Os trabalhadores da Flaskô marcham rumo aos cinco anos de controle operário e o Movimento das Fábricas Ocupadas do Brasil realizará, em junho, um Tribunal Popular para Julgar a Intervenção Federal contra os trabalhadores da Cipla e Interfibra.
Em 12 de junho de 2003, ou seja, há quase cinco anos atrás, os trabalhadores da Flaskô tomaram uma decisão histórica: resolveram assumir o controle administrativo, financeiro e operacional da fábrica para defender seus empregos e direitos, além do próprio local de trabalho, as máquinas e equipamentos. Decidiram ocupar a empresa e colocá-la a produzir sob controle deles mesmos.
Os trabalhadores resolveram por fim à exploração dos patrões que, durante décadas, puderam construir um patrimônio particular luxuoso, ao ponto de não necessitarem mais da produção fabril para transmitir aos seus descendentes a riqueza gerada pelo trabalho alheio.
Assim, durante os anos 90 e início da década de 2000, percebe-se que o único intuito é a pilhagem. Os investimentos são cada vez mais escassos e todo um setor de produção é desmantelado (que produzia pequenas tampas plásticas para as garrafas de cachaça de uma tradicional empresa do setor).
Além disso, perdem-se clientes e fornecedores sem nenhum tipo de explicação, o maquinário começa a virar sucata e os mecânicos e ferramenteiros são obrigados a extrair peças de uma máquina morta para recuperar outra, num processo conhecido como canibalismo. Passo a passo, as demissões e a sonegação de direitos dos trabalhadores tornam-se realidade.
E não era somente na Flaskô que isso acontecia. Durante a década de 90, o Brasil conheceu a mais alta taxa de desemprego de sua história. Os direitos sociais e trabalhistas foram atacados. O país sangrava para atender aos programas do Fundo Monetário Internacional (FMI). O pagamento de juros da dívida externa, as privatizações, a abertura comercial e financeira acirraram a especulação e o processo de fusões e aquisições e acentuaram o monopólio das multinacionais sobre a economia brasileira, geraram crises, desemprego e precarização das condições de trabalho e de vida.
Não é à toa que em 2002 ocorrem dois fatos aparentemente paralelos, mas que são complementares para explicar a dinâmica da luta de classes no Brasil. Para ser mais preciso, em outubro de 2002, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luís Inácio Lula da Silva vence as eleições presidenciais no segundo turno, numa votação recorde. Enquanto isso, em Joinville (uma cidade do Estado de Santa Catarina - sul do país), os trabalhadores da Cipla e da Interfibra se colocavam em greve por salários e direitos atrasados.
A relação entre as equações foi intensamente discutida pelos trabalhadores das duas empresas:
"Assim, uma greve para receber salários se transformou numa greve para salvar os empregos. Para isso, colocou a questão do controle operário sobre as fábricas. E em seguida colocou a questão da responsabilidade dos governos sobre as crises e sobre a manutenção dos empregos. Os operários decidiram que não aceitavam ser descartados quando os patrões não tinham mais o que sugar, porque os operários não são responsáveis pelo mercado, pelas falcatruas e nem pela política econômica aplicada a serviço do capital financeiro e das multinacionais. Isso colocou a questão da estatização e, na seqüência, a necessidade de uma ação operária para salvar o parque fabril que está sendo liquidado pela política imperialista. Ao encarar desde um ponto de vista da classe a questão, os operários ergueram-se em defesa da nação ameaçada e de todo o povo sofrido do Brasil. Daí surge a orientação de luta sintetizada na palavra de ordem "fábrica quebrada é fábrica ocupada e fábrica ocupada deve ser estatizada"[1].
Mais à frente, pode-se ler:
"... o povo trabalhador foi capaz de reunir suas forças após anos de massacre e expulsar FHC (ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - NDR) e seu candidato do poder. A vitória de Lula abriu uma situação em que a classe trabalhadora se sente forte para ir buscar o que lhe pertence ou a defender o que já conquistou"[2].
A partir daí, a história da classe trabalhadora brasileira não seria (e não é) a mesma. Trata-se de duas experiências inéditas que não se esgotaram, mas já têm muito a ensinar.
