Um provérbio marroquino diz: “a ovelha passa a vida inteira com medo do lobo, mas, no final, quem se banqueteia com a ovelha? O pastor!” Bem, alguns meses após a China e 10 dias após a Itália, as autoridades marroquinas anunciaram os primeiros casos de Covid-19 no país em 2 de março e os atribuíram a “fatores externos”. Especificamente, teria sido um marroquino retornando da Itália, e logo turistas franceses. A epidemia piorou, infectando 2.024 pessoas, das quais 126 morreram (em 15 de abril, 45 dias após as primeiras infecções), segundo dados oficiais.
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Inicialmente, as autoridades subestimaram a gravidade do perigo. Hoje, temem o impacto que o confinamento terá na economia e nos lucros das empresas. As medidas adotadas foram caóticas: por exemplo, o governo suspendeu os voos de e para a China enquanto anunciava que um grupo de estudantes marroquinos que mora na China poderia voltar para casa. A segurança nos portos e aeroportos foi reforçada, mas muitos dos que passaram por lá comentaram a escassez de equipamentos no local. A segurança em todo o país aumentou gradualmente até o anúncio de uma “quarentena” e, finalmente, de um estado de emergência sanitária de 20 de março a 20 de abril.
Depois que essas medidas foram impostas, o pessoal de segurança e os veículos blindados do exército entraram em cena para “garantir a implementação adequada da quarentena”. O Estado explorou a situação para reforçar seu controle, intervindo violentamente chutando e esbofeteando os cidadãos, como testemunhado por inúmeros vídeos circulando nas mídias sociais.
Um plano “proativo e eficaz”?
Todas essas etapas foram acompanhadas por uma campanha na mídia que pintou o Estado, especialmente “sua majestade“, como a própria encarnação da sabedoria. “O Estado não ajudou as pessoas que perderam o emprego? … A taxa de infecção no Marrocos está entre as mais baixas, com menos de 2.000 casos diagnosticados e menos de 200 mortos. Certamente a situação de Marrocos é melhor do que a dos Estados Unidos!”
Esse é o discurso oficial, mas a realidade é algo completamente diferente. Essas pessoas esquecem de mencionar alguns fatos que, para eles, não são importantes. A assistência financeira mensal aos trabalhadores “redundantes” (isto é, demitidos) é de apenas 800 dirhams [moeda marroquina] (86 dólares estadunidenses) para uma família de duas pessoas; mil dirhams (107 dólares estadunidenses) para uma família entre três e quatro pessoas e 1.200 dirhams (129 dólares estadunidenses) para uma família de quatro ou mais pessoas. Esses valores seriam suficientes para um asceta que não precisa comer, beber ou encontrar acomodações seguras, ou qualquer outro requisito da vida cotidiana … É revelador comparar essas quantias escassas com os 230 milhões de euros que o Palácio Real recebe todos os anos – 19 milhões por mês, ou o equivalente a 638 mil euros por dia!
Quanto ao número de casos notificados, mais de 40 dias se passaram desde que foram detectados os primeiros, e o Marrocos, em termos nacionais, tem uma das menores taxas de testes. Segundo dados do WorldOMeter, em 15 de abril, apenas 10.359 testes foram realizados para uma população de cerca de 36 milhões de habitantes. Isso é muito menor do que a taxa de testes em países sitiados como o Iraque (46.135 testes para 38 milhões de habitantes), Palestina (17.329 testes para 5 milhões de habitantes) e outros países que estão enfrentando um bloqueio imperialista, como Cuba (20.451 testes para 12 milhões de habitantes) e Venezuela (225.009 testes para 29 milhões de habitantes).
Estamos muito longe de podermos dar fé à “eficácia” de “sua majestade” ou de seu regime! Pelo contrário!
