A Revolta de Mianmar em 1988 foi um ponto de inflexão na história do país. Pela primeira vez em mais de um século, as massas birmanesas enfrentaram diretamente uma ditadura militar e a derrubaram. Durante as lutas de massa contra o golpe militar em 2021, muitos ativistas buscaram inspiração na experiência de 1988. Infelizmente, no entanto, a revolta de 1988 acabou em derrota, de forma semelhante ao que aconteceu este ano.
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Para avançar, temos que nos perguntar quais os fatores que levaram ao fracasso do movimento de 1988, que erros foram cometidos. Alguns destes também estiveram presentes no movimento deste ano? Precisamos fazer uma análise séria desse levante para tirar as lições históricas e as conclusões corretas.
As circunstâncias históricas que levaram ao movimento
Mianmar entrou no século 20 como um país extremamente atrasado, amplamente dominado pelo imperialismo britânico. Durante a Segunda Guerra Mundial, também foi devastada pela invasão dos japoneses. Os mais valentes lutadores pela libertação nacional, particularmente aqueles em torno do Partido Comunista da Birmânia (PCB), foram capazes de ajudar a derrotar os japoneses e a ganhar a independência da Grã-Bretanha no final da Segunda Guerra Mundial. No entanto, devido à sua visão stalinista de colaboração de classe, que se originou de sua perspectiva de “revolução democrática” como uma fase na luta de longo prazo pelo socialismo, o PCB ajudou a colocar a burguesia nacional no poder na esperança de desenvolver uma chamada democracia burguesa “progressista”.
A burguesia birmanesa – como foi o caso em todos os países coloniais e ex-coloniais – foi incapaz de desenvolver Mianmar com base no capitalismo, e incapaz de desenvolver o país de forma independente das principais potências imperialistas. Por causa disso, ela estava muito mais interessada em manter sua posição de servidora leal do imperialismo e, portanto, em derrubar o PCB, que ela via como uma ameaça ao seu domínio de classe. No entanto, ao invés de mobilizar as massas nas cidades para uma revanche, o PCB – usando a desculpa de que havia sido banido pelo novo regime – abandonou as cidades em uma tentativa de travar lutas de guerrilha no campo, na esperança de poder replicar a guerra camponesa que levou Mao Zedong ao poder na China. Essa perspectiva incorreta apenas fez com que seus laços com as massas urbanas fossem cortados, deixando-os assim incapazes de desempenhar um papel no fornecimento de liderança a essas camadas.
Embora o PCB tenha perdido sua influência, o governo burguês birmanês permaneceu completamente incapaz de desenvolver Mianmar, e o país tropeçou no caos e na pobreza. A situação chegou ao auge quando uma ala do Exército Nacional da Birmânia, liderada pelo General Ne Win, liderou um golpe de estado em 1962 e estabeleceu uma ditadura militar. Como foram a classe capitalista e sua economia de mercado que sufocaram o desenvolvimento de Mianmar, os oficiais do exército optaram por nacionalizações generalizadas e efetivamente estabeleceram uma economia planejada.
No entanto, ao contrário da economia planejada saudável estabelecida durante a Revolução Russa de 1917, que foi baseada na democracia e no controle dos trabalhadores, a forma como os eventos se desenrolaram em Mianmar levou a uma economia planejada burocraticamente, com um Estado policial ditatorial no seu comando. Embora este regime sob Ne Win se recusasse explicitamente a referir-se a si mesmo como “social-democrata” ou “comunista”, era, em essência, um “Estado operário deformado”, um fenômeno em que uma economia planejada é ditatorialmente comandada por uma burocracia, em vez de ser administrada democraticamente pela classe trabalhadora. O teórico marxista Ted Grant explicou por que foi esse o caso de Mianmar em seu panfleto Revolução Colonial e Divisão Sino-Soviética, escrito em 1964:
“A fraqueza do imperialismo, o equilíbrio de forças em nível nacional e internacional, levou a uma situação em que a casta de oficiais colocou diante de si o problema de encontrar alguma estabilidade na sociedade. Em todos esses países, o desenvolvimento da revolução burguesa, de um Estado democrático burguês, e de um desenvolvimento rumo a uma democracia burguesa moderna, dadas as relações existentes de forças nacionais e de classe, e com a pressão da economia mundial, pelo menos por um período prolongado é impossível.
