exemplo da maioria daqui, via Stalin como “o pai da nação”.
Israel, por outro lado, constitui uma sociedade muito aberta e todo mundo sabe a história deste homem, mas é o medo que o sionismo tem incutido na população que a deixa cega quanto ao quem é ele e o que realmente fez. Como todos os tiranos, a história o julgará, e pode-se apenas alimentar a esperança de que o povo do estado de Israel venha a enxergar esse homem pelo que realmente foi, assegurando-se de que nunca mais se erga.
Tradução de Odon Porto de Almeida. O original – Ariel Sharon – myth and reality - e esta tradução circulam no website britânico http://www.marxist.com/.
N. do tradutor - (a) Em hebraico, subida ou ascensão.Termo originalmente de uso religioso, é também empregado para designar a imigração dos judeus para a chamada Terra de Israel. (b) Líder trabalhista israelense. Nasceu em 1898, falecendo aos oitenta anos de idade. Primeira-ministra. Nasceu na Rússia e educou-se nos Estados Unidos onde foi professora. Emigrou para a Palestina em 1921. (c) Nasceu na Rússia em 1913 e faleceu em 1992. Líder do movimento armado sionista. Imigrou para a Palestina em maio de 1942, alistando-se no corpo do exército polonês do general Anders então no Médio Oriente. Em 1944, Begin iniciou uma revolta subterrânea executando operações terroristas contra as tropas britânicas na Palestina com o objetivo de lá estabelecer a sonhada pátria sionista dos israelenses. Direitista, foi parlamentar e primeiro-ministro. (d) Dois campos refugiados no Líbano, compreendendo respectivamente 12.000 e 25.000 habitantes. Onde, de 16 a 18 de setembro de 1982, milícias cristães libanesas, sob os olhares passivos do exército de Israel comandado por Sharon, várias centenas de refugiados foram massacradas. (e) Elias Joseph Hobeika (1956-2002) Cristão maronita e político libanês. Como aliado de Israel, figura como um dos responsáveis pelos massacres das aldeias de Shabra e Shatila. (f) Organização de Libertação da Palestina. Fundada em 1971. (g) Em hebraico, significa o “Dia da Expiação”. Assinalado pelo jejum do 10 do mês Tishri. É o dia mais sagrado do calendário judaico.