Introdução
Depois da revolução russa de 1917, a revolução chinesa de 1949 foi o segundo acontecimento mais importante da história. Levou à expropriação dos latifundiários e à abolição do capitalismo, acabando com o domínio imperialista em enorme zona do globo.
Contudo, enquanto a revolução russa levou à formação de um Estado operário relativamente são, estabelecido pela classe trabalhadora sob a direção do Partido Bolchevique - um partido revolucionário com uma perspectiva internacionalista -, a revolução chinesa de 1949 levou à criação imediata de um Estado operário deformado estalinista.
As condições mais elementares da democracia operária estavam ausentes desde o início. Não havia sovíetes, nem controle operário, nem verdadeiros sindicatos independentes do Estado, nem uma autêntica direção marxista. Isto aconteceu porque a revolução foi levada a termo sob a direção dos estalinistas à frente de um exército camponês e não se baseou na classe trabalhadora urbana. O exército camponês é o instrumento clássico do domínio bonapartista. Mao, baseando-se neste exército camponês, manobrou entre as classes de uma maneira bonapartista, utilizando o Exército Vermelho como um aríete, primeiro contra os latifundiários e, depois, contra os capitalistas.
A vitória da revolução chinesa foi possível devido a uma série de condições objetivas peculiares. Em primeiro lugar, a razão principal da China ter adotado essa forma foi a incapacidade de intervenção do imperialismo estadunidense. O segundo fator foi a incapacidade da China de avançar sob o capitalismo e sob o regime burguês totalmente degenerado de Chiang Kai Shek. O outro fator foi a existência de um poderoso Estado operário deformado estalinista na Rússia, do outro lado da fronteira chinesa.
Mao Tse-Tung e os estalinistas formaram na China um Estado à imagem da Rússia estalinista - a caricatura burocrática monstruosa de um Estado operário. Por essa razão, a revolução chinesa de 1949 começou do ponto onde acabou a revolução russa.
Temos de lembrar que a revolução aboliu o capitalismo na China, apesar das perspectivas da direção do Partido Comunista Chinês. A perspectiva original de Mao era a de cem anos de capitalismo. Defendia a teoria estalinista das duas etapas, que em um país atrasado e subdesenvolvido não era possível uma revolução socialista e, por tanto, a primeira etapa deveria ser "democrática", isto é, burguesa. Somente depois de que o capitalismo tivesse se desenvolvido, seria possível a luta pelo socialismo. Esta teoria foi refutada pelos fatos a partir do momento em que os comunistas chineses chegaram ao poder.
Nas etapas iniciais, Mao formou uma "Frente Popular" com uma série de partidos burgueses. Isto fez com que alguns pensassem que Mao "trairia" a revolução, como o tinha feito o Partido Comunista na Espanha e em outros países onde a Frente Popular foi utilizada para frear o movimento da classe trabalhadora. Contudo, em 1949 existia uma diferença fundamental na China. O poder estatal estava nas mãos de Mao, os "corpos de homens armados" não estavam controlados pela burguesia. A burguesia fugiu junto com Chiang Kai Shek para Taiwán. Não havia uma burguesia efetiva com que formar uma aliança real.
Nestas condições, a Frente Popular se converteu em um meio de frear os trabalhadores nas cidades, para que não fossem além dos limites impostos pelo regime estalinista. Mas, como não existia nenhuma "burguesia progressista" com que pudessem construir uma China capitalista "democrática", capaz de dirigir eficazmente a economia e o país, e como o verdadeiro poder estatal estava nas mãos do Exército Vermelho, eles tiveram de se encarregar dos altos postos de comando da economia. Isto, em certo sentido, foi a confirmação, de maneira destorcida, da teoria da revolução permanente.
Apesar da revolução chinesa não ter adotado a forma de uma revolução proletária, a tendência marxista apoiou a liberação das forças produtivas das camisas de força do capitalismo e do feudalismo, colocando os alicerces para o desenvolvimento da economia, que, de outra forma, não teria sido possível. Não obstante isso, os marxistas explicaram que, embora o Partido Comunista e a burocracia estatal fossem capazes de desempenhar um papel relativamente progressista no desenvolvimento da China, estas mesmas deformações burocráticas significavam que as massas chinesas necessitariam realizar uma segunda revolução, política, para avançar em direção ao verdadeiro socialismo, em direção ao autêntico poder operário.
O crescimento da economia chinesa depois de 1949 foi espetacular. Basta comparar o desenvolvimento econômico da China e da Índia no período de 1949-1979. Os dois países começaram mais ou menos no mesmo nível, mas o crescimento na China foi muito maior durante este período. Isto somente se pode explicar pelo fato de que a China tinha uma economia centralizada, planificada e propriedade do Estado. Embora sob o regime de uma genuína democracia operária se poderia ter obtido muito mais, a economia planificada com Mao foi um enorme passo a frente e permitiu o crescimento que forma a base sobre a qual descansa a China moderna atual.
Contudo, a burocracia tinha muitas deficiências. Em particular, tinha uma estreita perspectiva nacionalista, que era a característica de todos os regimes estalinistas. Se a China e a Rússia fossem autênticos estados operários teriam formado, em conjunto, uma federação socialista com os países do Leste Europeu e desenvolvido um plano de produção internacional, utilizando de maneira racional e combinada os recursos materiais e humanos de todos estes países. Em vez disto - como tinham prognosticado os marxistas - a perspectiva nacional das burocracias chinesa e russa levou finalmente a um enfrentamento.
Isto levou à cisão sino-soviética de 1960. A burocracia soviética tentara manter a China dentro de sua "esfera de influência". Isto era intolerável para a burocracia chinesa; além disto, Mao não tinha chegado ao poder apoiado no avanço do exército russo (como a maioria dos países do Leste Europeu); tinha, pelo contrário, sua própria base independente, como Tito na Iugoslávia. Os marxistas previram, no devido momento, que Stalin teria de enfrentar outra dissidência como a de Tito. Quando estalou o conflito, os estalinistas russos retiraram toda a ajuda, especialistas etc., assestando, naquele momento, um duro golpe ao desenvolvimento chinês. Foi depois disto que a burocracia chinesa embarcou no caminho totalmente reacionário da autarquia, isolando a China do resto da economia mundial e, dessa forma, da divisão internacional do trabalho.
Mao tentou camuflar o que realmente estava fazendo com denúncias ao "revisionismo" da burocracia soviética. Ele precisava de alguma justificativa ideológica e teórica para a ruptura com a União Soviética. Mas, essencialmente, a burocracia chinesa não era diferente de sua homóloga soviética. Tentava construir sua própria versão do "socialismo em um só país", algo impossível de conseguir inclusive em um país com dimensões continentais.
Deste modo, uma China atrasada e isolada teve de desenvolver os meios de produção partindo de um nível muito baixo e sem sequer a ajuda da técnica mais avançada da Rússia. Isto significou que o desenvolvimento na China foi conseguido a um custo enorme, tanto em termos de recursos humanos quanto materiais. Ainda assim, a China, de país colonial atrasado - o pátio de recreio dos imperialistas - se transformou numa força poderosa.
Apesar de suas deficiências, a burocracia chinesa conseguiu o que a decadente burguesia chinesa não tinha conseguido fazer nem de longe, criar uma verdadeira unidade nacional e um Estado moderno pela primeira vez na história do país. A revolução agrária também foi realizada rapidamente e a nacionalização dos meios de produção colocou os alicerces para o desenvolvimento da economia chinesa em escala sem precedentes.
Entre 1949 e 1957, a taxa média de crescimento anual da economia chinesa foi de 11%. No período de 1957 a 1970, a produção industrial continuou crescendo 9%, muito mais que no mundo capitalista (no mesmo período, a taxa de crescimento da Índia foi de menos da metade da chinesa). Em 1952, a China ainda produzia mil tratores ao ano, uma indicação de que a agricultura ainda era muito primitiva. Em 1976, a China fabricava 190 mil tratores ao ano.
Tudo isto se obteve apesar do transtorno provocado por aventuras como o Grande Salto Adiante de 1958 e a Revolução Cultural de 1966. O Grande Salto Adiante foi responsável pela séria queda da produção agrícola, provocando a fome que custou a vida de 15 milhões de chineses. Entre 1967 e 1968, houve uma queda de 15% da produção industrial, provocando uma queda profunda dos níveis de vida das massas. Depois destes dois importantes contratempos no desenvolvimento econômico, a economia se recuperou graças ao plano estatal.
Inclusive em 1974, quando o resto do mundo se encontrava em recessão - a primeira recessão simultânea desde a Segunda Guerra Mundial -, em que houve uma queda global da produção mundial de 1%, a China cresceu 10%. Isto se compara à URSS dos anos 1930 e revela as vantagens reais de uma economia planificada e nacionalizada.
Tudo isto produziu o efeito de mudar a sociedade chinesa e de introduzir o país no século XX. Antes de 1949, a taxa de analfabetismo na China era de 80%. Em 1975, 93% das crianças estavam na escola. Houve um enorme avanço em saúde pública, moradias etc. A terrível pobreza que existia antes da revolução foi erradicada, com uma melhoria real dos níveis de vida e também uma série de conquistas sociais importantes. A esperança de vida em 1945 era de 40 anos, em 1970 tinha alcançado os 70 anos, próximo da maioria dos países capitalistas avançados. A situação da mulher também melhorou tremendamente, como o demonstra o exemplo da abolição de vendar os pés das mulheres e a aplicação de outra série de reformas.
Trotsky sobre a burocracia
Apesar dos enormes êxitos, a burocracia não era uma camada social historicamente necessária ao desenvolvimento da economia chinesa. O plano não precisava da burocracia para funcionar. Pelo contrário, o plano funcionava apesar da burocracia. Na recopilação de artigos e cartas de Trotsky, publicada em En Defensa del Marxismo, há um texto escrito em outubro de 1939 que diz o seguinte:
"Se a canalha bonapartista é uma classe, isto significa que não é um aborto, mas um filho viável da história. Se seu parasitismo saqueador é "exploração" no sentido científico do termo, isto quer dizer que a burocracia possui um futuro histórico como classe dirigente indispensável de um sistema dado de economia" (Leão Trotsky, Nuevamente y una vez más sobre la naturaleza de la URSS, oito de outubro de 1939. Incluído em En Defensa del Marxismo. Barcelona, Editorial Fontamara, 1977, p. 46).
Trotsky explicava que, pelo contrário, a burocracia não tinha futuro histórico. Formou-se com a degeneração da União Soviética em condições de extremo atraso e isolamento. O regime chinês foi modelado de maneira semelhante à Rússia estalinista e a burocracia chinesa desempenhou o mesmo papel de sua homóloga soviética.
A existência desta burocracia significava que, apesar de toda a retórica, existiam privilégios sociais e desigualdades dentro da sociedade chinesa. Em 1976, por exemplo, o salário de um trabalhador industrial trabalhando 48 horas semanais era de 12 dólares mensais. Os trabalhadores qualificados ganhavam 120 dólares ou mais. Existia um diferencial de salário de 10 a 1.
Na URSS, Lênin tinha aceitado um diferencial de 4 a 1, um "compromisso burguês" como ele o definiu, como uma forma de conseguir colocar a economia em movimento, mas era visto como uma medida temporária, enquanto os bolcheviques esperavam que se estendesse a revolução mundial. Os bolcheviques tinham uma perspectiva internacionalista e viam sua única salvação real na revolução mundial. Sua perspectiva era que, uma vez derrotado o capitalismo pelo proletariado dos países desenvolvidos, então seria possível o desenvolvimento harmonioso da economia, porque a técnica mais moderna destes países estaria disponível para a atrasada Rússia. Desgraçadamente, a revolução foi derrotada em um país após outro e a Rússia continuou ainda mais isolada, assim foi colocado o último marco para o processo de degeneração burocrática.
A burocracia chinesa não considerava os diferenciais da mesma maneira que os bolcheviques. Os diferenciais de salário depois da revolução chinesa não eram vistos como um "compromisso burguês" temporário imposto pelo isolamento da revolução e pela natureza subdesenvolvida da economia, mas como a consolidação da riqueza e privilégios da burocracia. Os burocratas viviam bem acima das condições dos trabalhadores comuns. Estava implícita nesta situação a possível restauração do capitalismo em alguma etapa.
Defenderiam a economia planificada enquanto lhes garantisse o poder, a renda, privilégios e prestígio. Mas, como Trotsky tinha assinalado na União Soviética, a burocracia não se contentaria simplesmente em beneficiar-se com os privilégios baseados em sua posição administrativa na sociedade, eles queriam estar capacitados a transmiti-los a seus filhos. Para que isto fosse possível, teriam de mudar as relações de propriedade. Trotsky explicava o seguinte no nono capítulo de A Revolução Traída:
"Contudo, admitamos que nem o partido revolucionário nem o contra-revolucionário se apossem do poder. A burocracia continua à cabeça do Estado. A evolução das relações sociais não cessa. É evidente que não se pode pensar que a burocracia abdicará em favor da igualdade socialista. Já se vê obrigada, apesar dos inconvenientes que isto apresenta, a restabelecer a hierarquia e as condecorações; no futuro, será inevitável que busque apoio nas relações de propriedade. Provavelmente, se objetará que pouco importa ao funcionário elevado as formas de propriedade de onde obtém sua renda. Isto é ignorar a instabilidade dos direitos da burocracia e o problema de sua descendência. O recente culto da família soviética não caiu do céu. Os privilégios, que não podem ser legados aos filhos, perdem a metade de seu valor; e o direito de fazer um testamento é inseparável do direito da propriedade. Não basta ser diretor de truste, é preciso ser acionista. A vitória da burocracia nessa esfera decisiva criaria uma nova classe proprietária" (Leão Trotsky. A Revolução Traída).
E continua:
"Qualificar de transitório ou de intermediário o regime soviético é descartar as categorias sociais acabadas como o capitalismo (incluindo o "capitalismo de Estado") e o socialismo. Mas esta definição é em si mesma insuficiente e suscetível de sugerir a falsa idéia de que a única transição possível do regime soviético conduz ao socialismo. Entretanto, o retrocesso em direção ao capitalismo continua sendo perfeitamente possível. Uma definição mais completa seria, necessariamente, mais longa e mais pesada" (ênfase nossa).