“Consequentemente, alguma forma de bonapartismo, alguma forma de Estado policial militar, era inevitável na Birmânia. A casta de oficiais do exército se via no papel de única camada que poderia ‘salvar’ a sociedade da desintegração e do colapso, já que a débil burguesia obviamente não oferecia solução. Consequentemente, a casta de oficiais, que havia participado como uma das facções ‘socialistas’, decidiu que a única forma de avançar era sob o modelo da China ‘socialista’, mas chamado de ‘modelo birmanês’ de ‘socialismo’. Eles se moveram rapidamente em linhas já familiares – um Estado totalitário de partido único e a nacionalização de interesses de propriedade estrangeira, incluindo petróleo, teca, transporte etc. Eles começaram a expropriação da burguesia indígena. Eles até ameaçaram a nacionalização das pequenas lojas. Eles se basearam nos camponeses e na classe trabalhadora. Mas eles não têm um modelo de socialismo científico, pelo contrário, seu programa é o de um ‘socialismo birmanês-budista’”.
Apesar de suas profundas deformações, a economia planejada sob o regime militar provou, por um período, ser muito mais eficaz para o desenvolvimento do país do que a economia capitalista anterior havia sido. Em alguns anos, o PIB do país chegou a atingir uma porcentagem de crescimento anual de dois dígitos, chegando a 10-13%. Isso deu ao regime um certo grau de estabilidade e legitimidade.
No entanto, esse nível de crescimento nunca iria durar. Como o marxista russo Leon Trotsky explicou anteriormente em seu trabalho A Revolução Traída, se a classe trabalhadora fracassar em derrubar politicamente a ditadura burocrática e em administrar a economia planejada de forma democrática, enquanto dissemina a revolução internacionalmente, então a burocracia, ao longo do tempo, seria incapaz de administrar de forma eficaz uma economia complexa. As ineficiências, a má gestão e a corrupção, nestas circunstâncias, acabariam por se tornar um obstáculo absoluto ao sistema, levando-o a ser ultrapassado pelo desenvolvimento dos países imperialistas,o que ameaçaria sua existência. Isso explica por que países como a URSS e o Leste Europeu entraram em colapso, enquanto outros, como os regimes do Partido Comunista da China e do Vietnã, restauraram preventivamente o capitalismo como meio de manter sua ditadura política.
Em Mianmar, esse processo ocorreu de forma concentrada. O regime de Ne Win não era apenas antidemocrático, mas também extremamente brutal e corrupto. Na década de 1980, a economia começou a declinar. Nos anos 1986-88, o PIB contraiu acentuadamente, somente em 1988, em 11%.
As superstições pessoais de Ne Win também levaram a políticas desastrosas. Com o passar dos anos, o Estado aboliu e reemitiu arbitrariamente diferentes denominações de moedas, muitas vezes com base nos caprichos de Ne Win. Em 1985, o Estado repentinamente emitiu notas de kyat [denominação da moeda nacional] de 25, 35 e 75. A nota de 75 foi emitida para comemorar o 75º aniversário de Ne Win. Dois anos depois, o Estado emitiu notas ainda mais bizarras de 45 e 90, porque esses números, divisíveis por 9, foram considerados propícios por Ne Win.
A súbita reemissão de moedas significou que as economias de dezenas e milhares de pessoas seriam destruídas da noite para o dia, caso o dinheiro que possuíssem fosse repentinamente decretado pelo Estado como sem valor. Este caos, provocado por estas políticas de desmonetização em particular, abriu o caminho para as explosões sociais que os movimentos desencadearam em 1988. Como os acontecimentos que desencadearam as mobilizações ocorreram em 8 de agosto, os movimentos seriam também conhecidos como a revolução “8888”.