A Flaskô, que se localiza na cidade de Sumaré (interior do Estado de São Paulo) é ocupada meses depois. Os trabalhadores amargavam três meses sem salários e ficaram sabendo da experiência da Cipla e Interfibra. As três empresas faziam parte do mesmo grupo de patrões. Uma reunião é marcada no sindicato que representa a categoria e os operários da Flaskô decidem participar da Marcha à Brasília que os trabalhadores da Cipla organizavam. Na volta da viagem, a caravana passa pela Flaskô. Uma assembléia aguarda o informe e se convence que a única saída é ocupar, resistir e produzir! Além de lutar pela nacionalização sob controle operário!
Breve histórico
A Flaskô é uma fábrica de transformação de plástico. Produz vários modelos de embalagens industriais, chamados de tambores ou bombonas. Tem cerca de 90 trabalhadores atualmente, mas chegou a ter 600 em seu auge. Foi fundada no final dos anos 70 e pertencia à Corporação Holding do Brasil (CHB).
A CHB também era dona das marcas Cipla e Interfibra e integrou o Grupo Hansen Industrial S.A. até 1992, ano da partilha de bens familiar ocasionada pela morte de João Hansen Júnior (sócio fundador). Luís Batschauer (que era casado com Eliseth Hansen) e seu irmão Anselmo assumem a CHB, mas perdem a massa de capital do Grupo Hansen necessária para a modernização tecnológica.
Assim, enquanto as outras empresas do grupo cresciam, a CHB começa a definhar as fábricas sob seu comando. No entanto, os trabalhadores da Flaskô não assistem a tudo isso passivamente. Há registros de greves em 1994 e 1997 contra a jornada de até 12 horas, baixos salários e não cumprimento de acordos trabalhistas. Porém, uma mudança significativa na fábrica só foi possível após a ocupação e o estabelecimento do controle operário.
Dívidas sufocam os trabalhadores
Não foi fácil retomar a produção e não tem sido fácil manter a fábrica funcionando para garantir empregos e salários. Os patrões deixaram a Flaskô completamente endividada e sem possibilidades de crédito. Todo o parque fabril está penhorado pela justiça devido a dívidas deixadas pelos antigos proprietários. Cerca de 80% dessas dívidas são com órgãos públicos, feitas através da sonegação de impostos e tributos! O restante é cobrado por empresas que comercializavam com a fábrica e por ex-trabalhadores que saíram sem receber as devidas indenizações. Também há dívidas com a companhia que fornece energia elétrica e todo mês é sempre um sufoco conseguir dinheiro para pagar as contas. Ao todo, a dívida gira em torno de R$ 230 milhões (US$ 135 milhões).
A grande questão é que os trabalhadores não são responsáveis pelas dívidas herdadas, afinal, eles também tiveram seus direitos sonegados e estão lutando para recuperá-los. No entanto, todos esses problemas foram jogados nas costas dos operários.
Aliás, analisar o papel do Judiciário nesses casos revela a verdadeira natureza das leis que regem o Brasil. Quando os trabalhadores solicitam uma autorização legal para gerir a empresa em nome do Conselho de Fábrica ou de uma Associação de Trabalhadores, o pedido é negado. Porém, no momento de executar uma ação contra a fábrica, procuram os representantes dos operários para que aceitem a retirada de máquinas ou a penhora de faturamento da empresa!
Sem falar na incrível "coincidência" de ações e leilões marcados pela justiça em meio à gestão operária: ela nunca tinha sido tão eficiente na fiscalização e cobrança quando os patrões comandavam a Flaskô e a colocaram à beira do desastre! No entanto, sobre os operários, o Judiciário não pára de cobrar e perseguir as lideranças.
Em todos esses anos, centenas de processos, leilões de máquinas e equipamentos e ações de execução de penhora de faturamento tiveram que ser barrados pela mobilização dos trabalhadores e seus apoiadores. Sabemos que se uma máquina for levada embora ou se o faturamento da fábrica for destinado ao pagamento de dívidas deixadas pelos antigos patrões, não há como manter os empregos. Por isso, nas faixas e palavras de ordem, os trabalhadores sempre pedem: "Parem os leilões, queremos trabalhar em paz"! "Se leiloar vai desempregar, se arrematar não vai levar"!