"A URSS é uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo em que: a) as forças produtivas são ainda insuficientes para dar a propriedade do Estado um caráter socialista; b) a tendência à acumulação primitiva, nascida da sociedade, se manifesta através de todos os poros da economia planificada; c) as normas de distribuição, de natureza burguesa, encontram-se na base da diferenciação social; d) o desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que melhora lentamente a condição dos trabalhadores, contribui para formar rapidamente uma camada de privilegiados; e) a burocracia, ao explorar os antagonismos sociais, converteu-se numa casta descontrolada, estranha ao socialismo; f) a revolução social, traída pelo partido governante, vive ainda nas relações de propriedade e na consciência dos trabalhadores; g) a evolução das contradições acumuladas pode conduzir ao socialismo ou lançar a sociedade em direção ao capitalismo; h) a contra-revolução em marcha em direção ao capitalismo terá de romper a resistência dos trabalhadores; i) os trabalhadores, ao marchar em direção ao socialismo, terão de derrubar a burocracia. O problema será resolvido definitivamente pela luta de duas forças vivas no terreno nacional e internacional" (ênfase nossa).
"Naturalmente os doutrinários não ficarão satisfeitos com uma definição tão hipotética. Gostariam de fórmulas categóricas: sim, sim; não, não. Os fenômenos sociológicos seriam muito mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre contornos precisos. Mas nada é mais perigoso que eliminar, para se alcançar a precisão lógica, os elementos que desde já contrariam nossos esquemas e que, amanhã, podem refutá-los. Em nossa análise tememos, acima de tudo, violentar o dinamismo de uma formação social sem precedentes e que não tem analogia. O objetivo científico e político que perseguimos não é o de dar uma definição acabada de um processo inacabado, mas o de observar todas as fases do fenômeno e separar delas as tendências progressistas e as reacionárias, revelar sua interação, prever as diversas variantes do desenvolvimento ulterior e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação" (Ibid.).
Como podemos ver, na perspectiva de Trotsky o regresso ao capitalismo era uma possibilidade concreta. Disse que a economia nacionalizada e planificada não se encontrava a salvo nas mãos desta burocracia e isto implicava a ameaça de restauração capitalista em algum momento.
Por definição, um Estado operário deformado é um regime de transição entre o capitalismo e o socialismo que, ou será derrocado pela revolução política ou recua em direção ao capitalismo. Historicamente começou a existir sobre a base da degeneração da revolução russa. É uma fase desnecessária no desenvolvimento das forças produtivas. Não era uma fase inevitável ou uma forma social necessária. Se a revolução russa tivesse se estendido aos países desenvolvidos nos anos 1920 o estalinismo nunca teria existido.
Apesar de suas limitações, contudo, estes regimes desenvolveram os meios de produção em nível nunca visto. Nesse sentido tinham um conteúdo progressista. Este nascia da propriedade estatal dos meios de produção e da economia planificada. Trotsky analisou isto em A Revolução Traída e fez um prognóstico: na medida em que o regime pudesse desenvolver a economia de um país atrasado poderia conseguir algum êxito. Mas quanto mais sofisticada fosse a economia, a burocracia mais se converteria em um freio ao seu desenvolvimento.
Quando a economia cresceu, a burocracia começou a consumir uma proporção cada vez maior de riqueza. Com isto chegou o desperdício, a corrupção e o saque em grande escala da riqueza produzida pela classe operária e pelos camponeses. Mais importante ainda, quando a economia se desenvolveu e se fez mais sofisticada, mais evidente se tornava que o sistema de gestão burocrática deste regime não conseguiria dirigir cada detalhe de uma economia cada vez mais complexa. A burocracia deixou de ser um freio relativo ao desenvolvimento das forças produtivas para se converter em um freio absoluto.
Trotsky também insistiu na questão da produtividade. Como veremos isto se converteria no elemento fundamental para a compreensão de como e porque os regimes estalinistas entraram em colapso na Europa do Leste e na União Soviética. Trotsky explica o seguinte no primeiro capítulo de A Revolução Traída:
"Os coeficientes dinâmicos da indústria soviética não têm precedentes. Mas não são suficientes para resolver o problema, nem hoje nem amanhã. A URSS sobe partindo de um nível espantosamente baixo, enquanto que os países capitalistas, pelo contrário, descem a partir de um nível muito elevado. A relação de forças atuais não está determinada pela dinâmica do crescimento, mas pela oposição da potência total dos dois adversários, tal como se expressa com as reservas materiais, a técnica, a cultura e, antes de tudo, com o rendimento do trabalho humano. Logo que abordamos o problema a partir deste ângulo estático, a situação muda com grande desvantagem para a URSS" (Ibid.).
Acrescentou o seguinte ponto significativo:
"Mas, em si mesma, a pergunta de quem triunfará, não somente no sentido militar da palavra, mas acima de tudo, no sentido econômico, coloca-se perante a URSS em escala mundial. A intervenção armada é perigosa. A introdução de mercadorias a baixo preço, acompanhando os exércitos capitalistas, seria infinitamente mais perigosa" (Ibid.).
Trotsky, já em agosto de 1925, escrevia uma análise muito cuidadosa e profunda dos problemas enfrentados pelo jovem Estado soviético no texto Aonde vai a Rússia? (mais tarde conhecido como Em direção ao capitalismo ou em direção ao socialismo?). Nesta obra, Trotsky coloca a questão de forma terminante: "Que significa o ritmo de nosso desenvolvimento do ponto de vista da economia mundial?". E Trotsky responde à pergunta:
"Graças precisamente aos nossos êxitos, entramos no mercado mundial, isto é, no sistema mundial de divisão do trabalho. E, com isto, encontramo-nos sempre no cerco capitalista. Nestas condições, o ritmo de nosso desenvolvimento econômico determinará a força de nossa resistência com relação à pressão econômica do capitalismo mundial e à pressão militar e política do imperialismo mundial" (Leão Trotsky. Naturaleza e dinâmica del capitalismo y la economia de transición. Editorial CEIP).
Trotsky deu uma grande ênfase a esta questão da taxa de crescimento da economia soviética em 1925. Insistia no seguinte: "O decisivo é precisamente a velocidade da marcha!". E acrescentava:
"É evidente que o nosso ingresso no mercado mundial supõe que não somente aumentam nossas boas perspectivas, mas também os perigos. A razão profunda deste fenômeno é sempre a mesma: a forma atomizada de nossa agricultura, nossa inferioridade técnica e a atual enorme superioridade de produção do capitalismo mundial com relação a nós" (Ibid.).
"A superioridade econômica fundamental dos Estados burgueses consiste em que o capitalismo produz, ainda, mercadorias mais baratas e ao mesmo tempo melhores que o socialismo. Em outras palavras: a produtividade do trabalho se encontra, ainda, em um nível mais elevado nos países que vivem segundo a lei da inércia da velha cultura capitalista que no país que não faz mais que começar a aplicar os métodos socialistas em condições de barbárie herdadas".
"Conhecemos a lei fundamental da história: a vitória pertence em última instância ao sistema que assegure à sociedade humana um nível econômico mais elevado".
"A disputa histórica será decidida - embora não seja de um só golpe - pelo coeficiente de comparação da produtividade do trabalho" (Ibid.).
O que Trotsky diz aqui é de imensa importância para a compreensão do que ia acontecer, décadas depois, nos antigos países estalinistas. Embora a economia planificada tenha permitido à União Soviética realizar um enorme progresso no desenvolvimento dos meios de produção, ainda se encontrava muito atrasada com relação aos países capitalistas desenvolvidos. Mas, na medida em que a burocracia desenvolvia as forças produtivas, o regime estalinista tinha garantida uma relativa estabilidade. Na realidade, nos anos 1930, não somente se desenvolveram as forças produtivas, mas também se desenvolveram em ritmo mais rápido que no mundo capitalista. Isto explica a resistência do regime estalinista naquele período e também porque as tendências pró-capitalistas dentro da burocracia não podiam se cristalizar ainda como uma força viável.
Trotsky, contudo, também explicou que em determinada etapa de seu desenvolvimento a burocracia se converteria, de freio relativo, em freio absoluto para o desenvolvimento dos meios de produção. A taxa de crescimento se debilitaria e isto reabriria a possibilidade da restauração capitalista. Foi isto o que aconteceu nos anos 1960 e 1970. O crescimento econômico da União Soviética primeiro foi desacelerado até alcançar um nível comparável com o Ocidente capitalista e depois estancou.
Uma vez chegado este ponto, segundo Trotsky, havia duas possibilidades: ou os trabalhadores derrubariam a burocracia, enquanto preservavam a economia planificada sob controle operário e administração democrática da sociedade, ou se produziria o regresso contra-revolucionário ao capitalismo.
A história demonstrou que a última possibilidade foi o destino destes regimes. Na Rússia e Europa do Leste, que se encontravam em crise desde os anos 1970, vimos o colapso do sistema, quando ficou claro que já não se podia mais desenvolver a economia. Na Rússia, o sistema colapsou repentinamente e passaram vários anos antes que a economia finalmente se estabilizasse e começasse a se desenvolver uma vez mais sobre bases capitalistas.
A burocracia chinesa tira conclusões
Na China, as coisas se desenvolveram de forma algo diferente. A burocracia chinesa observou cuidadosamente o que estava acontecendo na Rússia. A ala da burocracia representada por Deng tirou lições da experiência russa e de seu próprio passado recente. A China tem dimensões continentais com uma enorme população, mas inclusive este imenso país não poderia se desenvolver isolado do resto da economia mundial. O "socialismo em um só país" demonstrou ser um fracasso. O regime autárquico que a burocracia tentou construir com Mao revelou finalmente todas as suas limitações.
A ala de Deng observou a Rússia e a Europa do Leste entrando em crise e os tumultuosos acontecimentos de 1989-1991, quando, um depois do outro, estes regimes entraram em colapso e se completou a transição ao capitalismo. Viram como a toda poderosa burocracia russa, um dia monolítica, colapsava como um castelo de cartas. Em todos os antigos países estalinistas da Europa do Leste e a União Soviética - especialmente na antiga União Soviética - a economia retrocedia com uma enorme destruição das forças produtivas e a burocracia perdia o controle do processo. Demorou algum tempo antes que a economia se estabilizasse e começasse a crescer novamente. Nestes acontecimentos a burocracia chinesa podia ver seu possível futuro. Portanto, tiraram a conclusão de que não podiam permitir que na China acontecesse o mesmo e que era necessária alguma mudança política para evitar um colapso semelhante em seu próprio país.
No mesmo período, os acontecimentos da Praça da Paz Celestial revelaram que a burocracia chinesa poderia enfrentar um destino semelhante. Isto, junto ao colapso da União Soviética, teve um tremendo impacto no pensamento da burocracia chinesa. Desde o início começou a utilizar os mecanismos do mercado para conseguir aumentar a produtividade, enquanto mantinha o princípio de que o setor estatal deveria ser dominante, até chegar à aceleração do processo que finalmente levaria à situação atual onde o setor dominante é o privado.
Na China, de maneira semelhante ao que aconteceu na União Soviética, enquanto crescia a economia com Mao, também crescia o apetite dos burocratas e a ausência de coordenação entre os diferentes setores da economia se ampliava. Isso explica fenômenos como o Grande Salto Adiante ou a Revolução Cultural. Mao estava tentando impulsionar a economia com estes métodos enquanto ao mesmo tempo tentava frear os excessos da burocracia que estavam pondo em risco a estabilidade do sistema.
Os excessos de setores da burocracia punham em risco os interesses da casta burocrática em seu conjunto. Neste sentido era similar ao que Stalin fez nos anos 1930, atacando os elementos dentro da burocracia, mas sempre com o objetivo de preservar a estabilidade do regime. Stalin, inclusive, teve de executar burocratas, golpeando a ala mais corrupta para salvar o conjunto da burocracia. Na Revolução Cultural, existia um elemento disto quando se atacou uma camada da burocracia chinesa. Demagogicamente, Mao atacou os "elementos capitalistas" para consolidar sua própria posição, enquanto, ao mesmo tempo, limitava as formas mais extremas de corrupção que estavam minando todo o sistema.
Essencialmente, a Revolução Cultural não foi, como se pretendia no Ocidente, um movimento dos trabalhadores e dos jovens impondo sua vontade sobre os burocratas. Mandel e companhia compararam a Revolução Cultural com a Comuna de Paris, demonstrando assim sua total incapacidade de compreender o que realmente estava acontecendo. Confundiram o movimento desatado por uma ala da burocracia chinesa, dirigido contra outra ala da burocracia, com a genuína insurreição dos trabalhadores de Paris em 1871. Não entendiam eles que a Revolução Cultural sempre esteve controlada de cima, por Mao, como árbitro supremo. Como já explicamos, Mao, com seus métodos, longe de impulsionar a economia para frente, apenas conseguiu um maior desbaratamento e caos. Durante três anos houve o colapso completo tanto da produção agrícola quanto da industrial, todas as escolas e universidades foram fechadas. A ala dirigida por Deng Xiaoping ficou horrorizada e começou a tirar conclusões desta experiência.
Devemos entender que uma economia planificada somente pode funcionar eficazmente se existe o controle da classe operária em todos os níveis. O plano deve ser discutido em cada um dos níveis pelos trabalhadores. Por isso, a democracia operária, o controle e a gestão operária são elementos essenciais no funcionamento de um plano. Os trabalhadores, que também são os consumidores, têm um interesse material em garantir que o plano funcione eficazmente em todos os níveis. O burocrata somente está interessado em cumprir sua quota, independentemente da qualidade ou de se está coordenado com o resto da produção, porque assim ele conseguirá sua recompensa. Além disto, uma burocracia centralizada não pode decidir todos os aspectos da produção. Quando tudo depende de um comando central burocrático se produzem terríveis distorções e ineficácias. O plano global deve ser controlado em todos os níveis pelos trabalhadores. Isto explica porque o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural fracassaram. Não se pode lutar contra a burocracia com meios burocráticos. Assim, estes dois episódios simplesmente acabaram intensificando os transtornos provocados pela burocracia.
O que aconteceu na Revolução Cultural é significativo para se entender os últimos acontecimentos com Deng. A burocracia maoísta tinha se baseado nas massas para golpear um setor da burocracia. Com isto, de maneira bonapartista, tinha desatado forças desde baixo embora nisto existisse um risco implícito. Permitir que as massas fossem mais longe implicava a possibilidade de se perder o controle por parte da burocracia. Uma vez que tinham freado os excessos de uma ala da burocracia, Mao e seus seguidores reforçaram a luta contra o movimento que tinham desatado, em 1969 deram marcha ré. Assim, a principal palavra de ordem: "as massas têm razão, que o povo diga o que é correto" se converteu em: "o que é correto é o que está na mente do presidente Mao".