Como o movimento aconteceu
Como Hegel disse uma vez, a necessidade se expressa por acidente. Aos olhos superficiais, o levante “8888” parecia ter começado por um “acidente”: uma briga entre estudantes da RIT (Faculdade de Tecnologia da Informação de Rangoon) e o filho de um burocrata de alto escalão do partido do General Ne Win, que ocorreu em 12 de março de 1988. O filho do funcionário foi preso por agredir um estudante, mas logo foi solto. Isso irritou os estudantes, que se reuniram para protestar em frente à delegacia de polícia local. Mas eles enfrentaram uma reação violenta, com policiais matando um deles. Essa foi a centelha que acendeu o barril de pólvora de raiva, frustração e ódio acumulados por décadas contra o regime militar bonapartista de partido único liderado pelo general Ne Win.
No dia seguinte, 13 de março, os alunos da RIT saíram às ruas em protesto. O exército então reprimiu brutalmente, matando um estudante no local e outro no dia seguinte. Essa brutalidade enfureceu ainda mais a juventude e levou à expansão do movimento estudantil ao longo de vários dias. Quatro dias depois, os militares massacraram os estudantes perto da “Ponte Branca”, nas margens do Lago Inya em Rangoon (hoje conhecida como Yangon). Dezenas deles foram mortos e centenas presos neste incidente, que ficou conhecido como a“Ponte Vermelha”. O governo fechou todas as escolas e universidades na esperança de conter o movimento.
Mas o regime calculou mal. A dispersão dos estudantes em várias direções levou ao fogo revolucionário que se espalhou por toda a nação. Quando as escolas e universidades foram reabertas em junho de 1988, os jovens organizaram mais movimentos de protesto por vários dias. O regime, mais uma vez, enviou o exército para reprimi-los. Mesmo assim, o movimento continuou ganhando impulso e as massas em todo o país começaram a participar.
A pressão por baixo forçou uma concessão temporária no topo. O general bonapartista Ne Win teve que renunciar ao cargo de chefe do Partido do Programa Socialista da Birmânia (BSPP), renunciando também oficialmente ao poder do Estado em 23 de julho de 1988. No entanto, isso foi uma diversão, pois Ne Win entregou o poder ao notório general Sein Lwin, conhecido como “o açougueiro”. Por um lado, a ditadura militar prometia uma mudança para a democracia multipartidária, por outro, também ameaçava que “as armas não atirariam para cima, mas atirariam diretamente contra os dissidentes”. Apesar dessa ameaça e da brutalidade contínua, as massas não cederam, derrubando “o açougueiro”em apenas 14 dias.
Aqui, vemos o papel dos estudantes e dos jovens, que é muito semelhante ao papel de um barômetro, refletindo ou medindo as pressões acumuladas na sociedade. Isso explica por que eles lutaram na vanguarda. Mas o movimento estudantil por si só não foi suficiente. Quando o principal líder estudantil convocou uma greve geral nacional, por meio de uma transmissão da BBC birmanesa, na noite de 6 de agosto de 1988, as massas trabalhadoras responderam em 8 de agosto. Esta greve geral nacional e as manifestações de massa transformaram os protestos estudantis e dos jovens qualitativamente ao colocar a questão: quem deveria dirigir a sociedade?
Ausência de uma liderança revolucionária
Tanto o levante em massa de 1988 quanto a revolução da primavera de 2021 tiveram pontos fortes e fracos. E embora o primeiro fosse muito mais longe (como explicaremos), em última análise, ambos falharam devido à ausência de uma direção revolucionária com as ideias e métodos corretos para levá-los à sua conclusão necessária: a tomada do poder pela classe trabalhadora.
