O recente caos dos mercados bursáteis mundiais é uma manifestação da turbulência geral que caracteriza de forma destacada a época atual. Na última semana, presenciamos o quase colapso do Northern Rock, o quinto maior banco da Grã-Bretanha. Quando se soube que o banco teve de recorrer a um empréstimo de emergência do Banco da Inglaterra para evitar seu colapso, milhares de pessoas furiosas fizeram filas durante todo o dia para retirar o seu dinheiro do banco.
Esta é a maior crise bancária da Grã-Bretanha desde os anos 1930. Na realidade, teríamos de voltar atrás cento e cinqüenta anos para encontrar uma situação semelhante em um banco britânico. A última vez que houve uma crise financeira desta magnitude foi em 1866: uma situação de "pânico", como se costumava caracterizar a recessão no século XIX. Cenas tão dramáticas não tinham precedentes na história recente britânica.
Northern Rock tinha adotado o modelo desenvolvido por muitos bancos importantes dos EUA. Em vez do método tradicional de manter capital suficiente para respaldar os empréstimos, dependiam dos investidores no mercado para o financiamento em grande escala de suas hipotecas. Desta forma, o banco evitava a inconveniência de manter reservas suficientes para devolver o dinheiro aos seus depositantes. O resultado parecia bom e a empresa ia bem. Em seus livros tinham hipotecas valorizadas em cerca de 100 bilhões de libras e tudo transcorria muito bem no melhor de todos os mundos capitalistas possíveis. A estratégia funcionava na medida em que as pessoas não exigiam o seu dinheiro. Enquanto a economia crescia, a situação podia continuar; mas, se os depositantes exigissem o seu dinheiro em espécie, o banco não lhes poderia devolver, porque simplesmente não o tinham - haviam-no emprestado a outras pessoas para que comprassem casas. As pessoas que adquiriram estes empréstimos têm de pagar certa quantidade de dinheiro mensalmente a título de recibo de hipoteca, mas nunca poderão devolver de uma vez todo o dinheiro emprestado.
Em conseqüência, apesar de que o valor contábil era de 100 bilhões de libras, o banco ficou incapacitado de pagar alguns bilhões aos seus clientes sem a ajuda do governo. Não tinha reservas e seus ativos não tinham liquidez ou valor de mercado apreciável. No momento da verdade, o quinto maior banco da Grã-Bretanha tinha somente um valor escritural de bilhões imaginários, enquanto os depositantes exigiam dinheiro efetivo. Os 100 bilhões de libras em ativos imobiliários se converteram numa pesada mó amarrada ao pescoço que os arrastava para o fundo.
Uma guinada de 180o
Alistair Darling, Ministro da Economia britânico, tentou garantir aos poupadores que o Northern Rock era solvente e que tinha o apoio do Banco da Inglaterra. No passado, declarações como esta do ministro e do governador do Banco da Inglaterra teriam o efeito de acalmar os nervos dos depositantes e acionistas. Mas, nesta ocasião, estes murmúrios tranqüilizadores não tiveram nenhum resultado e a retirada de fundos, e com ela a crise do Northern Rock, continuou.
A crise ganhava impulso a cada momento, como se fosse uma enorme bola de neve rolando montanha abaixo. As ações do Northern Rock baixaram 35,4% e a retirada massiva de fundos continuou numa média de um bilhão de libras ao dia. O banco perdeu a oitava parte de seus depósitos em três dias e, se continuasse nesse ritmo, teria ficado sem fundos no fim da semana.
Supunha-se que tal fato não iria ocorrer. As notícias da crise do Northern Rock tiveram efeito imediato em outros bancos. Na bolsa, as ações dos bancos sofreram perdas importantes e o custo dos empréstimos interbancários alcançou níveis muito elevados. Todo o sistema bancário britânico estava em risco.
O problema mais sério era o risco de contágio e que este levasse a um colapso bancário geral. Quase acontece. Outro grande banco, Alliance & Leicester, teve de fazer uma declaração pública depois que suas ações perderam um terço de seu valor. A queda das ações do Alliance & Leicester também despertou os temores de seus clientes que começaram a retirar em massa suas economias. Era a segunda vez que acontecia esta situação a um banco britânico. O banco tentou responder aos rumores que o assinalavam como o próximo banco que necessitaria de financiamento emergencial.
Bradford & Bingley tinha sobre o seu futuro outro grande sinal de interrogação, visto que suas ações baixaram fortemente. Os dois bancos têm relativamente poucos depositantes e usam os mercados monetários para financiar os seus empréstimos. As ações do Alliance & Leicester perderam 1,2 bilhões de libras de seu valor de mercado.
Usualmente, o Banco da Inglaterra teria emprestado tranqüilamente dinheiro ao banco para evitar o pânico e ninguém o teria sabido, mas as novas regulamentações bancárias tornam isto impossível. O velho e acolhedor mundo dos banqueiros desapareceu para sempre. Agora, também entraram no turbilhão frenético do capitalismo global do século XXI.
Apenas dois dias antes da explosão da crise, Mervyn King, presidente do Banco da Inglaterra, assegurou numa comissão parlamentar que de forma alguma o Banco da Inglaterra ajudaria aos bancos e investidores com problemas e que tinham investido de forma aloucada e especulativa em empréstimos sub-prime. Mas poucos dias depois, o presidente do banco teve que dar uma guinada de 180o.
O mesmo fez o Ministro da Economia quando manifestou: "Seria necessário que nós, junto ao Banco da Inglaterra, diante da presente instabilidade, estabelecêssemos condições para garantir todos os depósitos que existem no Northern Rock. Isso significa que os poupadores podem continuar sacando o seu dinheiro, mas se escolherem deixar o seu dinheiro no Northern Rock, ele estará garantido e a salvo".
O governo estava aterrorizado diante do perigo de contágio. Alistair Darling e Gordon Brown estavam nervosos. Apesar da suposta autonomia do Banco da Inglaterra, o governo recorreu ao presidente do Banco da Inglaterra e o obrigou a dar imediatamente os fundos ao Northern Rock. Darling disse que se o forçassem, o governo utilizaria os bens do Northern Rock para financiar os depósitos.
Os analistas da City disseram que isto seria o equivalente à nacionalização do banco. O Tesouro também disse que o governo apoiaria outros prestamistas se fosse necessário e que dependeria de sua situação financeira. Que significa tudo isto? Diante da ameaça de um colapso, o ministro teve que oferecer uma garantia de "respaldo monetário". A realidade é que o novo governo trabalhista estava apresentando um cheque em branco, não somente ao Northern Rock, como também a todo o sistema bancário.
