Após sofrer por anos sob um reino de terror nas mãos de gangues que se tornam cada vez mais poderosas, o povo do Haiti está se levantando e contra-atacando para reconquistar o controle de seus bairros e cidades.
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Um movimento chamado “Bwa Kale” (literalmente “madeira descascada”, uma metáfora para um rápido ato de justiça) emergiu no final de abril em resposta à ascensão alarmante da violência relacionada com a ação das gangues nesse ano. Com esse movimento, a população está tomando seu destino em suas próprias mãos e tem estabelecido organizações de autodefesa para proteger os seus bairros das gangues.
Crescimento da violência das gangues
As gangues têm sido um problema no Haiti por décadas. Elas têm laços diretos com a polícia corrupta, assim como com políticos e com a classe dominante, que as financiaram e as utilizaram para seus próprios objetivos: em esquemas criminais, para intimidar rivais e para acertar as contas, para coletar dinheiro e votos etc.
Com as gangues, a elite política do Haiti e a classe dominante tinham o monstro Frankenstein em suas mãos. Conforme a crise da sociedade haitiana se aprofundava, o Estado e a sociedade civil ficavam completamente disfuncionais. A doença geral do capitalismo no Haiti permitiu que as gangues crescessem e fizessem metástase, como um câncer agressivo.
Quanto mais a situação no Haiti declina, mais poderosas as gangues se tornam. O câncer das gangues começa agora a ameaçar a própria vida da sociedade haitiana. As gangues se soltaram da coleira e agora estão em uma posição muito poderosa. As estimativas apontam que elas controlam atualmente cerca de 80% da capital, Porto Príncipe, assim como as maiores rodovias dentro e fora da cidade.
Faz vários anos que a violência das gangues entrou em uma espiral fora de controle, especialmente após o assassinato do presidente Jovenel Moïse – com sequestros, assassinatos e violência sexual à luz do dia. As gangues tem se engajado em uma guerra aberta pelo controle do território, aterrorizando bairros inteiros, além de estarem envolvidas no assassinato de ativistas e jornalistas.
Dada a crise econômica e a desintegração política do Haiti, era apenas questão de tempo para que as gangues se tornassem uma força política a nível nacional. Houve uma crise em setembro de 2022 em que a G9, considerada a mais poderosa gangue do Haiti, tomou controle do principal terminal de combustível do país em resposta aos planos do governo de cortar subsídios de combustível. O bloqueio de dois meses dos combustíveis resultou em uma escassez, exacerbando uma situação econômica que já era terrível e levando ao fechamento de hospitais, escolas e empresas.
O bloqueio da G9 foi uma demonstração do poder das gangues e um desafio direto contra o Estado. O bloqueio do terminal de combustível chegou eventualmente a um fim quando a Polícia Nacional Haitiana foi capaz de reconquistar o controle do porto no início de novembro. Porém, a situação geral continuou a piorar desde então.
De acordo com as Nações Unidas, nos três primeiros meses de 2023, 1.647 incidentes foram registrados, relacionados à violência das gangues no Haiti – assassinatos, estupros, sequestros e linchamentos. Pintando o quadro do quão terrível a situação está, um artigo recente disse o seguinte:
“É difícil de exagerar o desespero da situação. Os haitianos de todos os níveis da sociedade estão vivendo em um medo diário – de serem sequestrados, mortos, estuprados ou pegos no fogo cruzado…
“Quase todo mundo em Porto Príncipe conhece alguém que foi sequestrado. O Centro de Análise e Pesquisa de Direitos Humanos, com base no Haiti, contou 389 sequestros no primeiro trimestre de 2023, um aumento de 72% em comparação ao mesmo período no ano passado, e de 173% em comparação a 2021.”
Mais de 600 pessoas foram mortas em uma onda de violência das gangues que explodiu em abril de 2023. As gangues lançaram um reino de terror no que se parece muito com uma guerra unilateral contra a população.
Tem ocorrido, no entanto, uma mudança significativa na situação. As Nações Unidas reconheceram que, por conta do Estado haitiano “não ter a capacidade de responder” à violência das gangues, “as pessoas estão fazendo justiça com as próprias mãos”. Isso levou a um crescimento de “assassinatos por multidões e linchamentos de supostos membros de gangues”. Foram registradas as mortes de pelo menos 164 membros de gangues em abril.
Um artigo recente da CBC (Canadian Broadcasting Corporation) notificou que “Porto Príncipe continua violenta como sempre foi, mas nas duas últimas semanas o medo também fluiu para diferentes direções – graças ao fenômeno conhecido como “Bwa Kale”.
“Bwa Kale”
Um evento espontâneo no bairro Canapé Vert, em Porto Príncipe, parece ter engatilhado um amplo movimento de resistência contra as gangues por todo o país. No dia 24 de abril, cerca de doze membros de uma gangue estavam atravessando o bairro para se juntar com membros de uma gangue aliada em um distrito próximo. Os gangsters não estavam fortemente armados, foram parados e detidos pela polícia. Uma multidão da população local se reuniu no momento da prisão. Demandando justiça, a multidão atacou e matou os membros das gangues, apedrejando-os e queimando-os até a morte.