As condições objetivas para a conquista do poder em 1988 eram muito favoráveis. Como Lenin explicou em “Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”, para uma revolução ocorrer, não é suficiente que as massas exploradas e, oprimidas, percebam a impossibilidade de viver da maneira antiga e exijam mudanças. Para que ocorra uma revolução, é essencial que os exploradores também não possam viver e governar da maneira antiga. A revolta de 1988 ocorreu exatamente quando essas duas condições coincidiram em Mianmar: as massas estavam preparadas para lutar e a elite dominante havia chegado a um ponto em que podia ver que os métodos que usava para governar o país não eram mais viáveis.
Notavelmente, quando o general Ne Win massacrou centenas de estudantes em 7 de julho de 1962, não ocorreu uma revolução. Da mesma forma, quando em 1974-76 ocorreram movimentos de trabalhadores e estudantes, uma luta de massas em todo o país não surgiu. Mesmo quando o governo do BSPP decretou a ilegalidade das notas monetárias, não ocorreu uma revolta em massa.
De tudo isso, os sectários e empiristas, olhando apenas para os fatos superficiais, tiraram conclusões erradas. Eles viam as massas birmanesas como sofrendo de falsa consciência, as viam religiosas demais e indiferentes à opressão e às injustiças do Estado. A ironia é que os liberais burgueses repetem mais ou menos a mesma ideia acompanhada de seu clichê: “o povo tem o governo que merece”. Essas pessoas não conseguem ver que as mesmas massas, que elas consideram “politicamente atrasadas”, se engajaram em dois levantes de massa no espaço de apenas algumas décadas, fazendo enormes sacrifícios heróicos no processo. Aqueles que abordam a revolução de um ponto de vista superficial também não podem explicar como e por que tais levantes de massa ocorrem.
Quando o regime militar estava passando por uma crise governamental em 1988, o próprio bonapartista Ne Win teve que declarar publicamente, no congresso anual do BSPP, que não podiam mais continuar da maneira antiga. Quando ambas as condições essenciais para uma revolução – delineadas por Lenin – amadureceram, eclodiu um movimento de massas espontâneo em todo o país. Mas também temos que entender que a revolta de massas de 1988 não poderia ter surgido “espontaneamente” sem que as massas tivessem passado pela experiência do movimento estudantil de 7 de julho de 1962 e dos movimentos de trabalhadores e jovens de 1974-76. Os ultra-esquerdistas e os liberais burgueses não conseguem ver que nada se perde na história, e que as massas aprendem com suas experiências.
No entanto, apesar da mobilização e organização dos jovens ativistas, o movimento de massa de 1988 como um todo manteve um caráter semi-espontâneo. Isso se deveu à falta de um partido revolucionário de massas, que acabou levando a poderosa revolta de massas a um beco sem saída. Grande parte da culpa por isso pode ser atribuída ao PCB, que perseguiu uma estratégia totalmente falida e falhou manifestamente em fornecer qualquer direção ao movimento de massas. Por décadas, o PCB, seguindo os princípios do stalinismo-maoísmo, vinha tentando liderar “uma insurreição do campo”, vendo a organização da “luta armada rural” como seu objetivo principal. Todas as outras considerações, incluindo a luta de massas da classe trabalhadora, foram consideradas secundárias em relação à sua “sagrada” luta armada.
Depois de tantos anos trilhando o caminho da luta armada “rural”, o PCB levantou o slogan da “democracia multipartidária” em uma resolução de seu terceiro congresso em 1985. De acordo com o relatório do Secretário-Geral do PCB na época, eles enviaram a resolução como um apelo a quase toda a geração anterior de políticos burgueses de Mianmar, incluindo o ex-primeiro-ministro U Nu, o ministro de assuntos internos, U Kyaw Nyein, junto a outros ativistas políticos e esquerdistas nas principais cidades, para participarem na luta contra o regime militar de Ne Win.