Porém, mais do que barrar esse ou aquele processo, os trabalhadores sempre buscaram uma trégua. Querem que a justiça suspenda os ataques, enquanto exigem do governo Lula uma solução que possa garantir todos os empregos e direitos.
Nesse sentido, conseguiram estabelecer um acordo com a Justiça do Trabalho que, é claro, não resolve o problema dos ex-funcionários e nem dos atuais, mas ao menos alivia a pressão. Todo mês, 1% do faturamento da fábrica é destinado à Justiça do Trabalho para que seja possível quitar pouco a pouco a dívida.
Assim, somente após o controle operário e a dura batalha pelo emprego é que os ex-trabalhadores estão conseguindo receber as indenizações que os patrões lhes haviam negado! Muitos aguardaram mais de dez anos para receber um direito que os patrões haviam roubado e, com certeza, não receberiam nada se não fosse a determinação dos operários em manter a Flaskô aberta.
No entanto, inúmeras ações judiciais continuam a perseguir os operários. Já estão detectados outros três leilões de máquinas e equipamentos solicitados pela Fazenda do Estado de São Paulo e mais três pedidos de penhora de faturamento da Fazenda Nacional. Os processos federais chamam mais a atenção porque estão anexados boletins e jornais dos trabalhadores que comprovam que a fábrica está funcionando e que, portanto, a justiça tem condições de executar a penhora. Além disso, o juiz tem extrapolado o próprio valor solicitado pela Fazenda. Se o pedido é de 2% do faturamento, o juiz eleva para 10% e até 30%.
Quem acompanha o Movimento das Fábricas Ocupadas, sabe que isso pode significar uma nova e selvagem tentativa de acabar com a experiência de controle operário, afinal, a Cipla e Interfibra sofreram uma intervenção judicial a partir de uma ação movida por um ente do Estado Nacional.
Além disso, pesa sobre a fábrica o enorme gasto com energia elétrica. Se um trabalhador deixa de pagar por três meses sua conta de luz, a companhia corta o fornecimento. Mesma coisa pode acontecer com a Flaskô que, devido às condições herdadas, é obrigada a realizar o pagamento no limite das ameaças de corte. Todo mês, durante esses cinco anos, é o mesmo drama! Mas, não é só isso. Após intensas mobilizações e negociações, a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL, privatizada em 1997) aceitou parcelar a dívida deixada pelos patrões. Então, todo mês, além de pagar o que se consome, paga-se pela inadimplência dos antigos proprietários!
Por diversas vezes, os operários tiveram que parar a produção e cercar o poste de energia elétrica para evitar que os funcionários da CPFL efetivassem a ordem de corte. Quando isso acontecia, a empresa não tinha outra alternativa a não ser negociar com os trabalhadores da Flaskô. Porém, os capitalistas também aprendem com a luta de classes. Semanas antes da tentativa de estender para a Flaskô a intervenção federal decretada contra a Cipla, a CPFL instala um equipamento no poste que permite o corte no fornecimento de energia a longa distância, ou seja, de dentro de seus escritórios, os gerentes da companhia podem acionar o sistema e desligar a luz da fábrica!
E o tão temido corte de energia elétrica à distância de fato aconteceu com a tentativa de intervenção em meados do ano passado. Os trabalhadores resistiram durante mais de 40 dias, no escuro, sem ter como produzir e, portanto, sem receber salários, mas resistiram. Conseguiram impedir a tentativa de intervenção, renegociar a dívida com a CPFL e voltar a produzir, porém sob condições ainda mais difíceis.
Outro caso que ameaçou os empregos diretamente foi a tentativa de retirar a principal máquina da Flaskô feita pela justiça a pedido da Braskem, multinacional do setor petroquímico em 2005. Mas, após uma forte campanha de denúncia e apelo, a multinacional aceita a proposta de acordo feita pelos operários de pagar 0,5% do faturamento ao mês em troca de manter a máquina na fábrica. Pesou nessa decisão, a ameaça dos trabalhadores de ocupar a sede administrativa da Braskem em São Paulo para fazer valer os seus direitos.
