“Toda reação alimenta e reforça os elementos do passado histórico em que a revolução desferiu um golpe sem ter conseguido aniquilá-lo” (L. Trotsky)
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Nós marxistas advertimos, desde o primeiro dia, que o governo de Gabriel Boric está dançando ao ritmo da direita. Desde o segundo turno da eleição presidencial denunciamos a utilização populista da questão da imigração e da segurança pública na campanha. Com este tipo de agenda repressiva ele pretende ganhar o apoio de setores moderados ou despolitizados, subtraindo-os à direita. No fim das contas, só leva mais água ao moinho da reação e da ultradireita. Na semana passada, sob o impulso de uma lei do gatilho conivente para os carabineiros, conhecida como Lei Nain-Retamal, o presidente Boric lidera uma política ultrapassada de traições e reviravoltas.
A Lei Nain-Retamal, que leva o nome de dois carabineiros mortos em serviço, entre várias medidas, endurece as penas aos que agridam ou matem um policial. O aspecto mais reacionário desta lei é a “legítima defesa privilegiada”, que estabelece a presunção de racionalidade quando um policial usar sua arma em serviço. Ou seja, facilita a impunidade para os carabineiros enquanto as vítimas de disparos durante a explosão social de 2019 continuam sem receber justiça. Durante a tramitação legislativa, o executivo introduziu algumas moções para moderar este último aspecto. Os partidos da coalizão de governo, a Frente Ampla (FA) e o Partido Comunista (PCCh), se opuseram ao artigo sobre a “legítima defesa privilegiada” e ameaçaram recusar o projeto no Tribunal Constitucional, mas vacilaram sob a pressão da conjuntura em torno de outro policial morto na noite antes da votação, enquanto o governo promulgava apressadamente a lei para deixar fora de jogo esse possível movimento oficialista.
O governo desencadeia forças que, em última análise, não pode controlar. Pavimentaram o caminho para a reação e para um regime autoritário mais descontrolado.
Um governo reformista?
A coalizão oficialista formalmente se compõe da FA e do PCCh, chamada de Apruebo Dignidad (um nome obsoleto depois de consumada a rejeição do rascunho da constituição) e, embora mantenha os comunistas em alguns postos importantes, está afastando cada vez mais o peso do governo para figuras da ex-Concertación, com as quais mantém uma aliança conjuntural. No momento de sua posse, Boric designou como ministro da Fazenda a Mario Marcel, ex-presidente do Banco Central e próximo ao Partido Socialista (PS), que está estabelecendo uma política de ajustes e de “responsabilidade fiscal”. Mais recentemente, o poder factual recai na nova ministra do interior, Carolina Tohá, ex-presidenta do Partido Por la Democracia (PPD), contaminada por escândalos de financiamento irregular da política e uma figura emblemática dos 30 anos da Concertación.
Em dezembro de 2021, quando Boric ganhou as eleições, explicamos imediatamente que este era um governo de conciliação de classes:
“Em todo caso, Boric sequer apresentou um programa de reformas profundas. Fala-nos de responsabilidade fiscal e de mudanças a ‘passos lentos, mas firmes’. Em seu programa insiste: ‘Nosso governo terá como prioridade recuperar uma trajetória de consolidação fiscal confiável, com uma redução gradual e sustentada do déficit fiscal estrutural’. Quer se mostrar com um bom administrador dos negócios da classe capitalista e assim acalmar a burguesia. Sua mensagem aos capitalistas é que ‘necessita-se sanear a fratura social para que o país possa crescer´” (Chile: La movilización del voto obrero y popular derrota al candidato pinochetista)
O “programa transformador” de Apruebo Dignidad prometia, entre outras coisas, saúde universal; pensões dignas e o fim das administradoras privadas dos fundos de pensões (AFP); educação gratuita, pública e de qualidade, avançando na desmunicipalização; e ser um governo ecologista e feminista. Para realizar as mudanças profundas oferecidas, colocava-se que era fundamental assegurar o financiamento, apoiado em uma reforma tributária. Mas isto foi frustrado com a votação inesperada contra esta reforma no Parlamento, que incluía, por exemplo, um aumento da Pensão Garantida Universal. O governo acreditava que moderando seu programa iria apaziguar a direita, e esta lhe deu as costas.