Nesse momento, o PCB stalinista seguia fielmente a teoria “etapista” da revolução, que afirma que as tarefas dos comunistas e dos trabalhadores hoje é lutar pela etapa capitalista “democrática” da revolução ao lado da chamada burguesia progressista, enquanto a luta pela revolução socialista está relegada a um futuro distante. No passado, os stalinistas de todo o mundo se referiam a essa teoria falida como a “teoria das duas etapas”. O PCB, entretanto, acrescentou uma terceira etapa! De acordo com a concepção do PCB, sua tarefa na época era derrubar o regime militar e ganhar uma “democracia liberal burguesa”, após o que eles lutariam pela “democracia do povo/nova democracia”, antes de lutar pelo socialismo. Essas acrobacias teóricas serviram, em última análise, para justificar as políticas de colaboração de classes do PCB.
Apesar dessa perspectiva incorreta, os antigos stalinistas perceberam que estava se aproximando um movimento de massas iminente nas cidades e se prepararam apressadamente para a construção de uma rede clandestina de “4.828 comitês do partido”, cujo nome foi baseado em um levante anterior sob sua liderança conhecido como “Luta armada democrática do povo” de 28 de março de 1948. Logicamente, tendo abandonado as cidades por tanto tempo, sua preparação não foi suficiente. O PCB fracassou em preparar os elementos avançados da classe trabalhadora urbana e da juventude revolucionária para se tornarem os quadros de aço, ignorando o que Lenin e os bolcheviques na prática realmente fizeram na Rússia. Assim, o movimento como um todo carecia da direção revolucionária necessária para levá-lo à vitória.
Apesar disso, durante a luta de massas de 1988, diferentemente da revolução de 2021, os comitês de greve eram muito fortes nos respectivos municípios, graças à preparação dos militantes no terreno e ao poder criativo das massas em luta. E embora o regime militar tentasse retratar o levante de 1988 como um episódio de assassinatos violentos, na verdade, foi uma luta de massas muito pacífica, pelo menos em termos da conduta das massas. Não houve motins violentos nem caos durante o período de vácuo de poder depois que o general Ne Win e seu sucessor, o general Sein Lwin, foram depostos.
O poder popular era exercido nas ruas, com os comitês de greve dos municípios organizando e liderando as massas na luta. Esses comitês de greve urbanos eram semelhantes aos Soviets de deputados operários e soldados que surgiram após a Revolução de Fevereiro de 1917 na Rússia. Embora nunca tenham alcançado o nível de coordenação que vimos na Rússia, foram, não obstante, órgãos democráticos e de luta das massas em greve. Um governo revolucionário provisório poderia ter sido organizado com base nesses comitês de greve urbanos, transformando-os em instrumentos genuínos do poder dos trabalhadores.
Durante a revolta em massa de 1988, os comitês de greve municipais exerceram o poder em nível local, enquanto o chefe do regime militar era forçado a renunciar e os soldados voltavam para os quartéis após a queda do açougueiro General Sein Lwin. Foi um momento em que o poder dos trabalhadores poderia ter sido construído pelas massas em luta nas ruas. Então, por que as massas trabalhadoras não conseguiram tomar o poder político? Pode-se ver claramente aqui que faltava do fator mais importante, a liderança política revolucionária e o partido.
Essa ausência de um partido revolucionário de quadros capaz de coordenar e organizar o movimento de massas em escala nacional criou um vácuo. No calor da luta de massas, vários agrupamentos surgiram. Uma camada avançada de estudantes formou a ABFSU, a Federação de Sindicatos de Estudantes de toda a Birmânia. Teve o jornalista Hantharwaddy U Win Tin que organizou a união de escritores e intelectuais. Havia muitos outros, mas nenhum deles tinha perspectiva suficiente para impulsionar o movimento. Enquanto isso, o governo BSPP destruía todas as organizações de massa militantes. Sob essas condições, as massas estavam tentando se organizar e buscar a liderança no calor da luta.
Também houve várias personalidades que tentaram se apresentar como “líderes do povo”. Por exemplo, o ex-general Aung Gyi, que ficou em segundo lugar depois de Ne Win, se proclamou o líder do levante, mas as massas em luta o rejeitaram. Embora as massas pudessem varrer um oportunista tão reacionário da posição de liderança, era outra questão criar a liderança revolucionária necessária no calor do momento.