As conquistas
O mais incrível é que em meio a tantas ameaças e ataques, foi e continua sendo possível conquistar direitos. Máquinas, equipamentos e instalações foram recuperados e a fábrica foi reorganizada para melhorar as condições de trabalho, evitar o desperdício, aumentar a produtividade e diminuir o índice de refugo das peças. Praticamente todo o material plástico descartado no processo de produção é cerrado e moído e retorna às máquinas como matéria-prima reciclada. Destaca-se também o trabalho do comitê "Desperdício Zero" e a conquista da certificação internacional ISO 9001.
O clima na fábrica é o mais democrático possível. Sugestões e críticas surgem todos os dias e o Conselho de Fábrica eleito pelos trabalhadores reúne-se uma vez por semana para deliberar as propostas e realizar o planejamento de tudo, desde a compra de matéria-prima, até a saída do produto e o desconto do título. A ata das reuniões é publicada nos murais e, pelo menos uma vez por mês, a assembléia vota o orçamento e toma as principais decisões.
Não há terceirizações e nenhum outro tipo de subcontratação e todos recebem acima do piso salarial definido pelo Contrato Coletivo de Trabalho. O índice de sindicalização na fábrica é alto e os trabalhadores participam das campanhas salariais do sindicato e buscam repassar para si mesmos os reajustes obtidos coletivamente pela categoria química em sua luta contra os patrões.
Porém, o mais significativo é a redução da jornada de trabalho. No segundo ano de controle operário, a jornada foi reduzida de 44 para 40 horas semanais, sem redução nos salários e sem queda de produtividade. Assim, os trabalhadores conquistaram o sábado livre, para ter mais tempo de descanso e lazer com a família e amigos. Agora, no quinto ano de ocupação, a jornada no setor de produção acaba de ser reduzida de 40 para 30 horas semanais! Os operários e trabalhadores do chão de fábrica cumprem apenas 6 horas diárias, mas se comprometeram em assembléia a continuar cumprindo com a programação da fábrica. Por enquanto, as 30 horas semanais são em caráter experimental, pois além de beneficiar os trabalhadores, a decisão foi tomada levando-se em conta a difícil situação da fábrica, que necessita reduzir gastos com energia elétrica para continuar sobrevivendo.
No entanto, esses e outros fatos demonstram apenas uma única coisa: que os patrões são desnecessários na sociedade, não passam de uma classe social parasitária. Se os trabalhadores são capazes de gerir democraticamente e recuperar uma fábrica sem necessidade dos patrões, visando seus próprios interesses de classe e não o lucro, então podem dirigir todas as fábricas, terras e bancos! Podem controlar o país e o mundo para que a riqueza produzida coletivamente seja igualitariamente distribuída!
Cercada de solidariedade
A comunidade que vive ao redor da Flaskô não está alheia ao que se passa com os operários. A fábrica, que já era ponto de referência por estar localizada numa área densamente povoada, é motivo de curiosidade e orgulho. A luta dos trabalhadores estimula a consciência e a participação popular e se entrelaça aos anseios, necessidades e combates da própria comunidade.
Um grande problema na região é o de moradia. As habitações são precárias e os aluguéis pesam sobre o orçamento familiar. Os programas governamentais de construção de casas populares são praticamente nulos.
Por isso, junto com os operários, centenas de famílias resolveram preencher com suas próprias vidas um terreno abandonado que pertencia à Flaskô. Resolveram construir suas casas numa área que antes estava vazia e que, por isso mesmo, servia até de sepultura para as vítimas do tráfico de drogas e da violência policial.
As famílias discutiram com o Conselho de Fábrica e ficou decidido que uma parte dos lotes seria cedida aos próprios trabalhadores e o restante seria dividido entre a população disposta a ocupar o terreno. Hoje já existe um bairro lá, chamado de Vila Operária e Popular, com cerca de 300 famílias, que se mobilizaram junto com a Flaskô para conquistar rede de energia elétrica, coleta pública de lixo e sistema de água e esgoto. Aliás, a luta pelo saneamento básico continua até hoje, assim como a luta pela regularização dos lotes. O terreno ainda é considerado particular, mas os operários e a população reivindicam a posse definitiva dele para fins de moradia.