Tendo sido travada a ação das massas, a correlação de forças inevitavelmente tornou-se favorável à ala pró-capitalista. Uma vez que Mao tinha detido a ação das massas, então a correlação de forças se determinava dentro da burocracia. Mao tinha boas razões para se inquietar com as massas, porque tinha havido diferentes ondas de ação grevista e movimentos desde baixo no período precedente, como as que ocorreram em 1966-1967 e em 1976, quando houve o ressurgimento das organizações operárias para corrigir as ofensas em matéria de salários e condições de vida. O que vimos, então, foi a tendência da classe trabalhadora de ir além dos limites estabelecidos pela burocracia. O que devemos entender é que a burocracia maoísta, ao defender o plano estatal, não ia chegar tão longe a ponto de entregar o poder aos trabalhadores. Isto teria significado a perda de seus privilégios.
Contudo, permanecia o problema de desenvolver a economia. A partir de um ponto de vista genuinamente marxista, a única solução teria sido introduzir uma verdadeira democracia operária; é claro que isto era a última coisa que a burocracia queria fazer. Não devemos esquecer que a ala da burocracia que defendia o plano o fazia para defender seus próprios interesses, seus próprios privilégios. Trotsky explica muito bem a situação em En Defensa del Marxismo quando disse: "A burocracia, antes de qualquer coisa, está preocupada com o seu poder, seu prestígio e suas rendas. Defende-se a si mesma muito melhor do que defende a URSS. Defende-se a si mesma à custa da URSS e à custa do proletariado mundial". Esta é a natureza essencial da burocracia.
Uma ampla camada da burocracia respirou aliviada quando terminou a Revolução Cultural; queria regressar à estabilidade e desfrutar de seus privilégios dentro do sistema. O que ficou claro é que já existia uma ala da burocracia que estava discutindo a idéia de introduzir algum tipo de estímulo de mercado na economia.
Fim da era Mao
Quando Mao morreu, esta ala "pró-capitalista" da burocracia chinesa passou à ofensiva e colocou a questão do mercado, o mercado mundial. Na realidade, Deng Xiaoping e os demais tinham um objetivo, isto é, que era impossível separar a China da economia mundial e que esta deveria participar nos mercados mundiais. Era essa a idéia original. Na ausência de democracia operária, o mercado mundial pode servir como uma prova brutal para a má administração e a ineficácia.
Nas condições que prevaleciam na China nos anos 1970, inclusive um partido marxista revolucionário não teria excluído uma espécie de NEP, como fizeram os bolcheviques no início dos anos 1920. Na medida em que as alavancas principais da economia continuavam sob o controle do Estado, guiadas pelo plano, estes métodos podem ser utilizados para estimular e desenvolver a economia num estado operário isolado.
Lênin considerou algo semelhante quando ofereceu aos capitalistas ocidentais concessões na Sibéria, onde havia muitas matérias-primas e a economia estava subdesenvolvida. O débil e jovem Estado operário não dispunha dos meios para desenvolver a Sibéria. Lênin insistia que, em tal situação, a única forma de conseguir os investimentos e a tecnologia necessários para desenvolver as forças produtivas era pela outorga de concessões ao capital estrangeiro. A idéia era que, garantindo os lucros capitalistas, estes desenvolveriam a região, conseguindo assim os novos meios de produção, a técnica etc., e isto, por sua vez, redundaria em benefício da revolução.
Em 1918, em seu livro Sobre o infantilismo "esquerdista" e o espírito pequeno burguês, Lênin disse o seguinte: "Nós, o partido do proletariado, não temos nenhuma forma de adquirir a perícia para organizar a produção em larga escala do tipo dos trustes, como os trustes são organizados, exceto adquirindo-a dos melhores especialistas do capitalismo" (Moscou. Editorial Progresso. 1980. p. 34). No ano seguinte, em quatro de fevereiro, apresentou uma resolução no Conselho de Comissários do Povo (CCP) em que dizia: "O CCP... considera, em geral, uma concessão aos representantes do capital estrangeiro, como questão de princípios, permissível no interesse de desenvolver as forças produtivas do país...". A diferença, naturalmente, era que em 1918-1919 não existiam dúvidas sobre a natureza da União Soviética. Era um Estado operário sadio - ou, pelo menos, um Estado operário relativamente sadio - onde estas concessões seriam utilizadas para fortalecer o Estado operário e não para debilitá-lo.
Devemos recordar também que o atraso da revolução mundial obrigou os bolcheviques a fazer estes compromissos. Estes eram aceitáveis na medida em que o poder estatal estava nas mãos da classe trabalhadora e o Estado mantinha o controle dos postos de comando da economia. O problema, entretanto, era que os capitalistas estrangeiros, longe de desejar chegar a acordos econômicos com a Rússia soviética em 1921, queriam esmagá-la. Com a burocracia chinesa a questão era outra. Com esta casta privilegiada, os capitalistas podiam chegar a acordos. Inclusive o arqui-reacionário Nixon não teve dificuldades para fazer acordos com a burocracia chinesa.
Depois da morte de Mao, a idéia de abrir o país aos investimentos estrangeiros ganhou força no seio da burocracia e Deng Xiaoping a adotou. Isto refletia que o grosso da burocracia tinha chegado à conclusão de que a autarquia tinha fracassado e que a China não se poderia desenvolver isoladamente.
Deng tinha sido secretário geral do partido, mas depois foi destituído da direção durante a Revolução Cultural. Em janeiro de 1974, foi novamente membro do Politburo. Antes tinha sido despojado de todos os seus cargos. Deng não somente foi primeiro ministro, mas também vice-presidente do partido e chefe do Comando Militar Supremo, o segundo homem da China depois de Mao. Apesar do alto grau de seus cargos foi denunciado como um "monstro", líder de uma conspiração contra-revolucionária que estava seguindo uma "política capitalista". O mais significativo, não obstante, é que foi capaz de manter seu carnê do partido. Normalmente, aquele que caísse em desgraça perante o "grande líder" teria sido expulso ou teria sofrido algo pior. Isto não aconteceu com Deng porque ele tinha um grande apoio dentro da burocracia. Analisando-se retrospectivamente, Deng poderia inclusive ter se atrevido a dar uma resposta, porque a maioria da burocracia - ou pelo menos suas camadas superiores - o apoiava, mas preferiu nada fazer devido à posição de Mao.
A extensão do apoio a Deng dentro da burocracia foi confirmada depois da morte de Mao. A "Gangue dos Quatro", que incluía a viúva de Mao, jogava com a idéia de continuar a Revolução Cultural. Contudo, as verdadeiras idéias da ala dominante da burocracia estavam claras. A "Gangue dos Quatro" foi detida em seis de outubro de 1976, nunca recuperaram os seus postos no poder e Deng emergiu como líder do partido em 1978.
É nesse período que encontramos as origens da atual situação. O debate dentro do Partido Comunista sobre a abertura da economia à inversão estrangeira começou em 1977-1978. A ala de Deng recorreu ao termo "socialismo de mercado" para descrever o que estava propondo. Dizia que a era Mao tinha deixado a economia no caos. Isto não era totalmente certo porque, apesar dos transtornos, durante aproximadamente 25 anos a economia tinha crescido bastante rapidamente.
O que realmente é certo é que, quando a economia se tornou mais sofisticada, o sistema de comando burocrático começou a mostrar suas limitações. Como na União Soviética, existia falta de coordenação entre os diferentes setores, desequilíbrios na inversão entre os diferentes setores, superprodução de certos produtos e baixa produção de outros. Existiam o biscate, a corrupção, a sabotagem, o desperdício e o caos em grande escala. A produtividade na indústria estava caindo. Existiam tendências inflacionárias, escassez de bens de consumo e descontentamento social.
Esta situação começou a ter impacto nas necessidades dos trabalhadores e camponeses que cada vez mais estavam intranqüilos. Tudo isto poderia ter sido resolvido através da introdução de uma genuína administração e controle operários na economia, mas para que isto acontecesse teria sido necessária uma revolução política, teria de se derrubar a burocracia. Mas esta não ia renunciar tão facilmente ao seu poder. A idéia de Deng e da ala da burocracia que ele representava era a de continuar a tarefa de construir as forças produtivas, melhorar a produtividade com estímulos de mercado se necessário.
Embora já tenha superado países como a Grã Bretanha em termos de produção absoluta, em termos de produtividade do trabalho, tanto para a China como para a Rússia, falta um longo caminho a percorrer até alcançar o Ocidente capitalista. Na Rússia, a crise já se tornou evidente com a significativa desaceleração do crescimento. Na China, a ala de Deng da burocracia compreendeu a necessidade de introduzir as técnicas mais avançadas na economia chinesa. Isto somente se podia obter abrindo a China à inversão estrangeira e participando no mercado mundial.
Se o poder estatal estivesse nas mãos dos trabalhadores, estes poderiam ter detido as tendências em direção à restauração capitalista. Mas o poder estatal encontrava-se nas mãos da burocracia e, nestas condições, a introdução de incentivos capitalistas supunha um perigo real de destruição total da economia planificada durante todo um período.
Entretanto, não deveríamos abordar esta questão a partir de um ponto de vista mecanicista. Seria fácil dizer, analisando retrospectivamente, que inclusive quando Deng chegou ao poder, em 1978, a burocracia já tinha o objetivo claro de introduzir o capitalismo, mas isto seria um erro. A burocracia se move empiricamente, a depender das necessidades em um momento determinado. Inclusive na Rússia estalinista houve um período de maior abertura às forças do mercado e à descentralização, seguido por períodos de retorno à centralização. Representavam tentativas por parte da burocracia de conseguir fazer avançar a economia. A burocracia estava consciente de que se não desenvolvia os meios de produção sua própria posição privilegiada estava em risco.
A virada de Deng em 1978
Foi esta consideração que levou o Partido Comunista, no final dos anos 1970, a tirar a conclusão de que era necessário se abrir à inversão estrangeira. Em dezembro de 1978, o Partido Comunista Chinês celebrou sua III reunião plenária. Nesta ocasião se discutiu a nova virada. Embora dissessem que a planificação centralizada continuaria sendo a forma dominante, introduziam elementos de descentralização e estimulavam a criação de empresas privadas. A idéia era que se deviam introduzir as forças do mercado como um meio de garantir que se cumprissem as necessidades da economia.
Isto levou finalmente Deng a sugerir, em 1979, a criação de quatro zonas econômicas especiais em torno de Hong Kong e Macau, e nas províncias de Guangdong e Fujian, no litoral sul. Estas zonas se abririam à inversão estrangeira. Inicialmente, havia muitas restrições quanto aos níveis e tipos de inversão que os capitalistas estrangeiros podiam fazer. Isto indica, como dissemos antes, que inclusive a ala de Deng via essas medidas como um meio de modernizar as forças produtivas, enquanto mantinha a natureza centralmente planificada da economia e o controle do Estado. No início eram muito precavidos e somente fizeram concessões limitadas.
Contudo, precisamente devido às restrições, as quatro zonas especiais não tiveram de imediato tanto êxito como se esperava. Por isso, em 1983, estas restrições foram levantadas e, por exemplo, se permitiu o funcionamento de empresas de propriedade totalmente estrangeira. Aqui vemos o empirismo da burocracia. Não havia um "plano" elaborado. Mas, uma vez que a burocracia tinha embarcado neste caminho, começou a desenvolver uma lógica própria. A burocracia percebeu que era cada vez mais difícil controlar as forças do mercado. Se quisessem que os capitalistas investissem, tinham, então, de criar condições favoráveis para eles.
Enquanto se estavam criando estas zonas especiais, desenvolvia-se um processo paralelo na agricultura. O velho sistema agrário coletivizado foi desmantelado e se introduziu a lógica da produção privada. Isso se fez "alugando-se" a terra às famílias. Legalmente, a terra continuava sendo propriedade estatal - e o é até o dia de hoje -, mas, na prática, se convertia em propriedade privada. Por exemplo, a terra alugada poderia ser repassada aos descendentes. Esta mudança levou a uma situação em que, já no final dos anos 1980, os que tinham alugado a terra inclusive vendiam o aluguel ou o deixavam como herança.
Isto conduziu a uma diferenciação dentro do campesinato, com alguns se enriquecendo, enquanto outros perdiam sua fonte de sustento e se viam obrigados a começar a emigrar para as cidades. Por um lado, houve um aumento da produtividade da terra e, por outro, o empobrecimento de camadas importantes. Isto provocou o afluxo de mão-de-obra barata para as cidades que serviria de base para o desenvolvimento do capitalismo.
Este é um processo semelhante ao que teve lugar na Rússia depois de 1861 com a dissolução do Mir, a velha comuna agrícola. Quando as comunas desapareceram, os camponeses começaram a se mudar para as cidades, proporcionando a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento do capitalismo entre 1880 e 1912.
Hoje, isto acontece na China em escala muito maior se comparado com a Rússia. Também se pode comparar com o processo dos primeiros dias do capitalismo britânico, com a expulsão brutal dos camponeses da terra, que se viram obrigados a ir embora e viver nas cidades em condições atrozes. Inclusive se poderia comparar com o período do Oeste Selvagem, durante a expansão do capitalismo nos EUA. O que estamos vendo na China tem na realidade elementos de todos esses exemplos históricos. Mas não tem precedente, tanto em termos de envergadura como em termos de velocidade do processo.
Uma das primeiras medidas introduzidas pelo regime chinês, para tentar atrair a inversão estrangeira, foi a criação de um "mercado de trabalho". Deste modo, foi introduzida uma série de reformas que permitiram aos administradores das empresas estatais selecionadas acabarem com o chamado emprego "para toda a vida". Foi introduzida a idéia de que os trabalhadores poderiam ser despedidos.
Alguns anos depois, em 1983, o Estado deu um passo atrás. Agora, as empresas estatais podiam contratar trabalhadores durante um período de tempo limitado. Este novo sistema significava que os trabalhadores recém contratados não teriam os benefícios do estado de bem estar social de que se tinham beneficiado no passado os trabalhadores estatais. Em 1987, havia 7,5 milhões de trabalhadores com contratos deste tipo em empresas estatais e outros seis milhões tinham visto como sua situação mudava do sistema de trabalho para toda a vida para o sistema de contrato definido.