Um ativista local explicou que o ataque contra os membros da gangue “dissipou o mito da invencibilidade [das gangues]”, complementando que o grupo cujos membros da gangue iriam encontrar também foi atacado pela população no dia seguinte.
Chamados para a “Operasyon File Manchet” (Operação Facão Afiado) foram feitos nas redes sociais. Aparentemente, até mesmo algumas igrejas participaram da divulgação da mensagem. O movimento Bwa Kale nasceu conforme a população dos bairros de toda a capital e do resto do país começaram a se levantar contra as gangues.
Nos dias seguintes, muitos bairros de Porto Príncipe entraram em “pé de guerra”. Quando as gangues entravam em um bairro, a população começava a bater potes e panelas para alertar os residentes. A população, não tão bem armada como as gangues, começava a jogar pedras ou usar outras armas rudimentares para confrontar os membros das gangues. Com isso ela tem sido capaz de repelir as suas incursões.
O movimento Bwa Kale levou multidões oriundas dos bairros a partirem para a ofensiva. Eles tem usado seus números para invadir as casas de gangues. Tem ocorrido numerosas cenas da população arrastando suspeitos de serem membros de gangues para fora de suas casas, e mesmo de estações de polícia, para matá-los nas ruas.
O CBC recentemente publicou uma entrevista com um ativista de direitos humanos local, Vélina Élysée Charlier, que vive no bairro Turgeau, em Porto Príncipe. Os moradores desse bairro recentemente se defenderam contra a incursão de uma gangue.
“Os membros das gangues,” ela disse, “eles vêm para Debussy, que fica nas colinas altas de Turgeau, em Porto Príncipe. E pela primeiríssima vez, a população não suportou mais… Eles começaram a atirar de volta. Qualquer um que tivesse armas e munições o suficiente,l começava a atirar de volta contra as gangues. E então a população apareceu com facões, pedras ou pedaços de madeira – qualquer coisa que eles podiam encontrar para contra-atacar… Eles começaram a descer a colina, perseguindo todos os bandidos e os membros das gangues em cada local em que eles se escondiam.”
O movimento Bwa Kale desde então se espalhou pelo país e já obteve um impacto imediato nos casos de violência das gangues. De acordo com algumas estatísticas recentes, cerca de 100 membros de gangues foram mortos e apenas um caso de sequestro foi reportado desde que o Bwa Kale começou.
O papel da polícia
O movimento Bwa Kale tem feito com que as gangues sejam forçadas a fugir de muitas áreas da capital. Membros de gangues tem sido linchados ou sumariamente executados quando são capturados pela população, que as vezes age em conjunto com a polícia.
Inclusive, quando perguntado sobre o porquê da população estar resolvendo o problema das gangues com suas próprias mãos, Charlier disse “Muitos bairros já estão começando a contra-atacar e brigadas já estão começando a se organizar em diferentes bairros… então a população tem se organizado discretamente. E eu imagino que o que realmente fez a diferença é o fato de que a polícia também se colocou com a população, o que é um grande desenvolvimento e uma das pouquíssimas vezes que nós vimos [a] população indo de mãos dadas com a polícia para enfrentar os bandidos.”
A população do Haiti tem sofrido uma situação intolerável diante do reino de terror criado pelas gangues por anos. As cenas de membros das gangues sendo mortos e queimados vivos são repugnantes, embora a raiva da população e sua sede de justiça também sejam compreensíveis. As gangues aterrorizaram a população por anos, com estupros, pilhagens, torturas e sequestros em uma escala massiva. As gangues tem atacado e extorquido impiedosamente as famílias mais pobres nos bairros mais pobres. Os haitianos estão agora começando a se defender e tomando ações diretas para lidar com as gangues.
Eles tem demonstrado que podem se defender e quenão precisam do Estado ou da polícia para fazer isso. É precisamente porque o Estado e a polícia tem estado impotentes diante da violência das gangues que a população tem sido forçada, inevitavelmente, a resolver seus problemas com as suas próprias mãos.
O regime de Henry não tem os meios para lidar com as gangues. A Polícia Nacional Haitiana é uma força relativamente pequena. Ela foi desmuniciada e desarmada pelas gangues, tem estado incapacitada de fazer qualquer coisa sobre elas por anos. Também existem elementos corruptos no Estado e na polícia que têm fortes conexões com as gangues.
O envolvimento da polícia no Bwa Kale representa um perigo mortal ao movimento. A polícia aparenta estar usando o movimento popular Bwa Kale para reafirmar algum controle sobre a situação. Em última instância, enquanto a polícia pode estar ajudando a atacar as gangues nesse momento, seu objetivo principal será o de conter o movimento popular e preservar o status quo do regime falido de Henry. Políticos corruptos e elementos da polícia também podem tentar se utilizar do movimento para acertar as contas com várias gangues e com outros rivais políticos e econômicos. Essas são apenas algumas formas em que o movimento popular pode ser corrompido.