No entanto, isso era de se esperar, levando em conta as condições desastrosas da infraestrutura de saúde no Marrocos. Após 60 anos da chamada “independência”, o Marrocos ainda tem muito poucos hospitais ou salas de recuperação. Por que investir em tais coisas quando podemos usar o dinheiro para as forças armadas ou para pagar os salários dos oficiais de alto escalão? Os ricos também simplesmente evitam ser tributados: a quantidade de dinheiro que saiu do país para paraísos fiscais e bancos estrangeiros entre 2004 e 2013 ultrapassou US $ 41 bilhões. Em consequência, o Marrocos tem apenas 1.640 leitos hospitalares para cerca de 40 milhões de habitantes, e apenas 684 deles estão em hospitais públicos. De 1960 a 2014, o número de leitos hospitalares diminuiu 31%. Hoje, existem apenas 3,7 médicos e 2,9 enfermeiros por cada 10.000 pessoas.
Isso é uma catástrofe, mas nem “sua majestade” nem seu governo estão preocupados, porque a maioria dos ministros e da classe dominante tem dupla cidadania e podem simplesmente fugir para a Europa para cuidar de si mesmos. Para eles, o problema surgiu somente depois que as portas da Europa se fecharam, mas eles decidiram alocar os leitos hospitalares existentes para os de “sangue azul”, enquanto exigiam que a maioria das pessoas do país ficasse em casa e tivesse fé na imunidade potencial ao vírus.
Não esqueçamos de mencionar que “sua majestade” deixou o país para se refugiar nas Ilhas Canárias em seu iate de 90 milhões de euros!
“No mesmo barco”?
Durante a reunião da Comissão do Interior e dos Coletivos Territoriais no parlamento, o ministro do Interior fez “um apelo ao espírito de cidadania para atravessarmos juntos esta crise“, sinalizando que todos os marroquinos deveriam se considerar no mesmo barco.
Que barco magnífico! Como a Arca de Noé, não só é capaz de transportar o frango ao lado da raposa, mas também pode transportar médicos ao lado dos mesmos ministros que os repreenderam dois anos atrás, quando saíram às ruas para protestar contra as condições catastróficas do setor de saúde. Esse barco pode até acomodar trabalhadores explorados com seus salários miseráveis ao lado dos vampiros que os forçam a trabalhar sem nenhum meio de proteção!
Com essa metáfora do mesmo barco, querem nos convencer de que os “Makhzen” (o rei, seus ministros, oficiais de alta patente e outros representantes da classe dominante) se preocupam realmente com a saúde dos súditos … mas este é o mesmo regime que impôs medidas de austeridade a setores vitais, como a assistência médica, que prendeu centenas de militantes do Hirak [movimento de protesto em massa] no Rif (uma cordilheira remota) e os condenou a centenas de anos de prisão, simplesmente porque exigiram a construção de um hospital em sua negligenciada região.
De alguma forma, devemos nos convencer de que o mesmo Estado que mata manifestantes inocentes – e que matou a tiros uma jovem cujo único crime foi o de tentar fugir de barco de um país que não lhe dava trabalho nem dignidade – está subitamente preocupado com o destino de milhões de marroquinos. Também devemos nos convencer de que o mesmo Estado que permite que 20.000 crianças morram de doenças tratáveis como diarreia e desnutrição a cada ano, e que não se importa com as mortes de cem pessoas ao ano por picada de escorpião, de repente passou a sentir afeto por elas. O Makhzen nunca comete tais erros: está sempre certo!
“Confinamento” não significa a mesma coisa para todos
Embora o número de testes realizados no Marrocos até agora seja pouco superior a 10 mil, o número de pessoas presas por “violação das regras de confinamento” excede 28 mil! Obviamente, as únicas pessoas a serem punidas são os trabalhadores e os pobres que precisam deixar suas casas para sobreviver nessas circunstâncias difíceis. Aqueles com conexões governamentais, como a irmã do líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento, podem simplesmente entrar em contato com o Primeiro Ministro ou qualquer pessoa influente para que lhes seja permitido sair de casa.