No mesmo período, a força de trabalho do setor privado começou a crescer. De aproximadamente um quarto de milhão em 1979 a 4,3 milhões em 1984, principalmente em empresas muito pequenas. No início, foi imposto um limite ao número de trabalhadores que podiam ser empregados em empresas privadas, mas, em 1987, isto foi abolido. Além de tudo isto, foi permitido desenvolver uma forma encoberta de empresa privada, na forma de "coletivos urbanos" ou Town and Village Enterprises (TVE). Estas estavam controladas e dependiam das municipalidades locais, mas estavam "orientados para o lucro", isto é, funcionavam como empresas capitalistas (trataremos do desenvolvimento das TVE mais tarde).
Apesar destes acontecimentos, durante todo este período o setor estatal continuou dominando e dirigindo todo o processo econômico. Em meados dos anos 1980, o setor estatal ainda empregava aproximadamente 70% da força de trabalho urbana. Contudo, a situação destes trabalhadores estava mudando. Cada vez mais estavam sujeitos a contratos parciais.
O fechamento das empresas controladas pelo Estado levou ao fenômeno anteriormente desconhecido do desemprego. Pouco depois da introdução das primeiras "reformas de mercado", a inflação começou a disparar provocando mal estar social. Temendo as conseqüências políticas disto, o regime, em 1981, decidiu reduzir a marcha do processo. Isto foi algo que se repetiria a cada crise sucessiva durante todo o processo. Mas a cada vez, como veremos, a burocracia - depois de uma desaceleração inicial e do restabelecimento da situação - decidia avançar e acelerar o processo mais uma vez. Nunca deu passos atrás.
Em 1982, o partido dizia oficialmente que o setor estatal era o dominante. Nesse momento, ainda estávamos no reino da burocracia de um Estado operário deformado utilizando métodos capitalistas para desenvolver a economia como um conjunto. Mas, em 1984, houve um novo movimento em direção a uma maior liberdade de desenvolvimento tipo capitalista. Cada vez se punha mais ênfase na instalação da produção privada e no mercado. Os preços da maioria dos bens de consumo e dos produtos agrícolas foram liberados. A partir desse momento, o mercado seria a força que decidiria o nível dos preços.
O XII Congresso do Partido Comunista, celebrado nesse mesmo ano, introduziu a idéia de uma "economia planificada de mercadorias". Vemos o início da contradição entre a economia planificada e o capitalismo expressada inclusive na terminologia utilizada pelo regime. A região envolvida nas zonas econômicas especiais foi ampliada, acrescentando-se outras 14 cidades da linha costeira. Um ano depois, foram acrescentadas as regiões dos deltas do rio Pearl, do rio Min e do rio Yangtze. Basicamente, toda a região da linha costeira da China foi aberta à inversão estrangeira.
O processo continuou se acelerando em 1986, quando foram introduzidas novas medidas para facilitar ainda mais a inversão estrangeira: impostos mais baixos; mais liberdade para contratar e despedir; acesso mais fácil às divisas. Como parte desse processo, introduziram várias mudanças: aboliram o sistema igualitário de salários, eliminaram os empregos para toda a vida, vincularam os salários à produtividade e permitiram os contratos temporários, tudo muito familiar aos trabalhadores do Ocidente.
No XIII Congresso nacional do partido, em 1987, foram feitas novas propostas para desenvolver uma "economia orientada à exportação". O crescimento da capacidade industrial exigia a importação de maquinaria e de outros bens. Como conseqüência, em meados dos anos 1980, presenciamos um profundo aumento do déficit comercial chinês, combinado com outra explosão de pressões inflacionárias. Entre 1988 e 1989, houve uma taxa anual de inflação de 18%. O poder aquisitivo real das famílias da classe operária foi duramente golpeado.
A instabilidade social que isto provocou obrigou o regime a reduzir a marcha do processo. Sob pressão, no final de 1988, o regime colocou um freio nas chamadas "reformas" e, numa tentativa de controlar a inflação, restringiu a oferta monetária. Isto provocou um novo fenômeno para a economia chinesa: a recessão de 1989. Tudo isto levou ao crescimento do mal estar social seguido de uma onda de greves. É neste contexto que tivemos o movimento de protesto em torno da Praça da Paz Celestial, em Pequim.
Que representou o movimento da Praça da Paz Celestial? Em 1989, claramente estavam presentes os elementos de uma revolução política. Não é o tema do presente documento. Um grande número de estudantes saiu às ruas. Os jovens cantavam A Internacional, como se quisessem dizer ao regime e à opinião pública mundial: "Vejam, não estamos a favor do capitalismo, não somos contra-revolucionários".
Mas o que começou como um protesto estudantil e da juventude, logo se estendeu aos trabalhadores. Isto aterrorizou o regime e convenceu a ala estalinista a afogar o movimento em sangue. Através desta repressão brutal, o regime pôde garantir a manutenção do estreito controle da sociedade. Alguns poderiam perguntar quando ocorreu o momento decisivo do processo de restauração capitalista. Como estamos tratando de um processo global, que foi iniciado há quase 30 anos, não seria possível fixar o momento exato. Mas se produziram acontecimentos que contribuíram para acelerar o processo. Dessa forma, seria mais correto falar de uma série de momentos decisivos e não somente de apenas um, como o episódio da Praça da Paz Celestial.
Depois de esmagar os protestos da Praça da Paz Celestial, o pêndulo virou para a direita. O movimento em torno da Praça da Paz Celestial despertou as esperanças de muitos jovens e trabalhadores, mas as massas foram derrotadas. Depois desses episódios, o regime identificou e perseguiu a todos os principais dirigentes do movimento, sendo que muitos deles desapareceram ou passaram anos na prisão. Ao mesmo tempo, a burocracia temporariamente reduziu a marcha do processo das reformas de mercado, para tentar restabelecer a situação. No momento em que se sentiu novamente segura, o movimento em direção ao capitalismo se intensificou.
Nesse meio tempo, temos de lembrar o que estava acontecendo no Leste Europeu e na União Soviética. Em 1989, todos os antigos regimes estalinistas do Leste Europeu entraram em colapso um depois do outro. A burocracia perdeu o controle da situação e se iniciou a transição caótica em direção ao capitalismo. A União Soviética resistiu um pouco mais, mas também sucumbiu finalmente ao mesmo processo e o velho regime estalinista colapsou de vez em 1991. Como já assinalamos, estes regimes estavam tão corrompidos que não houve resistência séria por parte da burocracia. Na Rússia, onde a perspectiva de uma guerra civil era real, os estalinistas da linha dura demonstraram ser tão corruptos que não apresentaram resistência séria. O sistema que representavam tinha alcançado os seus limites.
Estes acontecimentos, sem dúvida, tiveram impacto nos estalinistas chineses. Até então, vinham introduzindo reformas de mercado, abrindo zonas inteiras da China à inversão capitalista, mas o setor estatal continuava sendo o dominante e a posição do partido era que isto deveria continuar assim. As alavancas do controle econômico ainda estavam nas mãos da burocracia. O processo ainda podia ser revertido. A questão é que eles não tinham interesse em dar marcha atrás. Como já dissemos, nunca deram um passo atrás. Quando enfrentavam momentos de instabilidade, a marcha do processo era reduzida, mas nunca foi revertida.
1992: "Economia de socialismo de mercado com características chinesas"
O efeito combinado dos protestos da Praça da Paz Celestial e do colapso do estalinismo no Leste Europeu e na União Soviética teve um profundo impacto na burocracia chinesa. Depois destes acontecimentos, a direção do Partido Comunista decidiu acelerar o processo de "reformas de mercado". Começou a ver a restauração capitalista como a solução de sua própria crise, mas estava decidida a que o processo se desenvolvesse sob o controle firme da burocracia. Essencialmente, isto significava que a burocracia estava preparando o terreno para se transformar em uma nova classe capitalista.
O fato de que a burocracia tenha se movido nesta direção não significava necessariamente que conseguisse completar o processo de restauração capitalista. Uma coisa é declarar uma intenção e outra é obter o que se pretende. Se tivesse se produzido uma crise séria no Ocidente capitalista em escala semelhante à do crack de 1929, as coisas poderiam ter se desenvolvido de maneira diferente. Mas isto não se materializou. O boom no Ocidente se prolongou devido a uma série de fatores que temos tratado em outros documentos. Isto somente serviu para acumular novas contradições, preparando uma crise ainda maior quando chegar. Mas a burocracia chinesa não compreende isto. Não tem uma compreensão marxista destes processos e reage empiricamente aos acontecimentos. O capitalismo estava experimentando um boom em escala mundial, enquanto o estalinismo entrava em colapso e isto era tudo o que podiam ver.
As conclusões que a burocracia tinha tirado de todos estes acontecimentos ficaram claras em 1992. Nesse ano, foi celebrado o XIV Congresso do Partido, em que oficialmente se abandonou a idéia de que o setor estatal deveria ser o dominante. Foi anunciado o plano de se criar uma "economia socialista de mercado com características chinesas". Nesse mesmo ano, Deng iniciou uma nova etapa do "programa de reformas", como ele o chamava. Fez uma visita à zona especial de Shenzen e deu uma declaração famosa: "Na medida em que isto produz dinheiro, é bom para a China". Este foi outro momento decisivo dentro do regime.
Os mecanismos de mercado já estavam funcionando há algum tempo na China. O significativo de 1992 foi a decisão oficial do partido de abandonar o seu compromisso com a manutenção das empresas de propriedade estatal como o setor econômico dominante. Deste modo, decidia afundar o setor estatal. Até então, o que se estava produzindo era o desenvolvimento do setor privado fora do setor estatal. Agora, decidiam proceder a privatização das empresas de propriedade estatal. Selecionaram 2500 empresas locais, dirigidas pelo Estado, e 100 empresas centrais, para realizar esta conversão. Em 1998, este processo foi completado.
Em 1994, estenderam o programa e disseram que manteriam o controle das mil maiores empresas estatais, enquanto todas as outras empresas públicas estariam disponíveis para aluguel ou venda às mãos privadas. No final dos anos 1990, as empresas estatais empregavam 83 milhões de pessoas, mas isto representava somente 12% do emprego total e, mesmo nas zonas urbanas, apenas um terço do emprego total. Vemos uma mudança enorme em relação a 1978, quando 78% do emprego urbano estavam no setor estatal.
No final dos anos 1990, a contribuição das empresas estatais ao PIB tinha caído a 38%. Em setembro de 1999, no Pleno do XV Congresso do Partido, foi dado outro passo. Caracterizaram esta posição da seguinte maneira: "Abandonar a política", isto é, o Estado relaxaria e renunciaria a seu controle. Procederam a relaxar o controle das empresas estatais de tamanho médio e pequeno. Em julho de 2000, por exemplo, o governo da cidade de Pequim, que abarca uma grande região, anunciou que a propriedade estatal e coletiva em três anos seria suprimida nas pequenas e médias empresas estatais. Em 2001, as empresas estatais contavam com 15% do total do emprego manufatureiro e com menos de 10% do comércio interno.
A China sobreviveu ao crack das bolsas de valores do Sudeste Asiático em parte porque ainda mantinha certo grau de controle do comércio externo e porque sua moeda não era conversível. Estes dois fatores protegeram a China dos efeitos dessa crise. Na realidade, depois dela emergiu fortalecida e assumiu um papel dominante na região. Depois disto, no período que vai desde 1998 até 2001, houve uma nova aceleração do processo. O curso do processo estava agora muito claro. A hierarquia do Partido Comunista estava totalmente convencida de que as empresas privadas eram mais eficazes que as empresas dirigidas pelo Estado. Na concepção deles, a única espécie de empresa estatal que podiam imaginar era a que existia sob o plano burocrático, com toda a má gestão que implicava. Não podiam conceber indústrias estatais eficientes sob controle operário.
Um documento intitulado China's Ownership Transformation, publicado em 2005, dá-nos algumas cifras interessantes que citaremos em seguida. O documento foi escrito por Ross Garanaut, Ligang Song, Stoyan Tenev e Yang Yao da International Finance Corporation, Australian National University, China Centre for Economic Research e Peking University, publicado pela International Finance Corporation, um ramo do Banco Mundial e que se encontra disponível na Internet no seguinte endereço: www.ifc.org.
Os autores insistem em que a privatização começou na verdade em 1992. Referindo-se a 1995, diz o seguinte: "o Estado decidiu manter entre 500 e 1000 empresas estatais grandes e permitir que as empresas pequenas fossem alugadas ou vendidas". No documento se explica que havia uma boa razão para isto, porque, em 1997, as 500 maiores empresas estatais - a maioria controlada pelo governo central - tinham 37% dos ativos industriais do Estado que proporcionavam grande receita para o Estado.
O documento, quando faz referência ao período em que estavam acelerando o processo, explica que "a tendência refletia a crença de que, para a completa transformação de uma empresa, é necessário que a administração possua a maioria das ações". E, conforme a tradição chinesa, a palavra de ordem é agora: "o setor estatal se retira e o setor privado avança". Inventaram esta palavra de ordem para que a mensagem chegasse às massas.
Muitas das cifras incluídas mostram o perfil do processo e revelam a aceleração. Por exemplo, o documento explica que: "se este desempenho é típico para o resto do país (fazendo referência a uma amostra de seis cidades), então a privatização na China tem avançado muito mais que no Leste Europeu e que nos antigos países soviéticos".
Contudo, não se trata de um processo de simplesmente vender tudo. Não é simplesmente uma questão de considerar as percentagens da propriedade estatal e da privada (embora, em última instância, seja este um fator decisivo). Não se trata simplesmente de quanto se encontra nas mãos do Estado, mas também de quanto desse setor que permanece nas mãos do Estado ainda funciona e com que objetivo. Também é necessário considerar a direção global do processo e este, inexoravelmente, se dirige em direção ao capitalismo.
Não obstante isso, no processo de transformação capitalista ainda não se desenvolveu uma burguesia que seja capaz de dirigir as principais corporações, que têm a escala de algumas multinacionais americanas ou japonesas, sem a ajuda do Estado. O Estado continuará desempenhando um papel fundamental durante algum tempo, mas finalmente surgirá uma poderosa burguesia.