Que fica da "economia de mercado"?
Devemos dizer com clareza: há poucos dias, todo o sistema bancário britânico esteve sob a ameaça de um colapso. O que o governo fez foi um movimento desesperado para evitar uma catástrofe potencial e convencer aos poupadores que o seu dinheiro estava a salvo. O governo agora tenta encontrar um comprador para o Northern Rock, mas não há garantias de que tenha êxito. A situação é muito frágil e é possível que se produzam novas situações de pânico a qualquer momento. Mais que uma vitória, como pretende o governo, trata-se de uma trégua instável. Agora, buscam um bode expiatório e pensam que o encontraram no suposto conservadorismo fiscal do Banco da Inglaterra.
Banqueiros e economistas criticaram a negativa inicial do Banco da Inglaterra de proporcionar apoio às instituições financeiras. Mas, a partir de um ponto de vista capitalista, ele agiu corretamente. De acordo com as leis do mercado, se uma empresa não dispõe de fundos, entra em bancarrota; e se supõe que o Estado não deve gastar o dinheiro dos contribuintes para ajudar empresas em dificuldades. Se uma empresa não é rentável, deve-se permitir que ela feche e, desta forma, toda a economia será mais "ágil e automática". Isto é simplesmente a expressão concreta da luta darwiniana pela sobrevivência e, como se sabe, o mais apto sempre sobreviverá!
Este princípio foi aplicado com extrema crueldade em casos como a indústria automobilística britânica (antes, um setor florescente da manufatura do qual nada mais resta) ou a indústria mineira. Os banqueiros sempre são particularmente restritivos nesta questão. Mas, visto que a City londrina viu-se afetada, os princípios "férreos" da economia de mercado se derretem como uma bola de neve sob o sol. Comparemos este comportamento com o que tiveram tanto o governo trabalhista quanto o "Tory" em relação às indústrias manufatureiras ameaçadas de bancarrota e fechamento. Os banqueiros, imediatamente, recorreram ao governo para que concedesse ajuda estatal e este, que não duvidou em tratar com dureza os mineiros, os trabalhadores automobilísticos, mães solteiras, enfermos e enfermeiras mal pagas, rapidamente saiu em sua ajuda com o talão de cheques aberto.
Que permanece agora dessa pretensão de que os banqueiros e os capitalistas merecem os seus juros e lucros porque são corajosos pioneiros da empresa privada, recompensados por "correr riscos"? Onde está o risco, se, ao chegar a crise, o governo imediatamente absorve todas as perdas? Esta é a verdadeira cara da "economia de mercado". Quando o mercado está em ascensão e os bancos obtêm grandes lucros de todos os tipos de acordos velhacos e especulativos, o mercado domina; mas, quando muda o clima e começa a soprar um vento frio, logo se esquecem de todos os princípios do mercado e exigem a ajuda do Estado.
As principais causas
Mike Whitney, em Britain, escrevia o seguinte sobre os recentes acontecimentos: "Parece um bom negócio para um banco passado de moda. E, como em 1929, os proprietários dos bancos e o governo tentam acalmar seus clientes garantindo-lhes que seu dinheiro está a salvo. Mas a natureza humana é assim: as pessoas não se tranqüilizam facilmente quando pensam que suas economias estão em risco. Nesse momento, a questão dominante é: os poupadores querem o seu dinheiro sem desculpas". E tem razão.
No enigmático mundo da banca, a confiança é um ingrediente essencial. O lema do Banco da Inglaterra desde o século XVIII tem sido: "minha palavra é minha garantia". Mas se as pessoas acreditam que não se pode confiar nos bancos para que cuidem de seu dinheiro e exigem sua devolução, que acontecerá com os bancos quando os depositantes se apressarem a retirar suas economias? Foi isto que presenciamos há pouco no Northern Rock.
Confiança é como virgindade: uma vez perdida, para sempre perdida. Agora, existe enorme desconfiança não somente com relação aos bancos e ao governo, como também em relação a todo o establishment. Esta situação é totalmente nova na sociedade britânica e pode ter conseqüências importantes no futuro, não somente no terreno da economia, como também no terreno político.
A verdadeira causa da crise atual não é o mundo demente da especulação. A crise das sub-prime, como o diz corretamente Greenspan, foi apenas um acidente através do qual a necessidade se manifestou. No Daily Telegraph (17/09/2007), Roger Bootle escreve:
"Além do mais, com os próprios custos de financiamento dos bancos agora muito altos e com o tardio reconhecimento de que o empréstimo pode ser um negócio arriscado, pouco a pouco, mudou o comportamento do empréstimo com seus clientes, e também entre eles.
"Enquanto isto há sinais de desaceleração na economia global. Nos EUA, o nível de emprego, em geral considerado como o barômetro fundamental da saúde econômica, caiu de maneira absoluta em agosto pela primeira vez em quatro anos.
"Na realidade, a recente turbulência dos mercados financeiros não é a raiz destes acontecimentos econômicos. O que essa turbulência reflete é o enfraquecimento geral da economia global que tinha começado antes que os mercados se tornassem loucos".
Pelo menos sobre isto, Bootle tem razão. As crises financeiras e a restrição do crédito não são as causas da crise econômica, mas seus efeitos. O ciclo capitalista de boom e recessão tem causas mais profundas. Enquanto os capitalistas obtêm lucros da extração de mais-valia, há "segurança" e "confiança", o crédito se torna pouco rigoroso e é fácil obtê-lo. Mas, quando o ciclo chega aos seus limites e há sintomas de que os bons tempos vão terminar, então essa confiança "evapora".
Os níveis de especulação e de capital fictício injetados na economia durante o último período são como um veneno que deve ser extraído. Mas, quando tentam fazê-lo, podem facilmente furar a bolha e fazer com que tudo desmorone. Nesse momento, os credores começam a exigir o pagamento da dívida e já não estão dispostos a emprestar mais dinheiro. O que exigem são taxas de juros mais elevadas. Isto reduz a taxa de lucro e também a demanda. O que antes era efeito, agora é causa e o ciclo empreende uma espiral descendente incontrolável.
É esta situação que temem tanto a burguesia britânica quanto a americana. Por isso, o FED e agora, de má vontade, o Banco da Inglaterra injetam mais inflação na economia. Com isto, pode ser que adiem o dia fatídico, mas somente à custa de provocar depois um colapso maior e mais profundo.