Outros tentaram preencher o vazio. Alguns esquerdistas, sob a liderança do “comitê do partido 4828”, tentaram atrair Daw Khin Kyi – esposa do falecido líder nacional Aung San e mãe da ganhadora do prêmio Nobel Aung San Suu Kyi – para uma posição de liderança pública, mas ela morreu inesperadamente. A intelectual liberal Aung San Suu Kyi, que havia chegado à Birmânia para cuidar de sua mãe, foi então catapultada para se tornar uma figura pública da noite para o dia. Isso só foi possível devido à ausência de um partido revolucionário de massas.
Em A Classe, o Partido e a Liderança, onde analisou o fracasso da revolução espanhola na década de 1930, Trotsky explicou a impossibilidade de se criar uma nova liderança sob o fogo da revolução da seguinte maneira:
“Mas mesmo nos casos em que a velha direção tenha revelado sua corrupção interna, a classe não pode improvisar imediatamente uma nova direção, especialmente se não herdou do período anterior fortes quadros revolucionários capazes de aproveitar o colapso do antigo partido dirigente.” (A classe, o partido e a liderança – Por que o proletariado espanhol foi derrotado? [Questões de teoria marxista], 1940)
A estratégia incorreta do PCB significou que as vidas de muitos jovens e estudantes radicalizados foram sacrificadas na luta armada subsequente, com o poder caindo nas mãos dos liberais anos depois, os quais, agora, foram derrubados pelos militares.
O Movimento 8888: alguns ganhos importantes
Embora a revolta de 1988 tenha sido derrotada, as coisas não podiam voltar a ser o que eram. O movimento teve um certo impacto. Seus principais slogans eram “abaixo a ditadura militar de um partido” e “abolir a constituição de 1974”. Sob a pressão do levante, os militares finalmente foram forçados a afrouxar e a conceder alguma forma de governo democrático-burguês. Além disso, o BSPP entrou em colapso quando se tornou evidente que não tinha base social de massas, embora as massas em greve tivessem apenas limitado suas demandas a uma democracia multipartidária na qual o BSPP competisse com os outros pacificamente.
A Revolução de 1988 não só derrubou a ditadura militar de um partido sob o general Ne Win, mas também conseguiu derrotar as tentativas do general açougueiro Sein Lwin de retomar o poder. De forma decisiva, os soldados rasos mostraram solidariedade com as massas em luta nas ruas quando receberam ordem de esmagá-las. Alguns setores de soldados rasos e policiais mostraram simpatia pelas massas e alguns até participaram do movimento, embora não pudessem se envolver abertamente em motins, pois ainda eram rigidamente controlados pela ditadura militar.
Por outro lado, os ex-generais, incluindo ex-comandantes em chefe, organizaram o “grupo de ex-soldados patrióticos” – que mais tarde se tornou uma das seções fundadoras do NLD (Liga Nacional para a Democracia, o recém-deposto partido liberal) – e fizeram um apelo revolucionário aos soldados para que ficassem do lado das massas lutadoras. A declaração deles teve um eco generalizado entre os soldados. A camarilha militar estava claramente ciente do perigo que isso representava e agiu assim para reconsolidar o exército de volta sob o seu rígido controle.
O impacto do movimento de massas de 1988 foi maior do que o de 2021 porque as massas desempenharam um papel mais decisivo em termos de sua própria auto-organização, comitês de greve e assim por diante. Entender esse fato central ajudará a desenvolver uma estratégia que pode realmente levar à vitória no futuro. Infelizmente, o papel das massas durante a Revolução 8888 é freqüentemente ignorado ou minimizado pelos ultra-esquerdistas de hoje.