A burocracia continua vendendo a maioria das pequenas e médias empresas, estimulando ao mesmo tempo o desenvolvimento de empresas privadas que nunca estiveram nas mãos do Estado. Agora, 450 das 500 principais multinacionais operam na China. Dessa forma, um elemento importante da equação é o fato de que o setor privado está se desenvolvendo mais rápido que o setor estatal. E, se considerarmos o que restou do setor estatal, vemos que parte dele está preparada para uma nova privatização. Os grandes conglomerados estatais são divididos em diferentes empresas, os setores ineficientes são fechados e os rentáveis vendidos.
Os diretores das empresas estatais estão ativamente ocupados no desmantelamento de seus ativos. Têm seus amigos no setor privado e permitem que obtenham as melhores máquinas, os melhores componentes etc., enquanto deixam que suas empresas desmoronem e entrem em declínio. O sentimento existente entre estes diretores é que "esta fábrica cedo ou tarde será privatizada e vou facilitar isto". Assim, a intenção é reduzir a empresa a uma situação em que valha o menos possível e assim poder vendê-la barato. Em muitas cidades, os conselhos locais decidem que a melhor maneira de se obter uma empresa em funcionamento é através de sua venda a baixo preço aos diretores para deter o desmantelamento dos ativos. A idéia é que, quando os diretores tornarem-se proprietários, usarão os ativos para desenvolver as empresas e recolherem os lucros.
No processo, os trabalhadores têm pagado caro, com a perda de milhões de postos de trabalho. No período de 1990 a 2000, foram destruídos 30 milhões de empregos no setor público. Apareceu um chamado "cinturão enferrujado" nas zonas industriais tradicionais, como no Nordeste, o coração do velho plano estatal da China. Aqueles que ainda têm emprego viram como se destruíram todos os seus benefícios. Durante um período de vários anos todas as conquistas da revolução de 1949 foram reduzidas pouco a pouco. Isto teve a resistência da classe trabalhadora, mas a burocracia avançou implacavelmente.
Introduziram o livre mercado nos serviços de saúde, de moradia e de trabalho. A educação agora é paga. No início dos anos 1990 já existiam fortes elementos de capitalismo. Em 1992, 40% das vendas procediam do setor privado. Em 1991, havia 13 milhões de industriais privados, com 21 milhões de trabalhadores - no fundamental pequenas empresas, mas era somente o início. Nos povoados, introduziram concessões aos camponeses ricos: o aluguel da terra e a permissão de venderem seus produtos no mercado, acabando com os coletivos e provocando uma maior diferenciação entre camponeses ricos e pobres. Em 1998, ainda havia 238 mil empresas controladas pelo Estado, mas em 2003 a cifra tinha caído para 150 mil.
As Town and Village Enterprises (TVE)
Como já dissemos antes, outro elemento importante no desenvolvimento do capitalismo foi o crescimento das Town and Village Enterprises (TVE). As TVE agora contam com 30% do PIB, mas sua natureza nem sempre é clara e têm um caráter contraditório. Seria impossível para os burocratas simplesmente privatizar estas empresas sem provocar o caos político e econômico. Privatizar tudo de golpe significaria que muitas empresas, e na realidade muitos setores, teriam fechado ou quebrado. Isto significaria o fim do domínio do Partido Comunista Chinês.
A introdução das TVE foi então um simples passo transitório no caminho em direção à privatização total. Permite aos diretores e a outros setores parasitários da sociedade ganhar tempo para acumular o capital necessário a fim de assumir a propriedade destas empresas. Este é um perfeito exemplo de como as velhas empresas estatais e o setor estatal agora servem aos interesses do capitalismo na China, nutrindo e apoiando os nascentes elementos burgueses da sociedade até que possam assumir diretamente a propriedade. Em alguns casos, as TVE são empresas municipais; em outros, são joint ventures com capitalistas privados. Em qualquer caso, todas funcionam como empresas capitalistas e gradualmente estão caindo nas mãos dos capitalistas.
As TVE são algumas vezes incluídas nas estatísticas para demonstrar que a economia ainda é propriedade pública e algumas delas, inclusive, são utilizadas para tentar dizer que há alguma forma de "socialismo". Mas quando se olha mais de perto, revela-se uma imagem diferente. O número de TVE passou de 1,5 milhões, em 1987, a 25 milhões em 2003, empregando 123 milhões de trabalhadores, mas desde 1996 seu número tem descido porque foram totalmente privatizadas. Inclusive quando continuam sendo empresas estatais ou municipais, funcionam como empresas privadas, onde a direção tem o direito de contratar e despedir.
Segundo Hart-Landberg and Burkett, os estudos mostraram que: "... ‘em média, os trabalhadores das TVE podem ganhar salários básicos que são mais baixos que o salário mínimo e devem ganhar o resto através de horas extras e quotas de produção. Inclusive o salário básico não está garantido porque o salário mínimo é estabelecido pelas autoridades municipais, cujos interesses materiais, tanto institucional quanto privadamente, estão atados à maximização do lucro'. Na realidade, a ‘competitividade e as margens de lucro' das TVE estão em grande parte subscritas à ‘oferta abundante de mão-de-obra rural a preço vil' liberada pela dissolução do sistema de comunas e pelo empobrecimento das famílias camponesas individuais" (China and Socialism - Market Reforms and Class Struggle. p. 45).
O destino das TVE estava estreitamente ligado a todos os processos que se estão desenvolvendo na economia. Quando o setor privado se tornou dominante, as TVE adaptaram-se a isto. Como explicam os mesmos autores: "Igualmente devastador para as TVE, com as novas oportunidades para o lucro da produção privada, é que muitos administradores começaram a transferir ilegalmente os ativos ou produtos das TVE para empresas privadas, onde poderiam conseguir maiores lucros. Este desmantelamento de ativos se acelerou em meados dos anos 1990, depois que o partido se comprometeu com a privatização das pequenas empresas estatais... Enfrentados com o declínio dos lucros e com a desindustrialização, os funcionários dos distritos e aldeias seguiram o exemplo dos funcionários estatais e começaram a vender as TVE no início de 1996" (Ibid.).
Utilizando o Estado para construir um capitalismo chinês forte
A burocracia na China não quer se converter numa presa da dominação imperialista. Não vai permitir que isso aconteça. Sabe que deve manter um setor capitalista chinês forte e o está fazendo acumulando e realmente fortalecendo algumas das empresas estatais. Dispõe de enormes quantidades de capital. Os bancos estatais são utilizados para injetar dinheiro nessas empresas estatais.
Segundo os autores de China's Ownership Transformation: "A China tem estimulado a mais de 20 corporações e conglomerados gigantescos que demonstraram ser competitivos no mercado internacional. Algumas destas empresas despediram dezenas e centenas de milhares de trabalhadores, não porque tenham problemas econômicos, algumas delas são enormemente rentáveis, mas porque desejam se colocar na posição de jogadores internacionais importantes. Em 2002, as 12 principais corporações transnacionais chinesas, principalmente de propriedade estatal, controlavam mais de 30 bilhões de dólares de ativos externos, tinham 20 mil empregados estrangeiro e vendas ao estrangeiro de 33 bilhões de dólares".
Embora sejam de propriedade do Estado, estão sendo preparadas como corporações estatais chinesas importantes para competir com as americanas, japonesas etc., sobre bases capitalistas. O documento inclui uma tabela, intitulada A Composição do PIB da China por tipos de propriedade. Vemos que, já em 1988, o setor controlado pelo Estado tinha caído a 41% do PIB. Em 2003, estava já em 34%. O que eles chamam de "Setor Privado Verdadeiro", no mesmo período de 1998 a 2003, havia passado de 31% a 44%. Mas, se olharmos para a totalidade do setor não estatal, em 2003 contava com 66% do PIB. O documento conclui assim: "o setor privado é agora o setor dominante da economia chinesa". E continua: "a parte do setor privado é inclusive maior se levarmos em conta que uma percentagem significativa das fazendas coletivas é, na realidade, controlada privadamente e que o setor privado em geral é mais produtivo que os demais setores da economia".
Já vimos isto acontecer antes em outros lugares e em menor escala. Na Coréia do Sul, o Estado desenvolveu as grandes empresas, mas de nenhuma maneira se poderia definir a Coréia do Sul como um estado operário deformado ou sequer como um estado em transição. Era um capitalismo débil que somente poderia ser construído na base do investimento estatal de capital, porque a burguesia era demasiadamente pequena e fraca para fazê-lo. No contexto chinês, vemos um processo semelhante, mas em escala muito maior. Embora se esteja criando uma burguesia muito mais forte na China, ainda não tem os recursos para dirigir e desenvolver as principais empresas, muitas das quais ainda são propriedade estatal. Portanto, é o Estado que governa a China e este Estado está construindo o capitalismo e a burguesia.
Quando se olha para a estrutura legal na China, vêem-se mudanças importantes sendo feitas nos últimos três ou quatro anos para adaptar o marco legal às novas relações de propriedade. Em 2004, houve mudanças importantes na Constituição, ressaltando o papel do setor não estatal de apoio às atividades econômicas do país e a proteção da propriedade privada contra confiscos arbitrários.
Até há pouco tempo na China, existiam leis que regulavam ou impediam que as empresas privadas entrassem em setores como os serviços públicos ou os serviços financeiros. Em 2005, eliminaram-se estas leis, permitindo às empresas privadas entrar nestes setores. Está acontecendo agora também no setor bancário. Estão começando a privatizar e a permitir que o capital estrangeiro entre nos bancos. De fato, os analistas burgueses, quando escrevem sobre a China atual, entram em grandes detalhes sobre as leis e a estrutura legal necessária para se alinhar com as novas formas de propriedade. Eles as vêem como resquícios do passado que têm de ser removidos para facilitar o funcionamento das companhias privadas.
Na China, as relações de propriedade têm mudado, mas embora já se tenha feito muito para que a estrutura legal corresponda com elas, ainda há remanescentes do velho sistema legal. O desenvolvimento das novas relações de propriedade, na realidade, pode entrar em conflito com as velhas formas legais; não necessariamente devem estar de acordo imediatamente com a base econômica. Mais cedo ou mais tarde, contudo, esta "superestrutura" deve corresponder com a base econômica. Como disse Marx em 1859, em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política:
"Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que a expressão jurídica disto, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até aqui. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em suas travas. Abre-se assim uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erguida sobre ela" (a ênfase é nossa).
Na China, não estamos lidando com uma revolução social, mas com uma contra-revolução. Não obstante, a idéia de Marx continua sendo válida. Uma vez que mudem as relações de propriedade, a superestrutura legal deve corresponder a elas. Dessa forma, podemos esperar que o processo de alinhamento da "superestrutura" legal com a base econômica continuará rapidamente. Embora haja alguma oposição dentro de certas camadas da burocracia, "cedo ou tarde", as duas devem se alinhar. Em relação a isso, muito já foi feito, como o comprovam as mudanças da Constituição.
A entrada na OMC
Outro momento decisivo fundamental chegou quando, em novembro de 2001, a China decidiu entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC). A questão da entrada na OMC é importante. Ao entrar na OMC, a China se comprometia a abandonar em cinco anos todo o controle sobre o comércio exterior e, desde então, o estão fazendo passo a passo. A razão porque a China entrou na OMC é óbvia. A economia chinesa atual somente pode existir se estiver estreitamente vinculada à economia mundial. Depende muito das exportações e tem que chegar a acordos comerciais internacionais. Deve participar plenamente na economia mundial. Isto, por sua vez, acelera o processo de transformação capitalista dentro da China.
O abandono do controle estatal do comércio exterior é um elemento importante na abertura da China ao mercado mundial. Devemos lembrar que um dos elementos fundamentais no programa bolchevique, e que Trotsky defendia com firmeza contra Stalin e Bukharin, era que o Estado operário, cercado pelo mundo capitalista, deve ter o monopólio estatal do comércio exterior. Este era particularmente o caso em um país subdesenvolvido.
Bukharin também defendeu a idéia de que, para desenvolver a economia, era necessário permitir que uma camada do campesinato enriquecesse. Com isto, ele pensava que os incentivos materiais produziriam maiores eficiência e produção. Bukharin, entretanto, não imaginava as conseqüências de suas idéias. Não concebia sua posição como algo que levaria ao regresso das relações capitalistas. Mas, se a sua posição tivesse prevalecido, ter-se-ia produzido o regresso ao capitalismo na União Soviética já em 1928. Inclusive naquele momento as pressões do capitalismo se deixavam sentir de forma poderosa. Há paralelos entre Deng e Bukharin. Inclusive a linguagem que utilizavam era semelhante. Deng utilizava a palavra de ordem: "tornar-se rico é glorioso", enquanto que Bukharin utilizava esta outra: "Enriquecei-vos".
O monopólio estatal do comércio exterior, na essência, era uma medida protetora contra a penetração da influência capitalista externa. Quando se olha a história do capitalismo nos países desenvolvidos, vê-se que o protecionismo foi utilizado, em determinada etapa, para proteger seus mercados internos; o livre comércio se converteu na política favorita da burguesia nas etapas finais. Mesmo a burguesia britânica protegeu o seu mercado, enquanto desenvolvia sua indústria. Uma vez que já tinham desenvolvido indústrias modernas e competitivas, não mais necessitavam do protecionismo. Nesta etapa, sua indústria era suficientemente forte para dominar o mercado mundial. Como escreveram Marx e Engels em O Manifesto Comunista, fazendo referência à burguesia: "Os preços baratos das mercadorias são a artilharia pesada com que demoliram todas as muralhas chinesas...".
Até há pouco tempo, este também era o caso nos países subdesenvolvidos de hoje. O Paquistão, por exemplo, tinha muitas medidas e tarifas protecionistas até uns 20 anos atrás. Mas, recentemente, foram forçados a abrir seu mercado interno. Os imperialistas estão ditando a política destes países e não podem tolerar medidas protecionistas, embora, ao mesmo tempo, guardem zelosamente seus próprios mercados na agricultura etc. Estão pressionando sobre a necessidade de abrir todos os mercados a seus produtos.
A diferença entre a China e o Paquistão é que a imposição do chamado mercado aberto no Paquistão implicou na destruição de milhares de indústrias e fábricas. O nível da indústria paquistanesa era demasiado baixo para resistir à competição externa. Contudo, a China não é o Paquistão e o governo chinês deve estar pensando: "Somos suficientemente fortes agora, temos a produtividade para fazer frente à competição externa". Não obstante, isto está provocando medidas de represália particularmente da parte dos EUA, onde o protecionismo está sendo colocado como uma medida para defender o mercado norte-americano diante das baratas mercadorias chinesas.