Além disso, no final de 2007, foi selada uma parceria entre a Flaskô e a Associação de Moradores do Parque Bandeirantes, região onde se localiza a fábrica. O antigo restaurante da fábrica é agora sede da Associação, que desenvolve dezenas de projetos sociais, culturais e esportivos. Em um barracão desativado, por exemplo, hoje ocorrem aulas de capoeira e foi instalado um tatame para a prática de judô. Assim, em cada mês, milhares de crianças, jovens, idosos, homens e mulheres da comunidade passam pela fábrica e sabem que o espaço é fruto da luta operária.
Também já está bem adiantado o projeto de instalação de uma rádio comunitária. Vai se chamar "Rádio Luta" e sua antena será colocada no alto da caixa d`água da fábrica. Assim, apesar da baixa potência do transmissor, o sinal terá grande alcance. Isso sem falar no blog e na rede de e-mails que semanalmente atualizam as informações para todo o Brasil.
Destinos ligados ao da revolução venezuelana
Em outubro de 2005, o Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO) participou da organização de um Encontro Latino Americano de Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores que reuniu representantes de 13 países, 20 centrais sindicais e 235 empresas sob controle operário em Caracas, capital da Venezuela. Houve um caloroso debate sobre qual seria a saída para essas empresas, em que prevaleceu a proposta de luta pela nacionalização, impulsionada pelo próprio presidente Chávez na abertura do evento.
A Declaração Final do Grupo de Discussão de Empresas Recuperadas elaborou frases marcantes, tais como: "cada fábrica fechada é um cemitério de postos de trabalho assim como também é o latifúndio no campo. Por isso, os trabalhadores da cidade e do campo têm direito de ocupar as fábricas e as terras para defender seu trabalho e a soberania dos nossos povos. Por isso, ocupamos as empresas e as fizemos produzir".
"Eles fecham as fábricas, nós abrimos. Eles roubam as terras e nós ocupamos. Eles fazem guerras e destróem nações, nós defendemos a paz e a integração soberana dos povos. Eles dividem e nós unimos. Porque somos a classe trabalhadora. Porque somos o presente e o futuro da humanidade".
Além disso, no final desse Encontro, foi assinado um acordo entre a Petroquímica da Venezuela (Pequiven) e o MFO, no qual o governo Chávez se comprometia a enviar carregamentos de matéria-prima para a Cipla, Interfibra e Flaskô em troca de técnicos e especialistas brasileiros que pudessem colaborar no projeto Petrocasa. O projeto consiste na construção de "fábricas socialistas" capazes de produzir materiais plásticos para a construção de casas populares.
A Cipla possuía tecnologia e know-how nesse setor de "casas de plástico" e já havia apresentado um plano ao governo brasileiro e ao de Cuba, mas foi na Venezuela que o projeto saiu do papel. A primeira Petrocasa foi inaugurada em junho de 2007 e está prevista a construção de mais fábricas como essa, a fim de diminuir o déficit de moradia na Venezuela nos próximos anos.
Para o Brasil, o primeiro carregamento de matéria-prima chegou em 2006 e ajudou sobremaneira as fábricas ocupadas. Os trabalhadores puderam respirar fundo para continuar o combate que se tornava cada dia mais sufocante. Já o segundo lote de matéria-prima ficou retido no porto, pois virou alvo de disputa entre o MFO e o interventor, até que a justiça brasileira decidiu destinar o material para a Cipla, como forma de sustentar a intervenção federal.
No entanto, esse duro golpe não foi capaz de romper os laços existentes entre o MFO e a revolução venezuelana. Pelo contrário, de dentro do governo Chávez foram enviados votos de solidariedade aos trabalhadores e de discordância quanto à intervenção. E no movimento operário venezuelano, a reação dos companheiros da FRETECO contra a intervenção na Cipla foi imediata e consistente. Já o MFO se dedica hoje a impulsionar no Brasil a campanha internacional "Tirem as Mãos da Venezuela", destacando as iniciativas antiimperialistas e sociais do governo Chávez e, principalmente, o papel da classe operária para o triunfo da revolução.