Além disso, essa lei obviamente não se aplica aos proprietários de fábricas que forçam os trabalhadores a trabalhar sem lhes fornecer os meios mais básicos de proteção. Os trabalhadores viajam em meios de transporte superlotados e trabalham lado a lado, por longas horas, sob a ameaça de demissão. Essa é a verdadeira razão pela qual dezenas de trabalhadores em várias zonas industriais – principalmente Tânger, Casablanca, Marrakesh e Fez – se infectam, sem mencionar suas famílias e amigos. Até o momento, Casablanca registrou 85 casos, Marrakesh 66, Tânger 21 e Fez 68.
O Estado tomou medidas para punir esses capitalistas? Claro que não! Os sindicatos fizeram alguma coisa? Impossível, já que agora eles apoiam a “unidade” e a “paz social”, de forma unilateral.
Tudo isso confirma que nem o governo nem o sistema capitalista podem ajudar a sociedade a lidar com a pandemia; de fato, impedem ações efetivas, devido a décadas de políticas de austeridade, repressão e busca de lucro, em detrimento da vida de milhões de homens e mulheres.
Quem paga o preço?
Apesar das declarações do ministro do Interior sobre “o barco” que transporta todos os marroquinos, o peso desta crise não é verdadeiramente compartilhado por todos os passageiros! Milhões de trabalhadores, camponeses e os setores mais vulneráveis da sociedade estão sendo esmagados pelo aumento do desemprego e do custo de vida, além da repressão governamental. Milhões vivem com fome, diariamente, e lutam pelo mínimo necessário para sobreviver, correndo o risco de contrair o vírus em fábricas, estufas de produção de vegetais e bairros superlotados onde às vezes não há saneamento ou água potável. E, ainda assim, os parasitas capitalistas correm para tirar proveito da situação e acumular lucros enormes, aumentando todos os preços, incluindo alimentos com prazo de validade vencidos e máscaras faciais defeituosas que prejudicam a saúde das pessoas.
A imprensa oficial nos convida a “sermos honestos e não esquecermos de mencionar as contribuições significativas que muitos dos cidadãos mais ricos e as grandes empresas fizeram para o ‘Fundo Anti-Corona’”, estimado em bilhões de dólares. Para não estragarmos essa linda imagem, não devemos olhar muito de perto o fato de que suas contribuições são meras migalhas da enorme riqueza que acumularam explorando os trabalhadores e os recursos do país por décadas, com métodos que os próprios capitalistas consideram criminosos. Tampouco devemos enfatizar que eles estão apenas tentando salvar seu próprio sistema apodrecido. Acima de tudo, não devemos mencionar que só o fizeram depois que o Ministro da Economia confirmou que ele consideraria suas contribuições “como doações com o caráter de encargos contábeis dedutíveis de impostos“, o que significa que ele os isentaria de impostos em troca de sua generosidade! Aparentemente, não é apropriado salientar que eles estão agora à porta do governo para obter ajuda do mesmo fundo, como declarou abertamente a Confederação Geral de Empresas do Marrocos.
O verdadeiro inimigo
No Marrocos, assim como em todo o mundo, o vírus não é a causa da crise; é simplesmente o catalisador que acelerou um processo de longa duração. Nós, marxistas, já explicamos isso em muitos de nossos artigos.
A verdadeira causa da crise é o próprio sistema capitalista. O vírus não é responsável pela destruição dos setores de saúde e educação, nem pelas privatizações que tornaram a sociedade incapaz de lidar com a pandemia.
A busca febril do lucro, que é o único objetivo do capitalismo, tornou infernal a vida de milhões de pessoas. Arruína seus padrões de vida e condições de trabalho e está destruindo o meio ambiente e a própria civilização.
A crise piorou com a propagação do vírus. O Alto Comissário para o Planejamento, Ahmed Al-Halimi, previu, em meados de março, que a taxa de crescimento econômico não excederia um por cento. Em 13 de abril, no entanto, Al-Halimi anunciou uma revisão radical na previsão; ele disse à agência de imprensa espanhola EFE que o crescimento seria negativo (-1,8%) no segundo trimestre deste ano. E acrescentou que “o Marrocos registrará seu pior ano econômico deste século“.