Transição fria?
Agora está claro que houve uma transição ao capitalismo; mas como isto aconteceu? Não houve contra-revolução armada, nem enfrentamentos importantes entre as diferentes alas da burocracia. Trotsky numa ocasião utilizou a idéia do filme do reformismo rebobinado para trás. Explicou que, para que se produza uma contra-revolução, deveria haver algum tipo de enfrentamento violento. Somente depois seria possível o regresso ao capitalismo. O que estava dizendo era que o sistema não poderia "se reformar" em capitalismo.
Aqui, devemos aprender de Trotsky. Devemos tomar de Trotsky não somente frases isoladas daqui ou dali, e sim o método que ele utilizava. Estava tratando com a Rússia dos anos 1930, onde as tradições da revolução ainda estavam vivas. A classe trabalhadora russa tinha desempenhado um papel fundamental na revolução e era consciente do que significaria o regresso ao capitalismo. A classe trabalhadora teria resistido à restauração capitalista. A situação internacional também determinava uma correlação de forças diferente dentro da União Soviética. Uma camada significativa da burocracia tinha interesse na manutenção do plano estatal.
Contudo, o estalinismo da União Soviética sobreviveu durante várias décadas, muito mais do que Trotsky podia ter previsto, na realidade durante mais de 70 anos. As mudanças quantitativas determinam as mudanças qualitativas. Neste período, as tradições revolucionárias foram erradicadas da consciência dos trabalhadores. A geração que tinha experimentado a revolução tinha desaparecido. As novas gerações presenciaram a ascensão de uma burocracia voraz cada vez mais acima das massas. Não viam outra coisa além da má gestão, do desperdício e da corrupção em todos os níveis e, no final, tudo o que restava era um sistema que se estava detendo com um grande ranger de freios. Algumas vezes, um regime pode estar tão corrompido que a classe dominante - ou a casta dominante - é incapaz de resistir mesmo à menor pressão quando o movimento irrompe de baixo.
A idéia de que, para construir as bases do capitalismo, era necessária uma revolução burguesa surge da experiência da revolução burguesa clássica da França em 1789 e na Inglaterra em 1640. A burguesia tinha desenvolvido e acumulado sua riqueza dentro das fronteiras do feudalismo e finalmente teve que superar estes limites. A jovem classe burguesa dirigiu a nação contra a aristocracia latifundiária e derrubou o feudalismo, criando as condições para o desenvolvimento capitalista moderno. Contudo, quando o capitalismo se tinha desenvolvido em alguns países fundamentais (Grã Bretanha, França, EUA), isso significava que nos países menos desenvolvidos era praticamente impossível uma repetição da forma como o capitalismo se tinha desenvolvido nos países desenvolvidos. Marx pôde ver isto no caso da Alemanha, onde disse que a burguesia alemã tinha se tornado reacionária inclusive antes de chegar ao poder.
Os mencheviques não compreendiam esta questão. Esperavam que todos os países atravessassem as mesmas etapas. A Rússia estava subdesenvolvida, com um enorme campesinato e latifundiários. Dessa forma, de maneira mecanicista, os mencheviques superpuseram sobre a Rússia o esquema teórico do que tinha acontecido na França e na Grã Bretanha. Daí que, para eles, a tarefa dos comunistas russos era a de apoiar a "burguesia progressista". Não compreendiam o que Trotsky explicou na teoria da revolução permanente. Na época do imperialismo, a burguesia nos países subdesenvolvidos não podia desempenhar o papel progressista que tinha desempenhado na Grã Bretanha ou na França.
Isto também explica porque o desenvolvimento do capitalismo em outros países nem sempre ocorre através do mecanismo clássico da revolução burguesa, com a burguesia à cabeça das massas. Não foi assim que nasceu o capitalismo, por exemplo, no Japão e na Alemanha. Hoje, estes são dois dos países mais poderosos do mundo. No Japão, foi a burocracia do Estado feudal, sob a pressão do capitalismo americano, quem guiou o movimento em direção ao capitalismo. Naquele momento, a burguesia era débil e decadente. Por que aconteceu isto? Porque os acontecimentos mundiais dominam todos os processos. O futuro do Japão como nação poderosa somente poderia ser alcançado se eles desenvolvessem o capitalismo. Portanto, como a burguesia no Japão não era capaz de cumprir seu papel histórico, outra classe desempenhou esta tarefa. Na Alemanha, foram os junkers do velho aparelho do Estado feudal que supervisionaram um processo semelhante.
Entretanto, precisamente porque não houve revolução, permaneceram remanescentes do velho sistema feudal. Na Alemanha, estas contradições somente foram finalmente resolvidas como resultado da revolução proletária abortada de 1918, que pelo menos completou as tarefas inacabadas da revolução burguesa. No Japão, a mesma tarefa foi realizada pelas forças de ocupação americanas, depois de 1945. McArthur forçou a realização da revolução agrária no Japão por temer os efeitos da revolução chinesa sobre as massas japonesas.
Nestes casos não houve "revolução burguesa", e sim uma espécie de transição "fria" de um sistema a outro. Lênin insistia no fato de que a história conhece todo tipo de mutações e transformações. O processo vivo, real, nem sempre corresponde necessariamente em cada detalhe aos livros de texto! Não há uma regra rígida de como se deve realizar a transformação social. Como marxistas, devemos ser conscientes disto, de outra forma iríamos cambaleando daqui para ali perante acontecimentos que não correspondem às idéias mecanicistas e pré-concebidas.
Portanto, devemos colocar o ponto de vista de Trotsky sobre a "transição fria" no contexto histórico em que levantou a idéia. Também temos de ver, contudo, que Trotsky nos proporcionou uma percepção de como a burocracia poderia facilmente se adaptar à restauração capitalista. Ele explicou que, se havia uma contra-revolução burguesa na União Soviética, a nova classe dominante teria de expurgar menos elementos do estado do que ocorreria no caso de uma revolução política. Foi precisamente isto o que aconteceu com a velha burocracia soviética quando Yeltsin chegou ao poder, e com a burocracia chinesa não é diferente. As palavras exatas de Trotsky, em A Revolução Traída, são as seguintes:
"Se, pelo contrário, um partido burguês derrubasse a casta dirigente soviética, encontraria não poucos servidores entre os atuais burocratas, os técnicos, os diretores, os secretários do partido e os dirigentes em geral. Uma depuração dos serviços do Estado também se imporia neste caso; mas a restauração burguesa teria que se desfazer de menos gente que um partido revolucionário. O objetivo principal do novo poder seria o de restabelecer a propriedade privada dos meios de produção. Antes de tudo, seria necessário criar as condições para o desenvolvimento de fazendeiros poderosos a partir das fazendas coletivas débeis, e transformar as fazendas coletivas fortes em cooperativas de produção do tipo burguês ou em sociedades anônimas agrícolas. Na indústria, a desnacionalização começaria pelas empresas da indústria ligeira e alimentícias. No primeiro momento, o plano seria reduzido a compromissos entre o poder e as "corporações", isto é, os capitães da indústria soviética, seus potenciais proprietários, os antigos proprietários emigrados e os capitalistas estrangeiros. Embora a burocracia soviética muito tenha feito pela restauração burguesa, o novo regime ver-se-ia obrigado a realizar, no regime da propriedade e no modo de gestão, uma verdadeira revolução e não uma simples reforma".
As bases sociais da União Soviética eram as de um Estado operário, com uma economia de propriedade estatal planificada e centralizada, e, se tinha de se transformar em um regime burguês, não teria de expurgar muitas pessoas. Isto acontecia porque já eram elementos privilegiados e eles próprios se transformariam de burocratas privilegiados do Estado operário em servidores privilegiados do capitalismo. Por outro lado, uma revolução política teria de impor a muitos desses burocratas um salário de operário e eliminar os seus privilégios. Portanto, teria produzido um conflito maior. A situação atual na Rússia mostra que Trotsky tinha razão.
A análise de Trotsky sobre a URSS contém elementos importantes que nos ajudam a compreender o processo atual na China. Aqui também estamos tratando com uma casta privilegiada, como insistia Trotsky, que em determinado momento queria se converter em proprietários dos meios de produção como garantia de seus privilégios.
Há vários fatores que empurraram a burocracia chinesa nesta direção. Tivemos o boom massivo do pós-guerra no Ocidente capitalista, com um desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas. Isto foi seguido pela crise dos regimes estalinistas no Leste Europeu e na União Soviética. A corrente marxista tomou nota disto no início dos anos 1970. Os burocratas chineses tomaram nota também. A taxa de crescimento na União Soviética primeiro caiu até 2-3% e depois caiu a zero. O sistema encontrava-se estancado. Finalmente, a Europa do Leste colapsou e, dois anos depois, também colapsou a União Soviética, perdendo zonas enormes de seu território.
Estes fatores foram muito poderosos na determinação do pensamento dos burocratas chineses. Começaram com o que foi basicamente uma versão chinesa da NEP, tentando conseguir que a economia fosse mais eficiente, mais produtiva. Observavam os acontecimentos mundiais e toda a situação os empurrou numa determinada direção. Através da fronteira podiam ver na União Soviética o caos e o desastre absoluto. Eles deviam pensar: "Não vamos permitir que isso aconteça aqui. Devemos introduzir métodos de mercado, mas vamos controlar nós mesmos o processo". Então, o fizeram gradualmente, passo a passo; mas, uma vez embarcados nesse caminho, o processo adquiriu uma lógica própria levando finalmente à situação atual.
Agora, na China, há interesses burgueses muito poderosos. A nova burguesia está utilizando o Partido Comunista para defender seus interesses de classe. Nestas condições, poderia a burocracia dar marcha atrás no processo com êxito? Se uma ala da burocracia decidisse desfazer o caminho isso implicaria num importante enfrentamento com a ala pró-capitalista. Dessa maneira, uma "transição fria" que levasse a alguma forma de economia planificada burocraticamente não seria possível. Mas esta é uma perspectiva hipotética, porque não há indícios de que exista tal ala.
O tamanho e experiência da classe trabalhadora são elementos importantes da equação. Qualquer movimento contra o capitalismo teria agora de se basear na mobilização da classe trabalhadora e os trabalhadores chineses não aceitariam um movimento de regresso ao estalinismo; eles teriam de se mover em direção ao genuíno socialismo, em direção a um verdadeiro poder operário.
Sem dúvida, neste cenário, um setor do partido ver-se-ia afetado. De cartas e artigos que apareceram na imprensa chinesa, parece que há ainda gente no Partido Comunista que acredita nos ideais da revolução de 1949. Ver-se-iam afetados pelo movimento revolucionário da classe trabalhadora e entrariam em conflito com a ala dominante pró-capitalista. Isto implicaria numa divisão entre duas camadas diferentes: as mais elevadas defendendo as novas relações capitalistas e algumas das camadas mais baixas arrastadas pelo movimento da classe trabalhadora.
Trotsky fez referência à existência de uma "ala Reiss" na burocracia russa, dizendo que esta ala queria regressar aos ideais da Revolução de Outubro, ao genuíno bolchevismo. Nos anos 1930, esta ala existia. A revolução ainda era um acontecimento relativamente recente e muitos militantes do partido do período anterior à revolução podiam ver as diferenças entre o estalinismo e o verdadeiro bolchevismo.
Entretanto, o regime estalinista na União Soviética sobreviveu décadas. Stalin, pouco a pouco, destruiu qualquer vínculo com os ideais de Outubro. Apesar disto, no momento do colapso da União Soviética, em 1991, havia uma ala, embora uma pequena minoria, que buscava as idéias do autêntico leninismo.
Na China, a situação é algo diferente. Uma "ala Reiss", como descrita por Trotsky, está descartada. A revolução de 1949 não se baseava nas idéias de Lênin. O Partido Comunista Chinês tinha se transformado numa organização estalinista muito antes da chegada ao poder. Portanto, aqueles que viam o período anterior a 1949 tinham como ponto de referência o estalinismo.
Devemos compreender a diferença entre um "Estado operário degenerado" e um "Estado operário deformado". Um Estado operário degenerado, obviamente, é um Estado que se converteu em um Estado operário deformado. Mas o único "Estado operário degenerado" conhecido na história foi a União Soviética. Começou como um Estado operário relativamente sadio e, devido ao isolamento da revolução, sofreu uma degeneração, com a burocracia usurpando o poder. Para completar este processo, a burocracia estalinista teve de eliminar fisicamente milhares de autênticos comunistas que compreendiam a diferença entre aquilo pelo que os bolcheviques tinham lutado para construir e a caricatura monstruosa que evoluiu a partir do isolamento da revolução num país subdesenvolvido.
Na China, não existiu o período em que o Estado teria sido um Estado operário sadio. Nunca existiu um período de verdadeira democracia operária ou poder operário. O Estado chinês começou, desde o primeiro dia que o Partido Comunista chegou ao poder, como um Estado operário deformado. Na realidade, o Partido Comunista herdou o velho aparelho do Estado mandarim. Inclusive nos primeiros dias da Rússia Soviética, Lênin dizia que, se arranhassem a superfície do Estado operário, encontrariam o mesmo velho aparelho do Estado czarista, particularmente porque, num país atrasado, o novo Estado tem de contar com muitos dos antigos funcionários. Mas, ao menos nos tempos de Lênin, os trabalhadores, através de seus órgãos de poder - os sovíetes - podiam deter as tendências conservadoras deste estrato. Mas na China não foi este o caso.
Apesar disto, inclusive de forma destorcida, devem existir elementos dentro do partido que vêem com horror a transição ao capitalismo na China. Vêem como os trabalhadores perderam todos os seus direitos e como todos os ideais da revolução são pisoteados. Recordam a China maoísta que eles viam como uma sociedade mais "igualitária". Mas, no contexto atual, com o desenvolvimento de um proletariado tão gigantesco, a velha idéia maoísta de basear tudo no campesinato nada significaria para os trabalhadores hoje. Atualmente, o proletariado se converteu na força dominante; portanto, os trabalhadores nas cidades que procuram uma saída através do "regresso a Mao", encontrar-se-iam defendendo a questão do poder operário. Este acontecimento teria impacto no partido que inevitavelmente seria rompido em linhas de classe.