É importante destacar ainda que, em todos esses anos, o MFO organizou diversos encontros e eventos para debater a luta em defesa dos empregos, dos direitos, da reforma agrária e do parque fabril, divulgando as ocupações de fábrica e agregando apoiadores por todo o imenso território brasileiro. As três conferências nacionais e o Encontro Pan Americano de 2006, com seus milhares de participantes e convidados internacionais, suas propostas e resoluções sintetizam a importância desse movimento para a classe trabalhadora latino-americana e de outras partes. Mostrou que a unidade da classe trabalhadora é possível e necessária para derrubar o imperialismo e seu sistema de exploração e guerra.
A luta pela estatização sob controle operário e a intervenção federal na Cipla
Desde o início das ocupações, em 2002, o caminho adotado pelos trabalhadores da Cipla, Interfibra e Flaskô e que inspirou outros milhares de operários e militantes foi o da luta pela estatização sob controle operário.
Foram três Marchas à Brasília, capital do país, com caravanas saídas do Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste exigindo a estatização das fábricas ocupadas, a reestatização das ferrovias, dos minérios e de tudo o que foi privatizado, além de reforma agrária e outras bandeiras.
Fruto dessas mobilizações, o presidente Lula se reuniu com os representantes dos trabalhadores e designou a formação de um Grupo de Trabalho para analisar a situação das fábricas ocupadas. Apesar de afirmar que "a estatização está fora do cardápio do governo", prometeu fazer de tudo para salvar os empregos e solicitou ao Ministério do Trabalho e da Previdência e junto a técnicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a elaboração de um relatório que pudesse apresentar uma solução para o caso.
Os técnicos do BNDES realizaram o estudo sugerido pelo presidente e apresentaram um relatório em fevereiro de 2005, onde se pode ler:
"Entretanto, o peso maior e absolutamente sufocante do passivo dessas empresas, como se sabe, é com as instituições federais e estaduais (tributos, encargos, etc). Frente ao tamanho deste passivo (mais de R$ 500 milhões ou US$ 294 milhões) em relação ao parque produtivo e as possibilidades de produção e faturamento, mesmo projetadas, impõem-se apenas uma solução para salvar as fábricas em questão e estes mil empregos.
Nossa sugestão é de que, por decisão do governo federal e do governo estadual, seus créditos sejam transformados em ações, que seriam postas como capitalização do BNDES.
Para encerrar, entendo que é um caminho difícil, mas factível, e entendo também que a única forma de realizar o que parece central neste caso (a manutenção dos empregos) exige que os entes públicos assumam o controle destas empresas através de seus bancos de desenvolvimento social, o BNDES e entes estaduais".
A partir daí, os argumentos contrários à estatização caíram como um castelo de cartas e o presidente Lula passa a recusar uma nova audiência com os representantes dos trabalhadores para discutir a conclusão do relatório técnico do BNDES. E não foi por falta de cobrar! Em junho de 2005, os trabalhadores da Cipla, Interfibra, Flaskô e Flakepet andaram a pé por quilômetros de distância erguendo faixas e bandeiras, junto com mais de 20 mil camponeses do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas nem a estatização e nem um plano de reforma agrária foram anunciados!
Além disso, apesar de ser re-eleito em 2006 pelo voto popular, contra o candidato preferido pela burguesia, a composição do governo piora. Lula e o PT se aproveitam da alta popularidade alcançada pelos cinco anos de crescimento econômico - que garante lucros extraordinários a empresários e banqueiros, ao mesmo tempo em que difunde uma série de políticas sociais compensatórias a milhões de pobres e amplia o crédito aos trabalhadores - para formar uma coalizão com partidos e políticos tradicionais da direita. Vários ministérios e cargos de comando são fatiados "aos aliados".
Os movimentos sociais reivindicatórios ou de esquerda perdem amplitude, devido à sensação de que o país está indo bem, e acabam virando alvo de calúnias e repressões... Chegam a ser penalizados como se realizassem atividades criminosas. Ao mesmo tempo, são "convidados" a colaborar com o governo. Repressão e cooptação andam juntas como faces da mesma moeda e com as fábricas ocupadas não foi diferente. O governo e seus agentes insistiram anos e anos para que os trabalhadores do MFO abandonassem a exigência de estatização sob controle operário, enquanto a burguesia subia o tom de voz e se reforçava a ponto de clamar por repressão em 2007.