Enquanto isso, a revolução de 2021 até agora não conseguiu nem mesmo esses ganhos parciais. O INUG (Governo Provisório de Unidade Nacional), também conhecido como governo “on-line”, convocou uma chamada “terceira” reunião do parlamento de acordo com a constituição de 2008, que tinha declarado anteriormente revogada. A ironia é que a junta militar, liderada pelo general Min Aung Hlaing, também está usando a constituição de 2008 como uma cobertura legal, apesar do fato de ter violado a constituição elaborada pelos militares várias vezes. E, longe de ter sido dissolvido, o atual partido militar, o USDP, ainda opera como uma rede de informantes e agentes provocadores e está organizando gangues fascistas paramilitares que contam com ultranacionalistas budistas e elementos lumpen.
Ao avaliar as limitações do movimento de 2021, devemos apontar o legado do levante de 1988, em que vemos com nitidez a enorme força do movimento de massas nas ruas e nas greves gerais. Devemos enfatizar esse ponto em um período em que os ultra-esquerdistas minimizam o papel revolucionário do movimento de massas.
Estratégia revolucionária
Os meses de fevereiro e março deste ano costumam ser chamados pelos ultra-esquerdistas de período de lua de mel. Eles veem as greves gerais e os movimentos de massas nas ruas como meras manifestações pacíficas, enquanto a verdadeira revolução para eles só começou com os assassinatos de funcionários do Estado e com a realização de guerrilhas em nome da “luta armada”. Consequentemente, o debate sobre a estratégia revolucionária é enquadrado em termos de não violência versus luta armada.
Sejamos claros: nós, marxistas, não somos pacifistas, apesar de nossas críticas ao feticheStalinista-Maoísta pela “luta armada”. Nós, marxistas, também não somos terroristas sanguinários como a classe dominante gostaria de nos retratar. Não defendemos a violência pela violência. A nosso ver, para vencer a revolução, as massas operárias e camponesas devem se mobilizar em uma greve geral generalizada nas cidades, combinada com ocupações generalizadas de terras pelos camponeses no campo. Se toda a força da classe trabalhadora fosse mobilizada, a revolução poderia ser relativamente pacífica.
No entanto, isso não significa que se ignore a questão da autodefesa dos grupos armados nos locais de trabalho e dos grupos de camponeses armados. Na verdade, mobilizar a força total das massas, combinada com grupos de autodefesa seria a forma de reduzir a violência ao mínimo. É por isso que enquadrar o debate em termos de “não violência versus luta armada” é uma visão mecanicista e reducionista, que deixa questões importantes fora da equação.
Como já observado, o Partido Comunista da Birmânia adotou a linha maoísta durante a revolução de 1988. Eles e outros grupos guerrilheiros baseados em linhas étnicas travaram uma “luta armada rural” por três décadas (dos anos 1950 aos 1980). O objetivo de sua insurgência era derrubar a ditadura militar pela força. Essas forças de guerrilha aplicaram a estratégia maoísta de “insurreição do campo para cercar as cidades”. Temos que nos perguntar honestamente se eles alcançaram seu objetivo. A resposta é evidente: nem um pouco!
Foi apenas em 1988, quando vimos uma revolta em massa em todo o país, que o regime bonapartista do general Ne Win foi finalmente derrubado. Não negamos o papel das ações guerrilheiras camponesas em certas condições, mas se estas permanecerem isoladas da luta de massas, não alcançarão seu objetivo. Se substituirmos o movimento organizado da classe trabalhadora pela chamada luta armada, ao invés de subordiná-la a ele, acaba-se em uma espécie de cenário de Robin Hood, onde bandos de lutadores corajosos intervêm “pelas massas”, mas falham totalmente em realmente organizar as massas e elevar sua própria consciência e torná-las conscientes de seu próprio poder potencial.
Unidade nacional ou independência de classe?
O falecido líder stalinista do PCB, Bo Kyin Maung (também conhecido como camarada Tun), chegou à conclusão de que o levante de 1988 foi derrotado devido ao seu fracasso em construir a “unidade nacional”. Na verdade, o que ele estava dizendo é que o fracasso foi devido à falta de uma “Frente Popular”, ou seja, de uma aliança que incluiria os vários grupos que lideram o movimento, particularmente a burguesia liberal, que, mais tarde, iria promover o NLD.