Entre as camadas superiores da burocracia, contudo, não há prova da existência de uma ala que queira regressar à velha economia estatal centralizada e planificada. Desde o ponto de vista da burocracia, o sistema está "funcionando". E, de fato, está funcionando muito bem! Assinalamos o que Trotsky dizia sobre a burocracia que queria passar seus privilégios a sua descendência. Hoje, muitos dos filhos e filhas dos burocratas se transformaram em proprietários dos meios de produção. No interior desta camada não existe nenhum desejo de regressar a uma economia planificada e nacionalizada. Não existem bases materiais para que eles desejem isto. Resistiriam a qualquer tentativa de dar marcha atrás ao relógio e teriam o apoio do Estado. Também vale a pena observar que os altos comandantes do exército também se transformaram em donos de propriedade. Deste modo, a casta de oficiais dentro dos "corpos de homens armados" também tem interesses materiais nas novas relações de propriedade que foram estabelecidas.
A China agora é a quarta potência mundial
Os últimos números demonstram que a China se converteu na quarta potência econômica do mundo depois dos EUA, do Japão e da Alemanha, e é o terceiro produtor mundial de bens manufaturados depois dos EUA e do Japão. Em 2004, a China consumia a metade do concreto armado utilizado no mundo. Converteu-se numa força importante, não somente militarmente, que já era, mas também economicamente.
Inicialmente, os capitalistas estrangeiros pensavam que poderiam obrigar a China a se abrir e depois a encheriam de mercadorias. Contudo, a China se desenvolveu de maneira diferente do que esperavam os imperialistas. A China agora é um grande exportador. Os EUA têm um déficit em mercadorias com a China que alcançou o recorde de 205 bilhões de dólares. Queixam-se de que a China está exportando demasiadamente para a Europa, EUA e para todo o mundo. Discutem regularmente sobre tarifas tentando limitar as importações da China. Mas, para deter as mercadorias chinesas, teriam de impor tarifas extremamente elevadas, porque o nível de produtividade da China é muito alto e seus produtos muito baratos.
Com o enorme desenvolvimento de suas forças produtivas, a enorme mudança de sua economia e a consolidação das relações capitalistas, é lógico que agora a China está se comportando como uma potência imperialista. Está importando matérias-primas e exportando produtos manufaturados e capital. Um dos fatores na determinação do aumento do preço do petróleo é a elevada demanda da China, que, agora, se converteu no segundo consumidor e importador líquido de petróleo do mundo. Também importa grandes quantidades de minerais: ferro, cobre, bauxita, zinco, manganês ou estanho, ademais de madeira e soja.
Suas relações com a América Latina e com o Caribe ilustram o caráter imperialista da China. Em 1999, por exemplo, a China exportou mercadorias, para a América Latina e para o Caribe, no valor de cinco bilhões de dólares e importou no valor de três bilhões de dólares. Em 2004, estava exportando mercadorias no valor de 18 bilhões de dólares e importando, da mesma região, no valor de 22 bilhões de dólares. A América Latina exporta para a China matérias-primas e alimentos principalmente; enquanto a China exporta para a América Latina têxteis, roupa, sapatos, maquinaria, televisores e plásticos. Em 2004, a China investiu 6,32 bilhões de dólares na América Latina. Quase a metade do investimento externo da China vai para a América Latina e Caribe. Somente em petróleo venezuelano, está planejando investir 350 milhões de dólares. A China também criou uma "aliança estratégica" com o Brasil, onde já existem fábricas de propriedade chinesa. 15% das exportações brasileiras vão para a China e o número está aumentando. A China também está competindo com a Índia pelos recursos petrolíferos na Ásia. Converteu-se num concorrente importante em escala mundial. Em 2004, o comércio mundial cresceu 5%. A China foi responsável por 60% deste crescimento. Quase dois terços do crescimento do comércio mundial se deve a China.
Em linha com este desenvolvimento, vemos que a China inclusive enviou tropas para a força da ONU no Haiti. Estão construindo uma grande marinha. A razão é que, no futuro, necessitarão controlar as rotas marítimas do Pacífico e em outras partes. Isto os levará a entrar em conflito aberto com os EUA. Os congressistas americanos já estão preocupados com o crescente nível da implicação da China na América Latina e estão citando a "doutrina Monroe", que estabelecia o princípio de que nenhuma potência que não fossem os EUA teria influência na América Latina.
Fortalecimento da classe trabalhadora
Este enorme desenvolvimento da economia chinesa tem outra cara. Junto ao massivo desenvolvimento das forças produtivas chega o enorme fortalecimento da classe trabalhadora. A cada ano, 20 milhões de pessoas se mudam para as cidades. A China se transformou rapidamente com o enorme desenvolvimento das áreas urbanas, com camponeses extremamente pobres que tentam escapar da pobreza do campo. Mais de 40% da população vivem agora nas cidades. Há 166 cidades na China com mais de um milhão de habitantes. Nos próximos 15 anos, espera-se que 300 milhões de pessoas se mudem para as cidades. A indústria da construção na China está no auge. Somente na construção há 38 milhões de trabalhadores. Em mais de 80 cidades, estão sendo construídos sistemas de transporte subterrâneo. Tudo isto tem efeito sobre a economia, com o aumento da demanda de aço, concreto armado etc. Trata-se da proletarização da sociedade chinesa em escala nunca vista antes.
Calcula-se que, dentro de 15 anos, haverá 800 milhões de habitantes urbanos. É a maior concentração proletária da história. Este seria um fenômeno sem precedentes. Seria o maior movimento deste tipo na história. Criaria o maior proletariado jamais visto na história. Será o mais poderoso do mundo.
Estes camponeses que se estão mudando para as cidades viviam em condições terríveis no campo. As cooperativas foram destruídas. Elas serviam para proporcionar toda uma série de benefícios, cuidados médicos, aposentadorias etc. Dois terços da população rural da China não dispõem realmente de um sistema previdenciário. Por isso, procuram emprego nas cidades.
Vimos este fenômeno antes: nos EUA e na Europa, com os imigrantes da América Latina, África e Ásia. Estão dispostos a realizar os piores trabalhos e a viver em condições terríveis, mas pelo menos recebem uma paga, dinheiro para enviar as suas famílias. Para eles, é um meio de escapar da pobreza; embora muitos deles mal consigam sobreviver. Recolhem muito pouco da riqueza que estão produzindo. Esta situação leva implícito o potencial para movimentos revolucionários no futuro.
O elemento progressista de tudo isto é a criação de milhões de "coveiros" do capitalismo, milhões de proletários. Nesse sentido, damos as boas-vindas ao desenvolvimento da indústria. Embora a um preço terrível, está criando a classe que levará adiante a transformação da sociedade. Nas cidades, foram criados bairros enormes da classe trabalhadora, com uma acumulação de contradições enormes.
Embora o capitalismo chinês esteja se desenvolvendo com velocidade precipitadora, o desmantelamento da economia planificada foi um retrocesso reacionário. O atual desenvolvimento econômico poderia facilmente ser igualado e superado; os desequilíbrios, a natureza caótica do crescimento, a crescente polarização social poderiam ser evitados se existisse um regime genuíno de democracia operária.
Existe uma enorme polarização entre as classes, entre a cidade e o campo, entre as zonas capitalistas e as velhas zonas industriais estatais. Há enormes disparidades sociais. Os 10% mais ricos nas cidades possuem 45% da riqueza. Os 10% mais pobres possuem somente 1,4%. Enquanto se está criando uma nova classe burguesa endinheirada, existem mais de 200 milhões de desempregados.
O desenvolvimento desigual também afeta as diferentes regiões da China, algumas delas estão se beneficiando do crescimento que se está produzindo no Leste e nas regiões costeiras. O desenvolvimento desigual tem o risco de acender a questão nacional na China. Há 100 milhões de pessoas que pertencem às minorias nacionais (tibetanos, turcomanos, mongóis, uigures) e há enfrentamentos regulares com a polícia. Nesta situação de polarização, a questão nacional pode ser colocada novamente de forma brusca.
É verdade que o desenvolvimento econômico elevou os níveis de vida de alguns, mas existe a outra parte da equação. O crescimento econômico, longe de garantir a estabilidade, está provocando uma maior militância operária e fermentação social. As condições de vida e de trabalho, a forma como se distribui a riqueza, são as causas principais. As massas desprezam os burocratas que estão destruindo todas as suas conquistas.
As condições da classe trabalhadora na China são semelhantes às condições na Inglaterra descritas por Engels no século XIX. 80% das mortes nas minas acontecem na China, mas produz somente 30% do carvão do mundo. Em 1991, morreram 80 mil trabalhadores em acidentes de trabalho. Em 2003, este número disparou até os 440 mil. Existem pressões incríveis sobre a classe trabalhadora. Esta não é uma sociedade feliz e estável olhando para um futuro confortável. Entre os que têm entre 20 e 35 anos de idade, a primeira causa da morte é o suicídio. A cada ano, há 250 mil suicídios e outras 2,5-3,5 milhões de tentativas. Milhões perderam seus empregos. Há grandes protestos, mas o incansável processo em direção ao capitalismo continua.
Já dissemos que o que hoje está acontecendo na China tem algumas similaridades assombrosas com o início do desenvolvimento do capitalismo na Rússia há mais de cem anos. A dissolução das velhas comunas agrícolas, seguida pelo desenvolvimento da indústria na última parte do século XIX criou um proletariado jovem, formado por camponeses que abandonavam a terra. A criação deste proletariado e as terríveis condições criadas por este processo levaram à revolução de 1905 e, mais tarde, à Revolução de Outubro. Estão se criando na China as condições para um enfrentamento de classe que finalmente levará a um resultado similar, uma insurreição revolucionária.
Já ocorreram greves duras. O número de conflitos trabalhistas de todo tipo aumentou 12,5% em 2000, 14,4% em 2001, quando alcançou os 155 mil. Em 1999, houve cerca de sete mil "ações coletivas", como são chamadas, que normalmente eram greves ou operações-tartaruga, com um mínimo de três pessoas participando em cada uma, um total de mais de 250 mil pessoas. Isto representa um aumento de 900% desde 1992. Desde 1999, o número de lutas coletivas aumentou aproximadamente 20% ao ano. Embora os números absolutos ainda sejam bastante baixos, estes movimentos são um sinal do que está por vir. Esta é uma indicação de que o crescimento econômico não se traduz mecanicamente em estabilidade social. Na realidade, é o contrário que acontece.
A economia chinesa agora está governada pelas leis do capitalismo. Tem havido investimentos massivos, que estão baseados na perspectiva de um mercado mundial sempre em crescimento. Mas não é possível sustentar isto para sempre; portanto, em determinado etapa a China também enfrentará as crises. Não podemos estabelecer uma data para isto, nem dizer exatamente quando ocorrerá. Mas ocorrerá e quando acontecer será uma crise profunda e terá impacto no mundo todo.
O proletariado chinês é uma classe trabalhadora nova e robusta. Havia - e ainda há - uma classe trabalhadora considerável que trabalha nas indústrias estatais. Esta camada, apesar da burocracia, tinha obtido algumas condições muito favoráveis. Agora, as estão perdendo. A relação entre os trabalhadores e as empresas para as quais trabalham cada vez mais se parece com o Ocidente. As conseqüências, em determinado momento, serão uma explosão da luta de classes.
A posição do Partido Comunista
No momento, o Partido Comunista domina e controla a situação. Mas o que está acontecendo no Partido Comunista? O Partido Comunista tem entre 60 e 70 milhões de militantes. Isto representa apenas 5% da população. No passado, o partido era o instrumento da burocracia estatal, mas, recentemente, foi permitida a entrada dos capitalistas chineses. Agora, 30% dos capitalistas chineses são membros do Partido Comunista; isso demonstra que acreditam que seus interesses podem ser mais bem defendidos pertencendo ao partido. Os capitalistas ainda são uma pequena minoria em termos absolutos, mas é muito significativo que tenha sido permitida a sua entrada em número tão grande.
Há alguns anos mudou quase a metade do Comitê Central; obviamente, alguns dos velhos burocratas foram considerados um obstáculo para o movimento em direção ao capitalismo e foram afastados. Dessa forma, o Partido Comunista poderia ser utilizado pelos capitalistas como instrumento de defesa de seus interesses de classe. Dentro das camadas inferiores do partido deve haver muitos que acreditam no "comunismo", pelo menos o que eles entendem como comunismo, e alguns deles estarão familiarizados com as idéias de Marx. Mas nas fileiras superiores, que são as que detêm em suas mãos as alavancas do poder, o que os guia é o processo de restauração capitalista.
Qual é o futuro do Partido Comunista Chinês? Na medida em que a economia continue se desenvolvendo ao ritmo atual, a direção do Partido Comunista poderia controlar a situação e manter certa estabilidade dentro da sociedade e no partido. Mas quando surgir um contratempo sério, uma crise econômica importante, enfrentamentos de classe importantes, conflitos nacionais e sociais de todo tipo, poderia surgir uma tendência de rompimento em pedaços, em linhas diferentes. Devemos ter em conta que o Partido Comunista Chinês não é um partido como tal, portanto não se pode comparar com os PC do Ocidente. O Partido Comunista Chinês é parte do aparato do Estado desde 1949, quando chegou ao poder.
Entretanto, na base dos acontecimentos o seu controle do Estado poderia ser rompido. No caso da burocracia russa, isto aconteceu de maneira convulsiva. O velho e monolítico partido estalinista se rompeu em muitos partidos que representavam diferentes grupos de interesses. Disto também surgiram vários Partidos Comunistas que se converteram em autênticos partidos dos trabalhadores. Mas este processo na China é coisa do futuro. Atualmente, a burocracia chinesa controla a situação e o partido está sendo utilizado para desenvolver o capitalismo.
A única coisa segura é que não será um processo tranqüilo. Como a nova economia capitalista produz novas contradições, isto provocará divisões dentro da hierarquia do partido. Na realidade, já existem estas divisões pelo conflito atual relacionado com novas mudanças nas leis que regem a propriedade. Como interpretamos estas divisões dentro do PC? Devemos partir de todo o processo e ver até onde vai. Chegou a um ponto onde se estabeleceram as relações capitalistas. Existe uma diferenciação entre o trabalho assalariado e o capital, a concorrência no mercado, o objetivo do lucro etc. Ainda permanecem fortes remanescentes do velho sistema, mas estes ou estão sendo preparados para a privatização ou estão funcionando como empresas estatais capitalistas. Devemos ter em conta este setor estatal, mas temos de compreender que agora o setor privado é a parte mais dinâmica da economia e que o movimento em direção ao capitalismo se consolidou.