Auto-defesa revolucionária
O Bwa Kale aparece, nesse momento, como um movimento amplo que se espalhou por diversos bairros pela capital e pelo resto do país. Porém as divisões de classe já estão visíveis no movimento.
Os bairros de Laboule e Thomassin são subúrbios de maior poder aquisitivo em Porto Príncipe. No último setembro, gangsters assassinaram três policiais e um morador proeminente, um ex-candidato presidencial.
As gangues então “começaram a aterrorizar a população, matando, atirando, estuprando, sequestrando e exigindo resgates” no bairro. Os moradores pediram ajuda ao governo mas não receberam nenhum auxílio. Eles eventualmente começaram a resolver as coisas por si mesmos.
Liderados por um advogado local, o grupo de auto-defesa do bairro chegou a um acordo com a polícia. Moradores do bairro levantaram uma quantia de 32 mil dólares, uma quantidade significativa de dinheiro no Haiti, para reparar um veículo blindado quebrado em troca do compromentimento da polícia de usá-lo para proteger apenas o seu bairro. O grupo também contratou seguranças privados e tem adquirido caminhonetes para patrulhar o bairro.
É claro, todo bairro do Haiti tem um interesse em organizar sua própria defesa contra essas gangues. Contudo, alguns bairros mais ricos demonstraram uma abordagem extremamente egoísta e estreita de defender apenas os seus próprios bairros sozinhos.
Tal abordagem estreita, de se organizar de uma forma atomizada e individual, é uma abordagem míope. Se o movimento para lidar com as gangues estiver desunido, com pouca ou nenhuma coordenação entre os bairros e os comitês de defesa das cidades, então a luta contra as diversas gangues pode acabar se tornando desnecessariamente prolongada e resultando em um conflito violento.
Cada bairro pode ou não ser capaz de defender as suas fronteiras contra as gangues, mas tal abordagem não fará nada para resolver os problemas fundamentais que levaram ao crescimento em número e poder das gangues em primeiro lugar.
As massas haitianas tomaram a responsabilidade de lidar com as gangues com as suas próprias mãos. A população de muitos bairros tomou o passo significativo de organizar comitês de autodefesa. Os trabalhadores e os pobres devem ser capazes de se defender contra os sequestros e os assassinatos, e a defesa armada dos bairros para protegê-los contra a violência das gangues é necessária.
A luta contra as gangues também é uma luta social. Derrotar verdadeiramente as gangues significa acabar com todas as condições econômicas e sociais apodrecidas que permitiram que as gangues crescessem e se tornassem poderosas. As gangues são agora uma parte componente do próprio capitalismo no Haiti. A desintegração social e a corrupção se aprofunda tanto que todo o sistema capitalista, incluindo sua estrutura política, tem se tornado criminalizada e gangsterizada. Derrotar as gangues demanda, em última instância, uma alternativa ao capitalismo.
Não está claro como os comitês de autodefesa dos vários bairros estão sendo organizados. Provavelmente existem muitos modelos diferentes. As massas devem insistir no controle democrático dos comitês de bairro via delegados eleitos e revogáveis. Isso irá assegurar que os comitês reflitam os desejos da população, e irá preveni-los de quaisquer tentativas de corrupção ou de gangsterzação.
Para superar a crise, as massas haitianas precisam trilhar o seu próprio caminho, criando e lutando pela sua própria democracia. Elas devem criar um regime com uma democracia genuína, popular e revolucionária.
Os comitês de bairro também devem coordenar suas atividades através de delegados eleitos e revogáveis pelos bairros e em nível municipal, regional e, por fim, em nível nacional. Um movimento nacional de comitês de bairro unidos e democráticos pode mobilizar as massas e coordenar ações para derrotar e desarmar as gangues rapidamente.
O capitalismo fracassou completamente no Haiti. É necessário uma limpeza revolucionária e total de toda a corrupção e podridão do capitalismo haitiano. A transformação socialista da sociedade é o único caminho possível para isso.
Um movimento de comitês de bairro unidos poderia desafiar o poder do Estado capitalista e das gangues, formar as bases para a derrubada revolucionária do capitalismo no Haiti. Porém, primeiramente, ele precisaria desenvolver um programa econômico, político e social, que pudesse erradicar a pobreza que leva as pessoas a ingressar nas gangues. Seria necessário tomar o controle da administração da produção, da coleta e da distribuição de itens básicos como comida, água e combustível; a organização de transportes, educação, saúde e moradia.
Dessa forma, esses comitês poderiam formar o ponto inicial da luta pelo poder dos trabalhadores e pobres do Haiti, pela expropriação da burguesia, libertar o país da ganância e corrupção dos capitalistas e dos imperialistas, além de formar as bases para um plano econômico que possa providenciar empregos e salários decentes. Essa é a única maneira de derrotar definitivamente as gangues.