Outra política fundamental para o governo e, em particular, para o Partido Comunista, é a Lei das 40 horas, que pretende satisfazer uma demanda histórica da classe trabalhadora em torno da jornada de trabalho. O projeto foi negociado durante meses em reuniões entra a Central Unitária dos Trabalhadores (CUT), nas mãos do PS, os empresários, parlamentares de direita e o governo. O resultado permite a flexibilização trabalhista, tão desejada pelos capitalistas, que coloca os trabalhadores em uma situação desvantajosa frente às decisões unilaterais dos patrões.
Da dissolução e refundação à reforma e financiamento
Apesar de ter sido prometido acabar com a infame Lei Antiterrorista e com a militarização do território ancestral mapuche, estas não foram interrompidas; pelo contrário, foram aprofundadas. Com este governo continuam sendo aprovadas prorrogações do estado de exceção em províncias da chamada “Macrozona Sul”. Além disso, foi estabelecida outra política de militarização no norte, dando atribuições extraordinárias a militares no controle das fronteiras.
A questão agora é: para quando ocorrerá a militarização da “Macrozona Centro”? Senadores do PS já se anteciparam com esta ideia, propondo o estado de exceção para combater o narcotráfico e a delinquência em Santiago e Valparaiso. Esta iniciativa no momento não obteve eco no governo, mas mostra a ladeira resvaladiça em que nos encontramos ante a incapacidade do povo trabalhador de impor suas demandas na rebelião de outubro de 2019, e também da direita empresarial de controlar completamente a situação.
Na comuna de Santiago Centro, a prefeita comunista, Iraci Hassler, já implementa uma política de segurança pública, caracterizada pela perseguição do comércio ambulante e pela repressão aos estudantes secundários. Por outro lado, as estações do Metrô dispõem agora de uma “guarda tática” contra as invasões. Em última instância, quem se beneficia politicamente disto? Serão beneficiados os prefeitos e candidatos de direita que perseguem uma política reacionária mais consequente.
Como produto do desprestígio do parlamento, há uma municipalização da política. Este é um fenômeno que, em parte, é produto da herança da ditadura militar, que acabou com os direitos sociais assegurados pelo Estado e transferiu a administração das políticas públicas aos municípios e aos prefeitos designados.
A última estratégia anunciada pelo executivo é um plano de segurança em 30 comunas, que concentram um terço da população e 50% dos delitos violentos. Também foi anunciado que será retomado o uso da submetralhadora UZI pelos carabineiros, que havia sido restringido depois do assassinato com esta arma do adolescente de 16 anos de idade Manuel Gutiérrez durante os protestos estudantis de 2011.
Esta geração de reformistas e pós-modernos passou de exigir a refundação dos Carabineiros do Chile e a dissolução das Forças Especiais durante a revolta, para logo fazer campanha de reformas e modernização ainda hoje no poder para facilitar a impunidade e financiar esta polícia criminosa.
Adotaram a agenda policial e repressiva da direita. Já o havíamos dito em novembro de 2020:
“Ante a crise dos Carabineiros fala-se de uma necessária reforma. O executivo (governo de Piñera) assinalou quatro projetos fundamentais: Modernização, Proteção dos policiais, Carreira policial e, eventualmente, um Ministério de Segurança Pública. Propõe-se a revisão dos protocolos e a profissionalização. Já não surpreende que alguns parlamentares da esquerda reformista ou da Frente Ampla, que votaram as leis repressivas, agora estão cantando no ritmo destas reformas ‘modernizadoras’. Nós marxistas não alimentamos nenhuma ilusão sobre estas reformas” (Que passa en carabineros de Chile).
A raposa como guarda do galinheiro
A experiência do combate às drogas no México e na Colômbia demonstra que a militarização e o aumento do financiamento das polícias só aumentam o número de vítimas inocentes (Sobre la violência y como combatirla realmente). O armamento termina nas mãos de bandos de criminosos, como já é o caso no Chile com as armas “perdidas” a partir de arsenais das forças armadas e de Carabineiros. Recordemos que Carabineiros é a instituição mais corrupta do país. O “pacogate” é a maior fraude em toda a história do Chile, avaliada em 35 bilhões de pesos. E sem esquecer os milhares de abusos policiais, entre assassinatos, torturas e mutilações, desde a revolta de 2019 e continuamente no Wallmapu. Esta é a polícia que deve ser financiada e blindada com a impunidade?