Dentro da burocracia de um país tão grande é inevitável o aparecimento de contracorrentes, frações diferentes com diferentes idéias e interesses. Existe uma ala que está observando todo o processo e se encontra preocupada com a instabilidade que ele pode provocar. O primeiro ministro e o presidente compartilham estas preocupações porque vêem os perigos dos contínuos desequilíbrios e da polarização. Esta ala quer introduzir reformas sociais para suavizar o golpe sobre as massas. Temem a revolução por baixo e por isso estão exigindo algum investimento em regiões menos desenvolvidas e o aumento do gasto social.
Não desafiam a essência do capitalismo e não intervirão ativamente para frear o desenvolvimento e a consolidação do capitalismo; estão preocupados com que as desigualdades, a crescente tensão social, levem em determinado momento a um movimento revolucionário do proletariado. Certamente, têm razão. O problema é que a manutenção da velha estrutura estalinista também teria levado a um movimento de massas em alguma etapa e ao colapso final do sistema. Portanto, esta ala da burocracia não empurrará o processo para trás, e somente tentará introduzir algumas reformas sociais para tentar suavizar o golpe para as massas.
A burocracia do Leste da China, que está mais estreitamente vinculada à nova classe capitalista, vê isto como o desvio de recursos essenciais para o desenvolvimento da indústria. Em lugar de reduzir a marcha do processo, esta ala é favorável a sua aceleração e a dar um fim de uma vez por todas aos remanescentes do velho sistema. O conflito atual, portanto, não é entre os que querem dar "marcha atrás" e os que querem o capitalismo. Trata-se mais exatamente da estabilidade do sistema em seu conjunto. A ironia é que, no longo prazo, este processo poderia romper o PC e levar a uma instabilidade ainda maior.
As contradições dentro da burocracia refletem, dessa forma, um conflito sobre o próximo estágio das reformas legais das relações de propriedade. Sob a pressão de algumas partes este processo foi desacelerado. Isto sublinha o fato de que o processo não é linear. Em mais de uma ocasião, como já vimos, tem havido períodos em que a burocracia tirou o pé do acelerador, mas sem desfazer nenhuma das "reformas" de mercado.
Este equilíbrio temporário e instável pode ser mantido na medida em que o PIB cresça ao ritmo anual atual de aproximadamente 9%. Milhões de empregos são perdidos a cada ano na indústria estatal, mas milhões de outros empregos são criados nos setores capitalistas. Dessa forma, pode-se absorver grande parte do fluxo de trabalhadores rurais às cidades. Embora os empregos criados proporcionem salários muito baixos, estes ainda são mais elevados do que os que se podem obter nas zonas rurais. Por isso, os trabalhadores emigrantes, ainda que trabalhem em condições terríveis, podem obter uma paga, enviar dinheiro para casa etc.
Como vimos, o grosso da economia chinesa agora funciona sobre bases capitalistas. Somente um terço do PIB é produzido pelo setor estatal. Ainda há algum caminho para privatizar o que resta, mas o setor estatal já não é mais o dominante. Continuarão reestruturando e privatizando o que resta dos setores estatais e se perderão ademais milhões de empregos. Nessa situação, manter o crescimento é uma necessidade absoluta.
Se pudessem ter outros 10-20 anos com um crescimento anual de 7-10%, poderiam atingir este nível de urbanização e industrialização com relativa facilidade. Mas isto depende do mercado mundial. A China exporta mais de 50% de seu PIB. Tem custos de mão-de-obra muito baratos e meios de produção muito modernos, isto é, níveis muito altos de produtividade. Mas a China sofre pressões. Há sinais de desaceleração em alguns setores da economia mundial; as economias da zona do Euro estão estagnadas ou crescendo lentamente. Há o início de superprodução em escala mundial, em parte devida ao crescimento chinês. Qualquer declínio significativo nos mercados mundiais afetaria drasticamente o crescimento da economia chinesa, como aconteceu no passado com o Sudeste Asiático. A China já está enfrentando a perspectiva de superprodução em aço, ferro e carvão, e também em bens de consumo. Estão aí os sintomas de uma futura crise de superprodução.
Isto está causando alarme ao FMI, que, a despeito de toda a retórica sobre a eficiência do mercado, constata que o problema fundamental da economia mundial é a superprodução. De acordo com os economistas do FMI, acima de 70% das indústrias chinesas têm problemas de excesso de capacidade produtiva, com as conseqüentes incertezas sobre a taxa de lucro. Isto é inevitável, devido ao frenesi dos investimentos que inunda o país, com um incrível 45% do PIB constituído por investimentos, uma percentagem historicamente sem precedentes; nem mesmo o Japão alcançou este nível durante o boom do pós-guerra. Enquanto a exportação continuar a crescer e o Ocidente puder continuar a se endividar, a China pode avançar; mas, com esta taxa de crescimento dos níveis de investimento, a China está dobrando sua capacidade produtiva a cada 4-5 anos, uma taxa de crescimento que inevitavelmente levará a uma massiva crise de superprodução. Em julho de 2005, o FMI publicou um relatório geral sobre a situação da China (FMI, Staff Report for 2005, 8/7/2005), que está centrado inteiramente no problema do boom dos investimentos. Isto tem aumentado enormemente o que Marx definiu como composição orgânica de capital (a relação capital-trabalho aumentou 450% desde 1984), dessa forma reduzindo o retorno dos investimentos de 16% para 12%.
O sinal de alarme da superprodução será tocado antes de tudo pelos bancos, que começarão a acumular novamente créditos insolventes. Daí o problema se estenderá aos níveis de emprego e ao conflito social.
A China também sofre pressões dos EUA para que valorize sua moeda ou enfrentará tarifas elevadas sobre suas exportações. Na atualidade, está sendo discutida uma lei no Congresso americano que imporia uma tarifa de 27,5% às importações chinesas! Em 2008, a China planeja permitir que sua moeda flutue. Contudo, a China não é o Haiti ou a Nigéria, onde o FMI pode chegar e dizer o que fazer. A China é uma importante potência e, portanto, surgirão grandes enfrentamentos relacionados a esta questão.
Em 2005, houve um aumento massivo das exportações chinesas para os EUA. O acordo de Multi-fibras pôs fim em janeiro do ano passado ao acordo das quotas têxteis. Como resultado, nos primeiros quatro meses do ano passado, as exportações têxteis chinesas aumentaram 70%. A China produz mais têxteis, e mais baratos, e isto significa o final dessa indústria na Europa. Hoje a China encontra-se à cabeça do investimento direto estrangeiro. Em 2004, a China recebeu 54 bilhões de dólares em investimento externo, uma prova clara da confiança da classe capitalista internacional nas novas relações capitalistas prevalecentes.
A China e os EUA
Qual é a perspectiva para os próximos anos? Alguns dizem que se está preparando um crack semelhante ao de 1997, que a economia é um trem desgovernado. Uma crise de superprodução está se aproximando e isto expressa uma mudança fundamental no sistema. A superprodução é uma característica de uma economia capitalista e não de uma economia planificada. Se a China desacelera isso terá um grande impacto sobre os EUA e os países asiáticos. A Malásia aumentou suas exportações para a China de um a sete bilhões de dólares em cinco anos. O Japão também tem grandes interesses na China: 16 mil empresas japonesas trabalham ali.
Devido a sua indústria altamente competitiva, a China agora está entrando em conflitos com o imperialismo americano. Contudo, existe uma contradição na relação entre as duas potências. Entre os maiores possuidores de bônus do Tesouro dos EUA estão a China e o Japão. Por isso, os chineses têm interesse em manter a economia americana flutuando, porque é um de seus maiores mercados de exportação. Não querem ver uma crise nos EUA. Prefeririam uma relação confortável, mas isso está descartado. Estão se enfrentando nos mercados mundiais. Os EUA têm um enorme déficit comercial e uma parte dele é com a China. Isto está provocando contradições dentro dos EUA. As empresas americanas que investiram na China estão colhendo grandes lucros. Estão produzindo barato na China e vendendo seus produtos nos EUA a preços determinados pelo mercado mundial. Praticamente todas as multinacionais importantes têm presença na China. Como pode, então, os EUA frearem o poder chinês, quando sua economia e suas principais empresas dependem da economia chinesa? Portanto, estão em jogo pressões contraditórias e o conflito continuará aumentando no futuro.
A revolução está sendo preparada
Junto ao desenvolvimento do capitalismo também chega o crescimento da enorme diferenciação de classe. Isto está colocando as bases para um conflito de classe na China. Na realidade, a China se converteu numa das sociedades mais desiguais do mundo. Já mencionamos as desigualdades nas cidades. O quadro completo é que os 20% mais ricos da população consome 50% da renda nacional total, enquanto que os 20% mais pobres consomem apenas meros 4,7%.
Os números foram obtidos do informe da ONU publicado num artigo da Xinhua News Agency (http://news.xinhuanet.com/english/2005-09/27/content_3549257.htm). O mesmo artigo continua dizendo que "um informe do Instituto de Estudos Salariais e Trabalhistas do Ministério do Trabalho e da Seguridade Social diz que, desde 2003, a desigualdade de renda na China piorou rapidamente e alcançou o nível ‘laranja', o segundo mais sério de acordo com as medidas do Instituto. Se não forem tomadas medidas efetivas, poderia piorar e alcançar o nível ‘vermelho' mais sério".
O informe da ONU se baseia no coeficiente Gini, uma medida estatística da desigualdade em um país determinado. Zero expressa "igualdade completa" e um representa "desigualdade completa". Na China, este coeficiente é de 0,45. De acordo com os níveis aceitos internacionalmente, quando o coeficiente Gini num país supera 0,40, então a situação pode se tornar instável. Na China, não somente alcançou 0,40, como também o superou e continua crescendo.
Como diz a agência Xinhua: "Se a tendência continua sem se deter, o objetivo do país de prosperidade comum para todo o povo não será conseguido e se ampliará o abismo desencadeando o mal estar social". Vemos novos prédios gigantescos brotando de todos os lados nas modernas cidades chinesas, rodeados por zonas imensas de pobreza urbana. Isto, por si só, é suficiente para provocar a luta de classes na China.
Quais seriam as tarefas dos marxistas nesta situação? Obviamente, a primeira tarefa é a de explicar o que está acontecendo. Se quisermos iniciar um diálogo com os trabalhadores, os estudantes, os militantes honestos do Partido Comunista Chinês, devemos estar seguros de que nossa análise corresponde com a situação real concreta. Portanto, devemos estudar em detalhe todos os aspectos da economia, da sociedade e da política chinesa.
Seria um erro sério tentar abordar um processo complexo, contraditório e historicamente sem precedentes, sobre a base de uma fórmula pré-determinada que não corresponda com o que estão vivendo os trabalhadores e a juventude. Este tipo de aproximação não nos levaria a parte alguma.
Necessitamos ter em conta as tradições da China. Os russos tinham a tradição dos bolcheviques, de Lênin e de Trotsky. Na China, essa tradição desapareceu. A principal tradição chinesa é a maoísta. Entretanto, não é a única tradição. Também existe a importante tradição de Chen Tu Hsiu (1879-1942), um dos fundadores do Partido Comunista Chinês que, em determinado momento, voltou-se na direção do trotskismo.
Chen estava fortemente influenciado pela Revolução de Outubro de 1917, dela compreendeu que o progresso social somente era possível derrubando os latifundiários e o capitalismo. Foi um dos líderes do antiimperialista Movimento de Quatro de Maio de 1919. No ano seguinte, juntou forças com outros revolucionários para fundar o Partido Comunista Chinês, que celebrou sua primeira conferência nacional em Xangai, em julho de 1921.
Seu destino foi trágico. Depois de seguir o conselho de Stalin em 1926, a revolução chinesa foi derrotada. O Comintern, não obstante, não aceitou nenhuma responsabilidade pelo fracasso e culpou a Chen de tudo o que aconteceu. Em 1927, ele foi destituído da direção do partido. Exigiu uma avaliação séria da política do Comintern e isto provocou sua expulsão em 1929, acusado de oportunista. Posteriormente, se uniu à Oposição de Esquerda trotskista.
É algo positivo que, na China moderna atual, existam sociedades Chen Tu Hsiu, criadas especialmente para estudar suas obras. No período recente, especialmente entre os estudantes, foram criados também círculos de discussão marxista. Existe, entre algumas camadas, sede por descobrir as idéias reais do marxismo. Isto reflete o desejo de se mover em direção a uma sociedade autenticamente igualitária, que só pode ser socialista e baseada na democracia operária.
A estas camadas mais avançadas, à classe trabalhadora e à juventude em geral, devemos dizer com clareza o que pensamos que aconteceu na China, explicando a superioridade da economia planificada, mas também analisando a crise da burocracia chinesa e porque assim aconteceu, porque o regime maoísta não sobreviveu.
Embora ainda existam remanescentes do velho sistema, tanto em termos do setor estatal como do aparelho do Estado, a tarefa fundamental a que agora a China enfrenta é a revolução social. O grosso da economia está em mãos privadas. O movimento em direção ao capitalismo é um fato inescapável. Tudo o que se fala de "socialismo com características chinesas" é uma folha de parra em que ninguém acredita, nem mesmo a burocracia chinesa. Embora existam tendências contrapostas, consideramos que o processo chegou ao ponto de não retorno.
O aparelho do Estado era e é o de um monstruoso regime burocrático totalitário que se fundiu às características mais repulsivas do capitalismo e do estalinismo. A casca externa, a forma, é a de um aparato estatal estalinista, mas o conteúdo é burguês. Esta situação está provocando contradições que devem produzir um movimento revolucionário em algum momento.
A China emergiu, por direito próprio, como uma potência mundial. Seu destino está vinculado aos acontecimentos em escala mundial, particularmente à economia mundial. Da mesma maneira, os acontecimentos na China podem ter impacto em escala mundial, tanto econômica como politicamente.
Em particular, a classe trabalhadora chinesa está destinada a desempenhar um papel fundamental no próximo período. Napoleão disse: "A China é como um gigante adormecido. Quando despertar, assombrará o mundo". Parafraseando a Napoleão, podemos dizer que, atualmente, o gigante adormecido é o proletariado chinês. Quando despertar, não haverá força sobre o planeta capaz de detê-lo e transformará toda a situação mundial.