O cassino mundial do capitalismo moderno
Houve uma época em que se considerava aos banqueiros como cidadãos respeitáveis em que se podia confiar para que cuidassem do dinheiro de outras pessoas. Vestiam trajes escuros e recebiam as pessoas que desejavam um empréstimo em salões decorados com mármores; submetiam-na a um interrogatório inquisitorial relacionado com aspectos de sua vida. Isso acabou!
Graças às reformas thatcheristas dos anos 1980 e à desregulamentação da City, tudo mudou. Os banqueiros agora estão totalmente absorvidos no cassino mundial do capitalismo moderno e são viciados no jogo dos mercados bursáteis. O problema é que não jogam com o dinheiro próprio, mas com as economias de toda uma vida e com os fundos de pensões das pessoas comuns, no fundamental da classe trabalhadora ou da classe média.
No ponto culminante do boom, pode haver uma crise dos mercados bursáteis que sirva para sacar grandes quantidades de capital fictício injetadas no sistema durante o auge. Esta situação é conhecida como "correção" e se supõe que tem os mesmos efeitos benéficos que se imaginava ter as sangrias (extrair o excesso de sangue de um paciente) na Idade Média. Mas, como se sabe, a perda de muito sangue às vezes pode ter conseqüências desastrosas.
A crise creditícia já tem efeitos. Os bancos se viram obrigados a cancelar bilhões de libras de dívida. O Banco da Inglaterra subiu as taxas de juros cinco vezes no ano passado até alcançar os atuais 5,75%. Agora, ouvem-se os alaridos de dor.
O aumento do custo do crédito não somente afeta os consumidores e proprietários de casas, também se alimenta da taxa de lucro dos capitalistas. Pode afetar em determinada etapa o investimento, especialmente se estiver combinado com aumentos dos preços das matérias-primas, como o petróleo.
Segundo Greenspan: "Na Grã-Bretanha, o mercado imobiliário ainda não mudou e o consumo familiar está mais sujeito a mudanças na taxa de juros que nos EUA". A instabilidade dos mercados monetários supõe que a taxa real paga por milhões de famílias, a chamada taxa variável padrão, na realidade tenha subido às nuvens, sobretudo quando a taxa bancária já estava em 6,75%. Esta advertência chega com o sistema bancário britânico em crise.
Também há crescentes sinais de que, depois de uma década de crescimento quase ininterrupto, o mercado imobiliário está se desacelerando de maneira espetacular. Segundo Rightmove e o Royal Institution of Chartered Surveyor, produziu-se uma queda repentina dos preços.
O papel da Reserva Federal
Em sua obra de 1966, Gold and Economic Freedom, Greenspan culpava o FED pela Grande Depressão. Esta afirmação não é correta. Os bancos não causam as depressões; estas são conseqüência da anarquia da produção capitalista. Mas podem sim exacerbar as crises ao injetar durante o auge enormes quantidades de capital fictício no sistema. Isso aconteceu no período anterior ao Crack de 1929 e agora acontece numa escala inclusive maior. Citaremos as palavras de Greenspan:
"O excesso de crédito que o FED bombeou à economia se estendeu pelo mercado bursátil, desencadeando um espetacular boom especulativo. Quando já era tarde, os funcionários da Reserva Federal tentaram absorver o excesso de reservas e, finalmente, acabaram com o boom. Mas era demasiado tarde; em 1929, os desequilíbrios especulativos já eram esmagadores".
Resulta irônico que estas opiniões tenham sido emitidas por Alan Greenspan. Sob sua direção, o FED contribuiu de forma poderosa para a formação de bolhas nos EUA e por seu apego às dívidas. A manutenção de taxas demasiado baixas durante tanto tempo estimulou o boom creditício e preparou assim o terreno para a atual crise. Durante a maior parte do período de 2002 ao início de 2006, as taxas "reais" foram realmente negativas (abaixo da inflação) - na verdade, recriminavam-se àqueles que não contraíam dívidas. Agora, Greenspan diz: "A raça humana nunca encontrou uma forma de enfrentar as bolhas". Admite que foi pego de surpresa pela demência das sub-prime: "Embora soubesse que estavam acontecendo muitas dessas práticas, na verdade não enfrentei esta situação até que foi demasiado tarde em 2005 e 2006". Estas são suas palavras ao Daily Telegraph.
O resultado das repetidas reduções das taxas de juros é um país que vive além de seus limites (os banqueiros classificam esta situação como "risco moral"). De maior credor mundial, os EUA se transformaram no maior devedor mundial; seu passivo externo líquido supera três trilhões de dólares. A taxa de poupança caiu abaixo de zero pela primeira vez desde a Grande Depressão. Os EUA, ano após ano, mantêm um déficit em conta corrente de 6,5% de seu PIB; apesar de tudo isto, o FED olhava complacentemente como os compradores gastavam alegremente e acumulavam cada vez maiores dívidas. Como resultado dessa situação, a Ásia, e particularmente a China, acumulou enormes reservas à custa dos EUA.
A recente crise revelou até que ponto os grandes bancos norte-americanos estão atolados na especulação. Particularmente ingrata era a prática de comprar e vender dívida. Durante este boom, os bancos e as financeiras estavam dispostos a oferecer créditos e hipotecas a muitas pessoas que não se podiam permitir isto. Na medida em que as taxas de juros estavam baixas (durante um tempo, inclusive negativas) parecia um bom negócio. Sobre esta base, muitos trabalhadores pobres tentaram comprar casas. Além do mais, os bancos vendiam pacotes desta dívida a outros bancos que estavam ansiosos por comprar.
"Finança estruturada" é o termo que utilizam para um sistema supostamente projetado para distribuir o capital de maneira mais eficiente, permitindo a outros participantes no mercado cumprir o papel que antes era considerado exclusivo dos bancos. Na prática, é uma gigantesca fraude. Os empréstimos hipotecários inseguros e outros passivos se transformaram como um passe de mágica em ativos (certificados de apólices de valores) através da chamada "securitização". Era o equivalente financeiro dos alquimistas, que pretendiam transformar chumbo em ouro. Este sistema se baseia em investidores que proporcionam os fundos aos empréstimos hipotecários que depois serão vendidos como Obrigações de Dívida Garantida ou ODG.
Esta demência ficou ao descoberto com o colapso de Bear Stearns nos EUA. De repente, ninguém queria as ODG. Toda uma série de bancos muito conhecidos tinha problemas. Por exemplo, Lehman Brothers ficou seriamente prejudicado por sua excessiva exposição ao mercado das sub-prime em dois trilhões de dólares; os empréstimos imobiliários tinham sido fatiados e convertidos em pacotes de renda, normalmente sob a forma de ODG. Esse bando, no ano passado, levou uma grande parte dos 500 bilhões de dólares expedidos em ODG. Devido a estas práticas, o diretor, Richard Fuld, recebeu uma generosa recompensa de 40,5 milhões de dólares.