A conquista da jornada de trabalho de 30 horas semanais, sem redução nos salários, obtida pelo controle operário na Cipla e Interfibra, além do acordo de colaboração com o governo Chávez atuam como gota d`água que transborda o copo. São medidas insuportáveis para os patrões brasileiros.
Em janeiro de 2007, aparece uma reportagem no maior jornal do país, com uma frase do presidente da Federação da Indústria do Estado de São Paulo (FIESP):
"A ajuda de Chávez, que apóia esse tipo de ocupação na Venezuela e em outros países da América Latina, desagrada a setores tradicionais da indústria. Para a FIESP, esse tipo de cooperação caracteriza ingerência em assuntos internos brasileiros. "A Fiesp respeita a soberania nacional e não reconhece nenhum tipo de ingerência política de outro país nas questões internas brasileiras", diz Paulo Skaf, presidente da entidade. "A opinião do presidente da Venezuela pertence única e exclusivamente a ele e não é entendida como referência para qualquer tipo de atitude a ser tomada no Brasil".
Já em maio, semanas antes da intervenção, a ABIPLAST (associação patronal da indústria de plástico) escreve no editorial de seu boletim:
"No Brasil, segundo noticiaram recentemente os jornais, o governo venezuelano apóia ocupações de indústrias de plásticos que foram assumidas por operários. Já são três (Cipla, Interfibra e Flasko) as empresas que recebem apoio na forma de compra subsidiada de matéria-prima vinda da Venezuela.
É absolutamente inaceitável esse tipo de intromissão de um governo estrangeiro em qualquer empresa brasileira. Cabe aos empresários e também ao governo brasileiro denunciarem, com todas as forças e em todas as instâncias, o quanto absurda e descabida é a interferência de um governo estrangeiro em negócios de empresários brasileiros.Em razão dessas atitudes, é imprescindível que os empresários e a sociedade civil de forma geral, organizem um manifesto de repúdio contundente a esse tipo de prática antes que isso se torne cotidiano e prejudique a democracia. Precisamos resgatar a indignação diante da interferência em nossos interesses, com o risco de sermos coniventes e passivos em demasia com esse nível de intromissão".
Nesse mesmo mês de maio, como parte de um dia nacional de luta convocado pela CUT, MST e outras organizações, os trabalhadores da Cipla, Interfibra e Flaskô ocupam as sedes regionais do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Querem o fim das ações judiciais contra as fábricas ocupadas e saem até com um compromisso assinado pelos representantes do órgão em Joinville.
Porém, uma dessas ações que os trabalhadores queriam barrar é utilizada como pretexto para a fraude judicial que decretou a intervenção federal em 31 de maio de 2007. O INSS, entidade ligada ao governo nacional, negou o pedido dos operários de suspender a cobrança de dívidas deixadas pelos antigos patrões e um juiz federal de Santa Catarina nomeia um interventor para assumir o controle da Cipla. A decisão judicial segue em segredo, enquanto se reúnem as forças policiais capazes de empossar o interventor e destituir o Conselho de Fábrica num violento golpe.
Cerca de 150 homens da Polícia Federal e da Polícia Militar de SC chegam fortemente armados em carros de combate na porta da Cipla e impedem os trabalhadores ligados ao Conselho de Fábrica de entrar para trabalhar. Destituem o pessoal eleito em assembléia e lideranças do chão de fábrica, que haviam dirigido a empresa com tanta luta, durante quase cinco anos, para colocar um interventor no lugar. O pedido dos empresários se concretiza, sob a conivência do governo Lula.
Tribunal Popular para Julgar a Intervenção
Teoricamente, a missão do interventor é "reestruturar" a Cipla para fazê-la pagar pelo débito deixado com o INSS desde 1998. Porém, mais de um ano já se passou e até agora os cofres públicos não viram nem a cor do dinheiro e nem irão ver porque a intervenção não é técnica, é política! Desde o início, o ataque está concentrado na retirada das conquistas da gestão operária. Logo na primeira semana, a jornada de trabalho retorna às 44 horas semanais. A segurança foi terceirizada. O clima torna-se o pior possível. Não há liberdade de reunião. Mais de 400 trabalhadores já foram demitidos e não receberam as indenizações. Os salários não são pagos integralmente, etc.