O que essas pessoas não entendem é que, na era do imperialismo, a burguesia nacional dos países atrasados é incapaz de cumprir as tarefas da revolução democrático-burguesa. Lenin explicou esse fato 120 anos atrás, antes da Revolução Russa de 1905. A experiência de duas revoluções na Birmânia (1988 e 2021) também confirmou essa análise. Os liberais burgueses usurparam a posição de liderança nas revoluções de 1988 e 2021, mas falharam em ambas as vezes e traíram as massas que os seguiram.
O que aconteceu quando os liberais burgueses, aos quais os stalinistas queriam se unir, assumiram a posição de liderança? Eles desperdiçaram todas as condições favoráveis para a tomada do poder. Após a queda do açougueiro Sein Lwin, os soldados voltaram para o quartel. Surgiu a declaração do “grupo de ex-generais”, apelando aos militares para que ficassem ao lado do povo. Ao mesmo tempo, as massas em luta já estavam exercendo o poder do povo nas ruas.
Nessas condições, o que era necessário era formar um governo revolucionário provisório coordenando os órgãos de base que as massas haviam erguido no curso do movimento revolucionário em nível local, regional e nacional. Em vez disso, os liberais burgueses, liderados por Aung San Suu Kyi, apelaram ao regime em queda para formar um governo provisório. Eles desperdiçaram a oportunidade revolucionária, deixando de aproveitar as divisões que surgiram entre os soldados rasos. Isso deu à camarilha militar o tempo necessário para retomar o controle sobre o exército, que havia escapado de suas mãos.
Devemos nos perguntar honestamente: as políticas de colaboração de classes dos stalinistas são capazes de impedir os liberais de trair a revolução? A história do movimento em Mianmar, que remonta aos anos 1940, mostra que tais políticas não apenas falham em prevenir uma traição da burguesia liberal, mas na verdade facilitam tal traição! O verdadeiro problema não é a falta de unidade nacional ou de frente popular, mas a falta de um partido revolucionário de vanguarda da classe trabalhadora capaz de mostrar às massas o caminho a seguir, um partido que esteja determinado a conduzir as massas trabalhadoras ao poder.
Enquanto os estalinistas chegavam à conclusão, repetidamente, de que o que levou à derrota da revolução foi a falta de unidade com os liberais burgueses – a chamada burguesia progressista – alguns sectários ultra-esquerdistas chegaram à outra – igualmente incorreta – conclusão, que o movimento de massas de 1988 fracassou porque não adotou a linha da luta armada.
Devemos insistir aqui que nenhuma luta armada pode resolver a questão da liderança. Se a revolução for liderada por pessoas cujos objetivos se limitam à chamada “etapa democrática” da revolução, o capitalismo permanecerá intacto e com ele também o Estado capitalista. Nas condições de Mianmar, isso significa uma continuação do Estado atual, com toda a sua brutalidade.
Depois de 1988, alguns dos jovens revolucionários mais corajosos tentaram seguir o caminho da “luta armada”, mas falharam em seus objetivos. Devemos compreender os erros da ultraesquerda que forçaram as camadas avançadas do levante a “fazer algo agora”, em vez de construir pacientemente o partido de quadros necessário para levar a revolução à vitória. Como Lenin explicou, este tipo de “paixão pelas formas mais estreitas de atividade prática” é ruinosa para a luta revolucionária (Lenin, Que fazer?).
Nas palavras de George Santayana: “Quem não aprender com a história estará para sempre condenado a repeti-la”. Que a nova geração não repita os erros do passado, pois se o fizermos, falharemos mais uma vez em construir o partido de vanguarda revolucionário necessário e não estaremos prontos quando os trabalhadores e a juventude inevitavelmente se levantarem novamente no futuro.
A preparação para a próxima revolução começa agora!
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM