Em agosto de 2020, o brutal tiroteio policial contra Jacob Blake, um homem negro desarmado, reacendeu as chamas do movimento Black Lives Matter (BLM) na pequena cidade de Kenosha, Wisconsin. Milhares se manifestaram contra o racismo e o terror policial à medida que os protestos se espalhavam novamente, primeiro para Milwaukee, Chicago, e depois para as principais cidades de costa a costa.
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No terceiro dia de manifestações em Kenosha, enquanto a multidão diminuía e o grosso dos manifestantes voltava para casa, Kyle Rittenhouse (17), um aspirante a policial de extrema-direita, atirou em três pessoas com um rifle semiautomático, matando duas e ferindo gravemente outra.
Rittenhouse enfrentou acusações de homicídio imprudente de primeiro grau, homicídio doloso de primeiro grau e tentativa de homicídio doloso de primeiro grau, entre outros – que poderiam levar à prisão perpétua.
Após duas semanas de julgamento e mais de três dias de deliberação do júri, Rittenhouse foi declarado inocente de todas as acusações. Isso representa outra confirmação nítida de que não pode haver justiça real sob o capitalismo, um sistema baseado na exploração, opressão e racismo.
Os protestos do BLM em 2020 geraram medo nos corações da classe dominante e enviaram Trump para seu bunker subterrâneo. No entanto, na ausência de um programa revolucionário claro e de uma liderança, o movimento foi cooptado pelos democratas e, após falsas promessas de “reforma policial”, conduzido de volta a canais seguros para o sistema. Agora, uma série de julgamentos de alto perfil – incluindo o caso em andamento contra os assassinos de Ahmaud Abery – estão sendo realizados para oferecer a aparência de “justiça” em tribunais longe do calor do movimento insurrecional de massa do ano passado.
O veredicto de culpado no julgamento do assassino de George Floyd, o policial Derek Chauvin, mostrou que a classe dominante precisava transformar em bode expiatório um funcionário de seu sistema por medo de desencadear um novo movimento. Poucos meses depois, as coisas voltaram ao “normal”, quando um adolescente assassino racista é libertado impune.
Durante seu julgamento, Rittenhouse chorou lágrimas de crocodilo no tribunal enquanto o advogado pintava o retrato de um menino cheio de remorso que agiu estritamente em autodefesa por medo. Desde o início, o juiz mostrou sua parcialidade a essas reivindicações e um claro duplo padrão. Ele não permitiu que os promotores se referissem às vítimas, Joseph Rosenbaum, Anthony Huber e Gaige Grosskreutz, como “vítimas”, mas permitiu que a defesa os chamasse de “desordeiros”, “saqueadores” e “incendiários”.
Não importa que Rittenhouse dirigiu através das fronteiras estaduais de Antioch, Illinois a Kenosha após um chamado às armas por grupos de extrema direita nas redes sociais, empunhando ilegalmente um rifle que um amigo comprou para ele. A extrema direita se uniu em apoio a Rittenhouse, levantando US$ 2 milhões para sua fiança e defesa. Seus laços com os Proud Boys ficaram bastante claros em janeiro de 2021, depois que Rittenhouse postou uma foto em um bar com líderes do grupo de Wisconsin exibindo um gesto de “OK” com a supremacia branca. No entanto, o juiz negou a admissão de provas de qualquer conexão entre Rittenhouse e o grupo de extrema direita e indeferiu a acusação de porte de arma de fogo por um tecnicismo linguístico.
Notavelmente, Rittenhouse não foi ferido ou morto durante sua prisão depois de disparar sua arma. Mesmo tendo acabado de atirar em três pessoas à vista de todos, ele foi ignorado por dezenas de policiais no protesto e teve permissão para voltar para sua casa em Illinois antes de se entregar a uma delegacia de polícia local. Em contraste, Tamir Rice, Daunte Wright, Michael Brown e inúmeros outros adolescentes negros foram sumariamente executados pela polícia, apesar de estarem desarmados. Essa diferença de tratamento é sistemática: a polícia atirou em adolescentes negros seis vezes mais que em seus colegas brancos entre 2003 e 2018.
Quanto ao policial que atirou em Jacob Blake sete vezes nas costas na frente de seus filhos pequenos, paralisando-o da cintura para baixo – nenhuma acusação foi feita, de forma alguma. A defesa de Rittenhouse aludiu à subjetividade do tribunal, dizendo: “Outras pessoas nesta comunidade atiraram em alguém sete vezes e tudo isso foi considerado OK.” Isso levanta a questão: por que a polícia é considerada acima da lei e do restante da sociedade, e não é responsabilizada pelas mesmas leis que dizem aplicar? O sistema judicial existe para fazer cumprir as leis de um sistema inerentemente violento, explorador e racista e, portanto, não aborda esse tipo de questões.
Como explicamos em outro momento, o propósito real da polícia é antes de mais nada proteger a propriedade privada dos meios de produção e defender a ordem capitalista. O controle de multidões e a repressão aos movimentos de massas têm sido historicamente uma função importante da polícia. Em tempos normais, isso não é difícil, especialmente em cidades como Nova York, onde o orçamento do departamento de polícia ultrapassa os orçamentos militares de quase 100 países. Mas o movimento George Floyd foi tudo, menos normal. Durante o verão passado, um em cada dez americanos participou diretamente dos protestos em algum momento. Este foi um genuíno movimento de massas que as forças armadas do Estado não poderiam ter contido com base apenas na repressão.
Ao mesmo tempo, o movimento teve um efeito polarizador, empurrando as pessoas tanto para a esquerda quanto para a direita. No entanto, essa polarização não foi igualmente equilibrada. Houve aprovação e apoio da maioria ao BLM em todo o país, embora aqueles que vêem a polícia como “heróis” tenham recebido igual tempo de antena. Estimulados pelos repetidos apelos de Trump por “lei e ordem”, pequenos grupos de vigilantes de extrema direita tomaram a decisão de “proteger” com suas próprias mãos as empresas e ajudar a polícia. Em uma entrevista no protesto, Rittenhouse afirmou que era seu trabalho “proteger as pessoas” – pouco antes de matar Joseph Rosenbaum ou Anthony Huber.
No momento dos protestos de Jacob Blake, o movimento George Floyd havia começado a perder força. Os protestos foram menos frequentes e menores, à medida que os democratas acenavam com gestos simbólicos para tentar levar as massas à complacência. É apenas neste contexto, quando os protestos de Kenosha cessaram, que a presença de civis armados, vestidos com roupas de camuflagem e com cintas de munição atravessadas no peito, teve algum impacto. Certamente, esses vigilantes armados não tinham nada em comum com os comitês de bairro e com as patrulhas que surgiram em Minneapolis para defender os bairros da classe trabalhadora. Pessoas como Rittenhouse estavam lá para “dar uma mão” à polícia, mantendo a “ordem” e protegendo a propriedade privada. Enquanto as patrulhas de bairro em Minneapolis foram advertidas contra a violação do toque de recolher, os homens armados em Kenosha receberam água engarrafada e gestos de aprovação dos policiais que passavam.
O veredicto confirma que não podemos confiar nas instituições capitalistas para fazer justiça às vítimas da violência racista ou para combater a extrema direita. O veredicto fará o sangue de milhões ferver de raiva, e muitos deles vão querer “fazer algo” para vingar a morte das vítimas. No entanto, a melhor maneira de se preparar para confrontos como o de Kenosha é não responder a um punhado de direitistas armados com um punhado de militantes de esquerda armados. O poder da classe trabalhadora é função de seu número esmagador, de seu papel produtivo na sociedade e de sua capacidade de paralisar a sociedade se ela se organizar e se mobilizar independentemente como classe.
Assim como no dia 6 de janeiro, o crescimento da extrema direita faz parte da polarização distorcida da sociedade. Mas esses eventos mostram que a minoria de direita ativa não tem chance contra todo o poder da classe trabalhadora organizada, um vislumbre do que vimos nas fileiras multitudinárias do movimento BLM em seu auge.
Para evitar a polícia racista e a violência de extrema direita, uma direção revolucionária organizada deve ser preparada com antecedência, equipada com as táticas corretas e com experiência no movimento, para ajudar a canalizar a luta contra o racismo e a exploração capitalista em um verdadeiro poder de transformação da sociedade. Só então seremos capazes de nos livrar das instituições capitalistas como a polícia e o racismo – a única maneira real de fazer justiça e honrar a memória das vítimas deste sistema.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO NO DIA 19/11 EM SOCIALISTREVOLUTION.ORG