Ao mesmo tempo, uma campanha de calúnias se espalha através da imprensa burguesa. Saúdam o interventor e destilam ódio contra as lideranças operárias que estão sem emprego e sem salário. Tentam quebrar os militantes e a camada de trabalhadores mais avançada da Cipla e Interfibra.
Mas a resposta é imediata! Começam a chover mensagens de indignação de todo o Brasil e de várias partes do mundo na cabeça do juiz e do governo Lula. Manifestações em frente às embaixadas brasileiras no exterior são organizadas pela Corrente Marxista Internacional. Alguns dias após a intervenção, um ato é realizado em frente à Cipla, com centenas de pessoas de várias partes do Brasil, além de militantes de fábricas ocupadas da Venezuela, Argentina e Paraguai.
A intervenção busca se estender para a Flaskô, com base na mesma decisão judicial de SC, mas desta vez, os trabalhadores não serão pegos de surpresa e o interventor não está acompanhado pela polícia. Ele pensou que a Flaskô iria se render, depois dele ter tomado a Cipla, mas encontrou um sólido piquete e teve que se retirar.
Porém, o interventor não desistiu e adotou outra tática: a sabotagem. Ao contrário das outras ocasiões, a CPFL não comunicou a ordem de corte de energia elétrica e não aceitou se reunir com os representantes dos trabalhadores para renegociar, pois agora, para a CPFL, era o interventor que respondia pela fábrica. Após uma longa queda de braço, que durou mais de 40 dias, os trabalhadores conseguem religar a luz, mas são obrigados a aceitar compromissos ainda mais difíceis de cumprir.
Por fim, em agosto do ano passado, os trabalhadores reassumem a Flaskô, mas em outras condições. A estatização foi recusada de maneira brutal pelo governo que os operários ajudaram a eleger por duas vezes e as dificuldades administrativas e financeiras se avolumam. Mesmo assim, os trabalhadores da Flaskô marcham rumo aos cinco anos de controle operário.
O Movimento das Fábricas Ocupadas, no entanto, não irá abandonar a Flaskô e não deixará que a intervenção federal seja esquecida. Por isso, convoca para os dias 27 e 28 de junho um Tribunal Popular para Julgar a Intervenção. Estarão no banco dos réus o interventor, o juiz, os patrões e o governo e, com base em fatos, provas e depoimentos, um júri popular irá julgar e declarar sua sentença. Que seja feita a justiça dos trabalhadores!
Enfrentar a burguesia é tarefa de toda a classe trabalhadora
O apoio de toda a classe trabalhadora nacional e internacional na defesa da fábrica ocupada Flaskô e do MFO do Brasil é fundamental. Afinal, não é possível enfrentar a propriedade privada dos meios de produção e o aparato do estado burguês com 70, 100 ou mil operários. É preciso milhões!
Muitos trabalhadores, militantes e suas organizações já se mobilizaram para sustentar essa trincheira avançada da luta socialista. Ao mesmo tempo, os operários mobilizados sempre ajudaram outros setores a se levantarem contra a exploração.
Há uma frase popular que afirma: "eu sou brasileiro e não desisto nunca"! No caso das fábricas ocupadas, é a mais pura verdade. E não se trata de um e sim de milhares! A classe trabalhadora do país é numerosa e organizada e soube prestar a sua solidariedade ao Movimento das Fábricas Ocupadas em diversos momentos. Ao mesmo tempo, em todos os grandes (e também em vários pequenos) combates da classe trabalhadora, dos sem-terra e da juventude, o Movimento das Fábricas Ocupadas esteve presente.
E se as fronteiras nacionais são pequenas para o capitalismo mundial e o massacre sobre a classe trabalhadora ocorre em todos os cantos do planeta, então a luta de uma fábrica ocupada só tem sentido como parte integrante do exército do proletariado internacional. Não existe socialismo num só país, muito menos em uma fábrica ou em uma porção delas. Por isso, o presente e o futuro do MFO do Brasil estão ligados à revolução venezuelana, latina e internacional. E é por ela que o Movimento das Fábricas Ocupadas resiste e luta!
[1] Serge Goulart, apresentação do livro "Fábrica quebrada é fábrica ocupada e fábrica ocupada é fábrica estatizada", página 14.
[2] Idem, página 17.