Tudo muito bonito enquanto durou. Mas tudo que é bom chega ao fim. O pânico nos mercados creditícios norte-americanos explodiu em maio quando Bear Stearns informou enormes perdas em dois de seus fundos de alto risco. Permitiram que um dos fundos entrasse em colapso enquanto resgatava o outro. Em agosto, as vendas de novas ODG caíram 73%. Agora a rentabilidade dos bônus da dívida de Lehman é inferior à dívida da Colômbia. A quantidade total de dinheiro que Goldman Sachs e Morgan Stanley tiveram que injetar dobrou desde fevereiro deixando apenas uma pequena margem de lucro.
Citigroup calcula que os quatro bancos, incluindo Merril Lynch, ficaram com 75 bilhões de dólares em empréstimos para "leverage buy-outs" [Nota do tradutor: significa comprar todas as ações de uma empresa pagando-as com dinheiro emprestado em troca de garantias de que as ações serão compradas], contratadas antes da restrição creditícia e que foram incapazes de colocar nos mercados sem obter abundantes perdas. Produziu-se um repentino aumento do endividamento de bancos procedente do programa de resgate de emergência do FED. Bilhões de dólares foram repartidos através da "janela de desconto", como é conhecida. Da mesma forma que na Grã-Bretanha, os bancos norte-americanos pediram dinheiro emprestado ao FED porque não podem cumprir seus requerimentos mínimos de reserva.
Parasitismo
Todo o sistema bancário encontra-se agora metido até o pescoço em fraudes e enganos de todo tipo. Sempre foi assim. Em um boom, quando a produção está a pleno vapor e há muito dinheiro, também se produz uma luta frenética pelo crédito. O excesso de dinheiro e crédito nesta etapa do ciclo econômico desempenha um papel positivo ao lubrificar o sistema e proporcionar muita da liquidez que se necessita.
Nisto sempre existe um elemento de especulação, como explica Marx. Quando todos conseguem dinheiro, ninguém se preocupa de olhar mais de perto de onde vem o dinheiro ou sequer se é dinheiro real.
O economista inglês Gilbart, já em 1834, escrevia: "Tudo o que facilita o comércio facilita a especulação. O comércio e a especulação, em alguns casos, são aliados estreitos; assim, é impossível dizer em que momento preciso acaba o comércio e começa a especulação". Nos tempos de Marx, calculava-se que possivelmente, "nove décimos de todos os depósitos no Reino Unido poderiam não existir além dos registros nos livros dos banqueiros que eram correspondentemente responsáveis por eles" (The Currency Theory Reviewed. pp. 62-63).
Neste alegre carnaval de ganhos, todos estão tão intoxicados com o fetiche do enriquecimento que não se preocupam com os pormenores. "Come, bebe e sê feliz! Amanhã, todos estaremos mortos!". Este é o lema da burguesia num período de boom. Contudo, quando o boom perde fôlego, esses procedimentos fraudulentos e enganosos ficam ao descoberto. No futuro serão inevitáveis mais falências bancárias.
A única diferença entre o período atual e o passado é a escala da orgia de enganos e especulação. No período passado, enormes quantidades de capital fictício foram injetadas no sistema através do boom bursátil, da bolha imobiliária e da extensão ilimitada do crédito e da dívida, até alcançar níveis inauditos. Simplesmente é um reflexo da decadência senil do capitalismo.
Em sua juventude, a burguesia, movida pela avidez de lucro e sede insaciável de mais-valia (o trabalho não-pago à classe trabalhadora), desenvolveu as forças produtivas. Mas no período de sua decadência senil não desempenha nenhum papel progressista. Marx explicou que o verdadeiro ideal da burguesia é fazer dinheiro do dinheiro, sem necessidade de recorrer ao fatigante processo da produção. A burguesia, agora, está contagiada de uma enfermidade de cura desconhecida. Nas palavras do conservador inglês Roger Bootle:
"A verdade evidente é que os mercados financeiros e as instituições econômicas foram indulgentes com esta louca onda de avidez, cegueira e comportamento de manada. No processo, eles depositaram seus milhões. Agora, que as conseqüências deixaram-nos indefesos ante a enfermidade desde seus luxuosos templos ao deus da cobiça, pedem de forma disfarçada ajuda ao Estado. Não é muito difícil imaginar o que teriam dito ou como teriam reagido ante a idéia de se resgatar os produtores de automóveis, os construtores de barcos ou os mineiros. Agora que o sofrimento está perto deles, queixam-se com um tom de virtuosa indignação".
O próprio Marx não poderia se expressar melhor! No passado, o capitalismo desempenhou um papel relativamente progressista ao desenvolver as forças produtivas e criar a base material para uma nova sociedade: o socialismo. Mas hoje não é mais assim. Com exceção da China (e de algumas outras economias asiáticas), a burguesia não desenvolve as forças produtivas.
Marx assinalou que o ideal da burguesia é "fazer dinheiro do dinheiro", libertando-se da penosa necessidade da atividade produtiva. Agora, estão próximos de obter este sonho. Na Grã-Bretanha, nos EUA e em muitos outros países, produziu-se um profundo declive da indústria e um grande aumento do parasitário setor financeiro e do setor de serviços. Michael Roberts escrevia há pouco:
"Nunca o capitalismo dependeu tanto do setor financeiro. Nunca o setor financeiro contribuiu tanto para o lucro. Marx denominou isto de ‘capital fictício'. O boom dos anos 1990 e dos últimos quatro anos não se baseou principalmente na expansão da produção real (pelo menos não nos países capitalistas desenvolvidos da OCDE). Não, tem se baseado no gasto massivo das famílias norte-americanas e britânicas, financiado por um grande aumento da dívida. As famílias já não economizavam, apenas pediam emprestado.
"Esse é o caso da Grã-Bretanha, um parasita financeiro extraordinário. O capitalismo britânico já não é mais a sombra do que foi; agora, é o banqueiro gigantesco do mundo. Como tal, a economia capitalista britânica é a mais vulnerável à crise financeira global e poderia supor uma recessão econômica. Mas os trabalhadores britânicos e suas famílias serão os que mais sofrerão" (Michael Roberts. El camino rocoso hacia la ruína. http://www.elmilitante.org/content/view/4153/29/).