As relações corruptas com o Estado e o Capital são parte constitutiva de uma atividade tão lucrativa quanto o narcotráfico. Uma “guerra às drogas” produz um rearranjo das relações entre as quadrilhas criminosas e o Estado, favorecendo um grupo que depois desloca violentamente outro grupo, mas a corrupção permanece. O aumento da violência entre as gangues e com os Carabineros é um sintoma dessa fricção aguda em desenvolvimento. A polícia é mais uma peça nessa guerra pelo controle do tráfico de drogas.
A pandemia, os altos e baixos políticos e as migrações em massa perturbaram o equilíbrio anterior relativamente pacífico entre comércio internacional, instituições e grupos criminosos. Isto continuará a intoxicar o povo e a juventude, até que se alcance novamente um novo equilíbrio, que continue a assegurar discretamente os lucros dos militares, dos empresários e dos burocratas do Estado, por um lado, e dos pequenos distribuidores, por outro, a menos que a classe trabalhadora organizada diga o contrário.
A juventude resiste
Neste sórdido contexto de fanatismo policial e xenofobia, comemorou-se mais um Dia do Jovem Combatente, em 29 de março (A origem e história do “29 de março”, Dia do Jovem Combatente). Nesta data são recordados os jovens que tombaram na luta contra a ditadura, mas a qual se junta também uma lista de jovens assassinados “na democracia”. E em 30 de março também é lembrado o sequestro e assassinato de três professores comunistas, crime cometido pelos Carabineiros em 1985 durante a ditadura de Pinochet.
Boric, como no ano passado, passou o dia dando todo o seu apoio às ações da polícia. Enquanto isso, centenas de estudantes do ensino médio se reuniram no centro de Santiago com um “Mochilazo” para comemorar esta data, mas também por demandas relacionadas à educação. O governo dos ex-dirigentes estudantis que fizeram carreira política sobre os ombros do gigantesco movimento estudantil, hoje mais uma vez desencadeia a criminalização e a repressão sobre a juventude mobilizada. Boric e Hassler estão brincando com fogo e podem se queimar.
Muitos líderes do PCCh, especialmente os mais próximos do governo, perderam toda a confiança na revolução e na luta pelo comunismo. Mas, definitivamente, nas bases esse tipo de reviravolta não pode passar despercebido. O que acontecerá quando novamente um policial assassinar um jovem estudante, um mapuche ou um trabalhador em greve?
A organização estudantil universitária foi levada à bancarrota pela Frente Ampla e pela esquerda universitária. No movimento secundário, desenvolveram-se vários grupos revolucionários que realizam ações de protesto e combates com policiais. Levantam demandas locais como infraestrutura e bolsas-alimentação, além de exigir financiamento e uma educação não machista. Eles denunciaram a farsa constituinte e os “progressistas” no poder que hoje os reprimem.
É nesta juventude que permanece a centelha da rebelião, assim como uma oposição ao governo que pode representar uma alternativa revolucionária. Seu sucesso depende de conseguir se conectar com a classe trabalhadora, e para isso deve superar o espontaneísmo e o sentimento antipolítico, e construir uma organização militante com um programa político de transformação revolucionária da sociedade, pela abolição do capitalismo e por um governo dos trabalhadores. Como resposta à agenda repressiva contra o crime, por seu lado, você deve exigir moradia e trabalho para todos. Equipamentos esportivos e culturais nos bairros para promover o lazer saudável da juventude, sob controle das organizações territoriais e dos trabalhadores. Expropriação dos lucros das drogas e abolição do sigilo bancário. Contra a impunidade de uma polícia corrupta e pela organização dos trabalhadores dos bairros contra o narcotráfico. Unidade da classe trabalhadora nativa e estrangeira, para conquistar direitos iguais para todos.