É isso que o capitalismo tem a oferecer: uma crise depois de outra. A classe trabalhadora e os pobres são os que pagam o preço. Os capitalistas e seus governos já estão afiando suas facas como preparação para o período pós-coronavírus. O governo decidiu congelar as promoções de trabalhadores e funcionários do setor público e planeja deduzir três dias do salário dos funcionários e empregados de estabelecimentos públicos, incluindo trabalhadores do setor de saúde. Empréstimos massivos são prováveis. Isso colocará todo o peso da crise nos ombros dos trabalhadores por muitas gerações vindouras.
Os capitalistas já estão pedindo ao Estado que intervenha para ajudá-los a preservar seus lucros após a pandemia, às custas do povo, é claro. Nesse contexto, Akhenouch (ministro e empresário) publicou recentemente um artigo – certamente escrito por um de seus apoiadores – para apresentar o ponto de vista da classe dominante sobre o que deve ser feito após a crise do coronavírus. Ele disse que o Estado deveria pedir emprestado para ajudar os “atores econômicos”. Isso significa: “privatizar os lucros e nacionalizar as perdas”.
O próximo período será muito difícil para a classe trabalhadora. Demissões em massa, desmantelamento de muitos setores e desaparecimento de muitas pequenas e médias empresas levarão o desemprego a níveis sem precedentes. A redução de salários, o aumento do custo de vida e os vários ataques que a classe dominante e seu estado infligirão aos trabalhadores piorarão suas condições de vida e de trabalho.
A escala da crise e da própria pandemia são um choque para a classe trabalhadora. Os trabalhadores se veem imobilizados nas cadeias da burocracia sindical, que defende o sistema capitalista a todo custo. Isso foi amplamente ilustrado pela traição da liderança sindical ao aprovar a decisão de tarifar os salários e seu silêncio diante dos vários ataques contra os trabalhadores. A classe trabalhadora também não possui um partido político que possa uni-la como classe e oferecer-lhe um programa de luta. Tudo isso terá um impacto sobre a classe trabalhadora e sua capacidade de responder no curto prazo.
Mas o certo é que, depois que a pandemia terminar, a classe trabalhadora retornará às fábricas e às ruas com uma consciência mais plenamente desenvolvida. Os trabalhadores já viram para onde nos levou as políticas de austeridade e privatização; eles sofreram o total desprezo do Estado e dos capitalistas por suas vidas e seus sofrimentos. Eles também terão percebido que o setor público sitiado enfrentou a crise da melhor maneira possível, ao contrário do setor privado, cujos gestores capitalistas estavam todos escondidos debaixo de suas camas.
Então, a classe trabalhadora se levantará para lutar, econômica e politicamente. Exigirá o fim dos ataques ao setor de saúde e educação e se oporá a qualquer repressão. Essa luta de classes será de natureza internacional: a classe trabalhadora marroquina se unirá a esse movimento restaurando suas tradições revolucionárias, inspirando-se nas lutas dos trabalhadores de todo o mundo e enriquecendo-as com sua própria experiência.
Nesse contexto, as idéias marxistas – que oferecem uma alternativa revolucionária com a introdução dos pilares do controle dos trabalhadores sobre a riqueza social e o planejamento central da economia a serviço de toda a sociedade – se tornarão cada vez mais atraentes. Ficará fácil para os trabalhadores entender por que não devem deixar seu destino nas mãos de uma minoria gangrenada, e por que, em vez disso, devem assumir o controle eles mesmos.
Esse desenvolvimento da consciência não será necessariamente gradual, mas ocorrerá por explosões e saltos. Essa é a perspectiva pela qual devemos nos preparar construindo uma liderança revolucionária que possa levar os trabalhadores à vitória, para construir uma sociedade socialista em que a vida estará segura, e será bonita, e livre de toda opressão e toda violência!