Greenspan se "explica"
Os economistas burgueses são incapazes de compreender as crises, que são o resultado inescapável do capitalismo. É bastante assombroso ler os comentários de Alan Greenspan, o guru da economia burguesa moderna.
Contudo, Greenspan tem razão pelo menos em algo. Disse que a crise dos empréstimos sub-prime nos EUA era "o acidente esperado" e tem razão. Hegel explica que a necessidade se expressa através do acidente: "se não existissem as sub-prime, teria sido outra coisa. As sub-prime nos EUA era o elo fraco de nosso sistema. Se não tivesse acontecido isto e se não se tivesse sanado esta febre, então teria sido algo diferente, mas teria ocorrido de uma maneira ou de outra".
Para Greenspan, o que causou a crise?
"No fundo de tudo", disse ele, "está o fato de que, nestes últimos anos, os bancos estiveram vendendo pacotes de dívida aos investidores de todo o mundo. As [sub-prime] não teriam sido absolutamente um problema econômico se não tivéssemos garantido isto fora do país. Enquanto isto, a fixação de preços do complexo e das ODG, que contêm muita desta dívida, tem se mostrado não ser um êxito".
As crises burguesas (e da economia em geral) sempre são explicadas em termos subjetivos. Da mesma maneira que se assume que todos os consumidores têm um conhecimento universal das mercadorias, assim que as crises são provocadas, ou pelas decisões equivocadas dos governos e dos bancos centrais ou, como nesta última versão de Greenspan, pela natureza humana:
"A natureza humana passa da euforia ao temor", diz-nos Greenspan. "Neste sentido, os economistas modernos não conseguiram ter em conta o pânico na hora de elaborar suas perspectivas. O velho costume de auge e crise nestes anos não desapareceu, simplesmente ficou adormecido.
"Temos tido bolhas desde a bolha dos Mares do Sul de 1720 e, antes desta, a bolha das tulipas. É um dos aspectos inatos do comportamento dos seres humanos. Não podes acabar com elas, a menos que solapemos, muito profundamente, a economia, e não podes desativá-las, porque tens que esperar até que a febre seja interrompida.
"Não penso que nós prognosticadores devamos contabilizar a natureza humana inata ao nível em que deveríamos e poderíamos fazê-lo. A natureza humana inata não é previsível: repetimos o mesmo uma e outra vez, mas não podemos aprender. Podes passar por um período de pânico e pensas que as coisas sairão bem no final e tens de fazê-lo dez vezes e pensas que poderias fazê-lo a décima-primeira vez sem te preocupar. Mas te preocupas. Não há forma de alterar este padrão" (Daily Telegraph, 17/09/2007).
Há vantagens óbvias nesta interpretação. A natureza humana é permanente e, portanto, também o devem ser o capitalismo e todas as suas conseqüências (desemprego, crises, desigualdade, exploração etc.,). Segundo estas idéias, como o pobre da Bíblia, elas estão "sempre conosco". A natureza humana também é imponderável, mística e alguma coisa que não se pode compreender facilmente. Resulta que apelar para a natureza humana deve cessar toda discussão e questionamento. Não temos que explicar as crises, apenas constatar que estão aí. Conseqüentemente, é inútil buscar soluções ou alternativas. "Não há forma de alterar este padrão".
Na realidade, Greenspan tem alguma razão. Sob o capitalismo, as crises são inevitáveis e não há forma de alterar o padrão. Se aceitas o capitalismo, então deves aceitar as leis do capitalismo, isto é, deves aceitar os boom e as crises (agora nos círculos acadêmicos são chamadas de "correções"). Os reformistas e os keynesianos, como Will Hutton, que defendem remendar o sistema para "resolver o ciclo" através da intervenção estatal, do financiamento do déficit, de pôr em funcionamento a máquina de imprimir dinheiro e outras coisas similares, poderiam conseguir adiar durante um tempo uma crise, mas somente à custa de preparar uma crise ainda mais séria no futuro. É isso precisamente o que Darling e Brown acabam de fazer. Como disse Roger Bootle:
"Pelo menos, estes acontecimentos insinuam que a próxima reunião da MPC (Market Performance Committee) será uma maravilha. Aqueles membros que pensavam que as taxas de juros já eram suficientemente altas, logicamente agora votarão a favor de reduzi-las. Mas o presidente e seus aliados seguramente quererão resistir, por todas as razões que explicadas na semana passada numa carta ao Comitê do Tesouro. King avisou que uma ação para sustentar o sistema financeiro poderia ‘alentar riscos excessivos' e ‘lançar as sementes de futuras crises financeiras'" (Daily Telegraph, 17/09/2007).
Ponto Crítico?
Todo ciclo econômico começa com um boom e termina com uma recessão. É impossível, contudo, ser precisos sobre o ritmo do ciclo.
Esta crise financeira é um ponto de inflexão. Na opinião de Roger Bootle "é o 11 de setembro dos mercados financeiros". Pode significar ou não que se tenha alcançado o ponto crítico e que a economia mundial deslize em direção a uma recessão. Essa é uma possibilidade. Mas as leis que governam o comportamento dos mercados monetários não são as mesmas que regem o ciclo capitalista. A crise bursátil poderia ser a fagulha que acende uma crise geral, como aconteceu em 1929. Mas, se o processo subjacente ainda se encontra em sua curva ascendente, tal crise pode servir para extrair capital fictício do sistema e preparar o caminho para um novo período (mais longo ou curto) de crescimento econômico, como aconteceu em 1987.
A opinião geral dos economistas burgueses é que os bancos centrais e os governos podem manipular a economia e assim evitar as recessões. A maioria está de acordo que é impossível uma repetição do Crack de 1929 e da Grande Depressão. Assumem isso porque durante os últimos 20 anos aproximadamente só ocorreram duas recessões e relativamente suaves; por essa razão, pensam que finalmente conseguiram encontrar uma receita mágica para evitar crises como as passadas. É uma suposição totalmente errônea.
Esta crise na Grã-Bretanha demonstrou precisamente que todos os instrumentos para resolver a crise e evitar o pânico são inúteis. No momento da verdade, as pessoas se deixam levar pelo instinto de manada. Movem-se em massa como uma manada de gnus em estouro assustada pelo simples cheiro de um leão. Muitos comentaristas têm falado com desprezo desta conduta "irracional". Se é irracional, então essa mesma irracionalidade é a alma e o coração da economia de mercado capitalista.
O governo e o Banco da Inglaterra mostraram-se inúteis para evitar uma crise bancária importante ou para acalmar os nervos dos depositantes e investidores. No final, apenas conseguiram impedir o colapso total com a promessa de fundos ilimitados aos banqueiros, pagos dos bolsos dos contribuintes. Isto conseguiu deter temporariamente a espiral descendente, mas somente à custa de preparar o caminho para uma queda mais abrupta no futuro.
A crise terminou?
Terminou a crise na Grã-Bretanha? Em absoluto. Somente a intervenção sem precedentes do governo "resolveu" temporariamente a crise de Northern Rock, garantindo publicamente todos os depósitos do banco. A intervenção do ministro, Alistair Darling, foi obrigada devido ao espetáculo das longas filas no exterior do banco e dos bilhões evaporados de suas ações.
O governo não podia permitir que o Northern Rock afundasse e, com isto, possivelmente, desencadear uma reação em cadeia que provocasse o colapso de um banco depois do outro. Por essa razão, anunciaram que ajudariam ao banco. Esta medida temporariamente acalmou a situação, mas não solucionou nenhum dos problemas subjacentes. Pelo contrário, ao injetar ainda mais dinheiro (público) em um sistema enfermo, no final das contas pioraram os problemas que já existiam antes que estalasse a crise do Northern Rock.
Numa entrevista com Edmund Conway, editor econômico do Daily Telegraph (17/07/2007), Alan Greenspan avisa sobre a queda dos preços imobiliários na Grã-Bretanha. Prognostica que o mercado imobiliário britânico caminha em direção a uma "correção dolorosa" e adverte sobre as "dificuldades" que se avizinham para os proprietários britânicos de casas, quando o aumento das taxas de juros impedir o aumento dos preços imobiliários. O economista de 81 anos de idade, assessor de Gordon Brown, disse que os recentes aumentos dos preços imobiliários, sobretudo em Londres e no Sudeste, eram insustentáveis:
"Não pode durar [o boom]. Já se começa a ver o movimento das taxas hipotecárias; as fixas para dois anos começam a variar (...)". O que está dizendo é que as hipotecas subirão depois de um período prévio no qual as taxas baixas eram utilizadas como engodo para atrair as pessoas. "Vai mudar; mudou", afirma Greenspan.
Avisa também que a Grã-Bretanha é mais vulnerável que os EUA diante dos efeitos da crise creditícia: "a Grã-Bretanha está mais exposta que nós, no sentido de que tem taxas hipotecárias ajustáveis". Aqui, se refere aos empréstimos com taxa de juros variável escolhidos por muitas famílias frente aos de taxa de juros fixa.
Na mesma entrevista adverte:
"A inflação disparará bruscamente nos próximos anos, dobrará e, por esta razão, as taxas de juros poderiam alcançar cifras de duplo dígito nos próximos anos para evitar a inflação".
A crise não foi evitada ainda. Apenas acaba de começar. A partir de agora, depois de anos de baixa inflação, juros baixos e crédito fácil, veremos a restrição do crédito e a subida das taxas de juros. Estas medidas terão vários efeitos. Por um lado, um crédito mais escasso e caro reduzirá a demanda porque o poder aquisitivo dos consumidores se reduzirá, tanto na Europa quanto nos EUA. Por outro lado, junto com o aumento inevitável da inflação (os preços do petróleo alcançaram recentemente um novo recorde), afetará negativamente os lucros dos capitalistas e levará a uma redução da produção ou inclusive a uma recessão.
Para começar, uma queda dos lucros dos bancos conduziria a uma redução dos empregos no setor financeiro. Esta situação provocará uma nova contração da demanda, mais desemprego e bancarrotas na indústria da construção. Por sua vez, afetará a demanda de aço, cimento, tijolos e outras mercadorias, provocando uma nova recessão industrial.
O colapso dos preços imobiliários também provocaria uma recessão na indústria da construção. Nos EUA foram desalojadas dois milhões de moradias. Milhões de pobres norte-americanos encontram-se sem casa, enquanto que outros milhões lutam por pagar suas hipotecas de casas que já não valem o que devem pagar por elas. Recentemente, um escritor prognosticou o surgimento de uma subclasse de escravos hipotecários nos EUA.
Deixemos de lado os efeitos sociais de toda esta situação. De um ponto de vista estritamente econômico, ela é muito séria porque o boom da construção foi a principal força motriz da economia norte-americana durante estes últimos anos. Portanto, neste caso, não é difícil imaginar que uma recessão no setor imobiliário terá efeito na economia real em futuro não muito distante.
EUA: a chave da economia mundial
Estão presentes todos os ingredientes para uma espiral descendente, particularmente na importante economia dos EUA. A explosão da bolha tecnológica de 2000 levou a uma recessão que foi relativamente suave. Mas não há garantias de que a próxima seja igual. Na economia, o passado não é guia para o futuro. A crise atual nos mercados monetários suscitou a perspectiva de uma recessão no conjunto da economia. O dólar, apesar de tudo, continua sendo a "moeda de reserva" do mundo. Uma queda profunda de seu valor desestabilizaria a economia global.
A economia dos EUA ainda é um fator decisivo na economia mundial. Mas os estrategistas do capital estão cada vez mais preocupados com a sua saúde. Em 14 de agosto apareceu um artigo no Financial Times com o seguinte título: Learn from the fall of Rome, US warned. Este título diz muito da psicologia atual dos estrategistas do capital. Jeremy Grant escrevia em Washington:
"O governo norte-americano encontra-se sobre uma ‘plataforma em chamas' de políticas insustentáveis e déficits fiscais, cuidados sanitários com crônico sub-financiamento, imigração e compromissos militares no estrangeiro que ameaçam com uma crise se não se fizer algo logo, esta advertência procede de um alto cargo do governo.
"David Walker, interventor geral dos EUA, deu uma declaração extraordinariamente pessimista sobre o futuro de seu país num relatório que expõe o que ele denominava ‘estímulos aterradores' no longo prazo'.
"Entre eles, incluem-se aumentos ‘espetaculares' de impostos, redução dos serviços governamentais e dumping em grande escala por governos estrangeiros que possuem dívida norte-americana.
"Ao traçar paralelismos com a queda do Império Romano, Walker avisa que existem ‘similaridades surpreendentes' entre a situação atual dos EUA e os fatores que levaram à queda de Roma, inclusive o ‘declive dos valores morais e da cortesia política em casa, com excesso de confiança, excessos militares em terras estrangeiras e irresponsabilidade fiscal por parte do governo central'.
"'Soa familiar? Em minha opinião, é o momento de aprender da história e de dar os passos necessários para garantir que a República Norte-Americana seja a primeira a suportar a prova do tempo'. O desequilíbrio fiscal, escrevia, significa que os EUA estão no 'caminho que se dirige a uma explosão da dívida'".
Há uma grande incerteza em Wall Street com os quatro grandes bancos de investimento norte-americanos, quando estes tornem públicos os seus resultados do terceiro trimestre, que podem dar uma visão mais clara de todo o dano provocado pelas sub-prime e da crise creditícia deste verão. Os bancos norte-americanos viram como os preços de suas ações combinadas caíam 22% na metade do trimestre e existe a preocupação com sua exposição ao mercado das sub-prime. Lehman Brothers, Bear Stearns, Morgan Stanley e Goldman Sachs, todos tinham centenas de milhões de dólares. Merril Lynch avisou numa classificação reguladora que tinha feito "ajustes de valor" frente às perdas potenciais e admitia um "risco significativo" de nova exposição.
A comissão da Reserva Federal dos EUA se reuniu pela primeira vez desde a crise do verão para discutir uma redução das taxas de juros. Uma redução em 0,25% para 5% era considerada o resultado mais provável, mas no final cortaram 0,5%. A razão foi a pressão que o banco recebeu das empresas norte-americanas para que relaxasse a política monetária e assim evitar o "contágio", isto é, impedir que a crise das sub-prime se estendesse ao resto do mundo financeiro e arrastasse os EUA a uma recessão.
Paul McCully, do fundo de bônus Pimco, disse ao Daily Telegraph (17/09/2007) que a Reserva Federal poderia ter que reduzir mais as taxas de juros nos próximos três meses. "Necessita relaxar e relaxará substancialmente, não para ajudar a Wall Street, mas para garantir que um crescimento econômico mais débil não termine numa recessão". Por trás destes temores reside o nervosismo dos mercados monetários.
A inflação está aumentando, um fato que não se reflete de maneira adequada nas estatísticas do governo. Em 2000, quando Bush chegou à presidência, o ouro estava em 273 dólares a onça; o barril de petróleo, a 22 dólares e o euro a 0,87 dólares. Atualmente, o ouro supera os 700 dólares a onça; o petróleo está acima dos 80 dólares e o euro a quase 1,40 dólares. Alguns economistas dizem que o barril de petróleo poderia chegar a 125 dólares na próxima primavera. A última redução das taxas de juros serve somente para lançar mais combustível às chamas.
O boom nos EUA se baseou no consumo alimentado pelo crédito. Como explica Marx, o crédito é uma forma de expandir o mercado além de seus limites naturais. Mas este processo tem seus limites que, agora, foram alcançados. Se os capitalistas não podem encontrar mercados para suas mercadorias, não poderão conseguir mais-valia e estará garantida uma crise de superprodução.
O trabalhador norte-americano agora produz em média 30% a mais que há dez anos e os seus salários levam seis anos estancados. O aumento dos preços significa uma redução dos salários reais. O mesmo acontece com os pensionistas e outros setores com receitas fixas. Mesmo sem uma recessão, a população norte-americana sofrerá uma erosão de seu nível de vida. Muitos pobres norte-americanos já têm que lutar para cobrir suas necessidades. Agora, milhões estarão ameaçados com a perda de seus empregos e moradias. Esta situação provocará o aumento das greves e dos conflitos de classe a um nível não visto nos EUA desde os anos 1930.
A redução das taxas, no melhor dos casos, será um remédio temporário. O mercado imobiliário não se recuperará - este carnaval já terminou. Os bancos, depois de queimar os dedos, estão reduzindo os empréstimos e o inventário imobiliário é o maior desde que este dado é registrado. A queda dos preços imobiliários afetará o consumo e provocará uma contração da demanda. O efeito real da redução das taxas de juros será o aumento da inflação.
A inflação no mercado bursátil já era de causar pasmo antes disto. A capitalização de mercado das ações norte-americanas cresceu desde os 5,3 trilhões de dólares no final de 1994, até os 17,7 trilhões de dólares no final de 1999 e, no final de 2006, seu valor era de 35 trilhões de dólares, um aumento geométrico da relação preço-benefício. Esta situação não foi o resultado de uma expansão da atividade produtiva, mas do aumento massivo do capital fictício: mais dólares à caça do mesmo número de ativos.
"Tudo o que sobe, baixa". Esta idéia não se aplica somente à lei da gravidade, mas também à bolsa. O aumento vertiginoso dos preços das ações e imobiliários prepara o caminho para uma queda igualmente profunda no futuro. Apesar das medidas do FED, aparecerão os despejos, as perdas, as bancarrotas e a inadimplência.
Impacto global
Os bancos de investimento esperam que uma redução das taxas de fundos do FED consiga disparar novamente o mercado. Mas uma redução das taxas de juros não resolve os problemas fundamentais. Isto não elimina a insolvência entre os proprietários, os emprestadores hipotecários, os fundos de alto risco e os bancos. Longe de resolver o problema finalmente o piorará.
O mercado norte-americano já está inundado de liquidez devido às palhaçadas de Alan Greenspan que provocaram a atual bolha imobiliária, o maior boom especulativo da história. Ao reduzir o custo do empréstimo, o FED somente está criando uma maior extensão do crédito e o endividamento em todos os níveis. Com isto, prolongará e exacerbará as bolhas imobiliárias e creditícias. Como dizia um analista de mercado: "Uma redução das taxas de fundo do FED simplesmente é heroína para os viciados do crédito".
Do ponto de vista capitalista esta medida é a maior das irresponsabilidades. É melhor que as empresas entrem em bancarrota (incluídos os bancos) que reduzir as taxas de juros e alentar a "exuberância irracional" que finalmente minará o dólar e todo o sistema financeiro norte-americano. Cedo ou tarde, esta bolha explodirá e as conseqüências serão ainda mais penosas. Se as autoridades norte-americanas não estão dispostas a agir, os mercados o farão por elas.
Como vimos, a burguesia sempre tenta explicar o fenômeno econômico em termos de "confiança", como se fosse totalmente subjetivo. Não o é. A "confiança" dos investidores se baseia em considerações materiais muito reais. Enquanto a economia norte-americana avança, inclusive sobre bases nada sólidas, a burguesia de outros países está disposta a investir nela. Não prestavam aos níveis colossais da dívida e ao enorme déficit, incluído o déficit em conta corrente que está próximo aos 800 bilhões de dólares anuais. Os EUA necessitam recolher pelo menos 70 bilhões de dólares a cada mês para cobrir este déficit.
Os EUA passaram de maior credor a maior devedor do mundo, com um passivo externo líquido de três trilhões de dólares. A taxa de poupança caiu abaixo de zero pela primeira vez desde a Grande Depressão dos anos 1930. Na atualidade, a China e outros países asiáticos têm enormes quantidades de dólares e bônus norte-americanos e não têm interesse em provocar o colapso econômico dos EUA. Os norte-americanos se apóiam nesta situação. Mas para tudo há um limite. Cedo ou tarde, a natureza insana da economia norte-americana provocará uma fuga internacional do dólar. As baixas taxas de juros não levarão dinheiro aos mercados, provocarão uma maior desvalorização do dólar.
Ao reduzir as taxas de juros, a Reserva Federal está entrando em terreno muito perigoso. A economia norte-americana está desafiando as leis da gravidade. É tão pouco sólida que é impensável que a situação atual possa durar muito. Finalmente, os estrangeiros se preocuparão com o fato de que os dólares e os bônus que têm não valerão sequer o papel sobre o qual estão escritos. E por que iriam querer emprestar dinheiro a baixas taxas de juros numa moeda que se deprecia, quando podem tomar esses mesmos fundos e emprestá-los a taxas de juros mais altas numa moeda que está se valorizando?
O resto do mundo não estará eternamente disposto a financiar a tendência dos EUA de consumir mais do que produz. Já há sinais desta situação. Paradoxalmente, parece que os primeiros a se aterrorizarem foram os sauditas, os principais aliados de Washington no mundo árabe, que têm grandes investimentos nos EUA. A Arábia Saudita se negou a reduzir pela primeira vez as taxas de juros no mesmo nível do FED; é um sinal de que o rico reino petrolífero do Golfo se prepara para romper com o dólar. Esta situação supõe o risco de fuga do dólar em todo o Oriente Médio.
Por seu lado, o governo chinês iniciou uma campanha organizada de ameaças econômicas contra os EUA, insinuando que poderia liquidar suas enormes reservas de ativos norte-americanos se Washington impor sanções comerciais para forçar uma revalorização do Yuan. Henry Paulson, o secretário do tesouro norte-americano, disse que qualquer sanção deste tipo minaria a autoridade norte-americana e "desencadearia um ciclo global de legislação protecionista". Estes fatos indicam os riscos reais agora enfrentados pelos EUA e por toda a economia mundial. O que realmente transformou a crise de 1929 na Grande Depressão, que durou dez anos até a explosão da Segunda Guerra Mundial, foram o protecionismo, as guerras comerciais e as desvalorizações competitivas que minaram o comércio mundial.
Greenspan prognostica que o dólar cairá provavelmente nos próximos anos devido aos problemas do déficit norte-americano. "Terá que haver uma correção e, finalmente, uma das coisas que se verá afetada será a sua moeda". Uma "correção" significa recessão.
Jim Rogers, antigo sócio de George Soros, assinalou que a Reserva Federal brinca com fogo ao reduzir de maneira tão agressiva as taxas de juros, num momento em que o dólar ainda está pressionado. O risco é que a fuga dos bônus norte-americanos possa subir a rentabilidade de longo prazo que forma a base do preço do crédito para a maioria das hipotecas, empurrando com isto o mercado imobiliário a uma crise ainda mais profunda.
"Se Ben Bernanke começa a administrar esta situação pressionando ainda mais rápido do que já está fazendo, vamos ter uma recessão séria. O dólar está desmoronando e o mercado de bônus se dirige ao colapso. Haverá muitos problemas".
Em certa etapa, vários dos investidores estrangeiros perderão a confiança na economia dos EUA. Então, veremos o mesmo tipo de cenas que vimos há pouco na Grã-Bretanha, mas em escala global. Será uma fuga do dólar similar à do Northern Rock, e pelas mesmas razões. Se os investidores estrangeiros temem que não conseguirão recuperar o seu dinheiro de "EUA S.A.", farão fila para retirar os seus fundos. Quando aconteceu na Grã-Bretanha, o Banco da Inglaterra interveio para apoiar o banco e assim garantir seus depósitos. Mas quem ajudará à economia norte-americana? O Banco da Inglaterra é o "emprestador como último recurso" na Grã-Bretanha, mas os EUA são o "emprestador como último recurso" de todo o mundo.
No recente período tornou-se moda dizer que a crise nos EUA não afetará o resto do mundo. Já tratei desta idéia em meu artigo publicado recentemente: A Situação Internacional e suas Perspectivas, publicado em www.elmilitante.org. Nele são refutados todos os argumentos dos economistas burgueses sobre a globalização, que precisamente significa que a economia mundial está mais integrada que em qualquer outro momento da história. Qualquer acontecimento importante numa economia importante afetará as demais. Isto se aplica, sobretudo, aos EUA.
Esta interdependência global, revelada com clareza nesta última crise, começou nos EUA e rapidamente se estendeu à Europa e Grã-Bretanha. Agora a crise bancária na Grã-Bretanha afeta o resto do mundo, quando os depositantes, investidores e poupadores absorvem as lições da gestão do quinto maior banco da Grã-Bretanha que quase provoca o colapso geral. Mike Whitney explica isto muito bem:
"O próprio furacão econômico de força cinco que acaba de afetar a Grã-Bretanha se dirige aos EUA e ganha força no caminho.
"Um tsunami mais poderoso se aproxima sobre os EUA, onde muitos dos bancos participaram das mesmas práticas e estão utilizando o mesmo modelo empresaria que o Northern Rock. Os investidores já não compram mais ODG, MBS nem nada relacionado com o setor imobiliário. Ninguém os quer, sejam sub-prime ou não. Isso significa que os bancos norte-americanos logo sofrerão o mesmo tipo de vendaval econômico que agora sofre a Grã-Bretanha. A única diferença é que a economia norte-americana já está sofrendo a crise imobiliária e a bolsa está cada vez mais inquieta.
"Por isso, o secretário do tesouro, Henry Paulson, saiu correndo ontem para a Grã-Bretanha, para ver se podia calcular uma forma de evitar a extensão do contágio".
A crise de 1997-1998 começou na Ásia e depois se estendeu a Turquia, Polônia, Rússia, Brasil e Argentina, onde provocou o colapso de 2001. Isto criou uma insurreição nas ruas de Buenos Aires e o colapso do governo de De la Rua. Estão se preparando acontecimentos similares; podem acontecer mudanças repentinas em qualquer país do mundo. É a expressão da instabilidade subjacente do capitalismo em escala mundial. Não é casualidade que Greenspan intitule sua recente autobiografia assim: A era da turbulência.