Quatro milhões de pessoas foram às ruas do Sudão no dia 30 de outubro em uma manifestação nacional contra o golpe militar. Ao mesmo tempo, uma greve geral paralisou todo o país, pois dezenas de sindicatos e organizações profissionais manifestaram-se em solidariedade. Isso foi recebido com violência implacável pela contrarrevolução, resultando em pesadas baixas e forçando as massas a recuar. Vivemos agora um momento decisivo para a revolução sudanesa. Ou ela irá para a ofensiva ou poderá enfrentar uma derrota sangrenta.
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O sábado (30/10) começou com um clima eufórico. As massas organizadas, representadas pelos comitês de resistência de bairro, trabalharam incansavelmente – apesar do apagão da mídia em curso e da repressão brutal pelas forças de segurança – para construir a “marcha de milhões”. Os resultados superaram as expectativas de qualquer pessoa.
Vazaram vídeos do Sudão ao longo do dia durante breves períodos de conectividade com a Internet, mostrando enormes colunas de pessoas em marcha, entoando slogans revolucionários, agitando bandeiras e exigindo o governo civil. A cobertura limitada torna difícil avaliar a escala e a amplitude exatas das manifestações, mas havia grandes multidões em Cartum, Bahri, Omdurman, Zalingei, Nyala, El Obeid, Porto Sudão, Kassala, Gedarif, Arbaji, Ibri, Dongola, Al -Nahud, Medani e Kosti. Também houve grandes protestos de solidariedade internacional em 50 cidades em todo o mundo, incluindo Washington DC, Ottawa, Perth, Paris e Londres.
A repressão
Mas, apesar do poder do movimento revolucionário, ele tem uma grande debilidade. A Associação de Profissionais do Sudão (SPA, na sigla em inglês), que está na liderança, tem insistido na “desobediência civil pacífica”, mesmo em face da repressão mais brutal. Este apelo foi ecoado pelos comitês de resistência de bairro e continua popular no local, sendo um dos principais slogans “pacíficos” (referindo-se à natureza dos protestos).
Essa foi a mesma abordagem que a SPA adotou durante a revolução de 2019. Mesmo quando as milícias tribais reacionárias Janjaweed massacravam dezenas de pessoas em Cartum, durante o terror de junho de 2019, a SPA continuou a clamar por protestos “pacíficos” e por “pressão da comunidade internacional” – em outras palavras, contando com o apoio do imperialismo e de nações e instituições como a ONU.
Devemos ser honestos: esta insistência ingênua em métodos não violentos coloca a revolução em sério risco. Não há níveis de brutalidade aos quais os generais contrarrevolucionários não se rebaixem em defesa de seu poder e privilégios. Eles demonstraram isso novamente. Não está totalmente claro quais forças de segurança participaram da repressão durante a marcha dos milhões, embora, supostamente, as Forças Centrais de Reserva (Abu Tera) e Tamazuj (3ª Frente), bem como a polícia de choque, estivessem envolvidos. Em qualquer caso, as RSF – milícias Janjaweed – foram a ponta de lança. Na tarde de sábado, filas de milicianos uniformizados dispararam gás lacrimogêneo e munição real para deter as manifestações, enquanto tropas à paisana se infiltravam nas fileiras dos manifestantes para atacá-los por trás de suas linhas. A repressão foi especialmente brutal em Cartum e Omdurman, com imagens emergentes de veículos blindados nas ruas e tropas atirando indiscriminadamente contra manifestantes desarmados, que só podiam responder fugindo ou atirando pedras.
O número exato de vítimas é impossível de calcular, mas pelo menos três pessoas foram mortas do dia 30, elevando o número total de mortes desde o golpe para 13, com mais de 100 feridos, só no sábado, o que significa que esse número aumentará dramaticamente. Houve apelos desesperados a doadores de sangue e suprimentos médicos pelo Sindicato Central dos Médicos do Sudão e pelos informes de ataques aos hospitais pelo RSF. Eles teriam tentado invadir o Royal Care Hospital em Cartum, apoiados por artilharia pesada, para prender os manifestantes feridos.
Ativistas importantes dos comitês de resistência estão sendo alvo das milícias. Em Al-Gineina, Darfur Central, houve relatos de quatro dessas prisões. No comitê local de Riade, houve o relato de um ativista sendo emboscado do lado de fora de sua casa no dia do golpe. “Achamos que eles podem ter clonado o telefone dele. Eles estavam esperando que ele saísse de casa e o capturaram … espancaram-no, apontaram as armas para seus pais e disseram-lhes para ficarem dentro de casa ou que iriam atirar em todos os três. Ainda não sabemos onde ele se encontra”, relatou um manifestante.
A maioria dos detidos presos esta semana foram levados para locais não identificados. Manifestantes, ativistas e jornalistas eram submetidos a um tratamento brutal sob o regime de Bashir depois de serem presos e levados para o que ficou conhecido como “Casas Fantasmas”. Os métodos de tortura incluíam forçar a ficar de pé por dias a fio, trancar em freezers e/ou submetidos a afogamentos, mas não se limitavam somente a isso. Essas prisões têm sido parte de uma estratégia sistemática para enfraquecer os comitês de resistência, e houve relatos de ativistas desaparecidos nos últimos dois anos. Mais notavelmente é o caso de Mohamed Abubaker Wad Akr, que desapareceu em 4 de abril e cujo corpo foi encontrado meses depois. Esses métodos estão sendo aprimorados agora.
Ao mesmo tempo, os militares fizeram uma campanha de desinformação por meio da mídia estatal (que está em suas mãos), negando que as tropas estivessem usando munição real, caluniando os manifestantes como bandidos violentos, inventando histórias sobre policiais sendo baleados e até sugerindo que os manifestantes “não eram cidadãos sudaneses”. Em Omdurman, a família de um jovem morto pela RSF foi buscar seu corpo no necrotério da cidade, apenas para descobrir que a causa de sua morte foi oficialmente atribuída à Covid-19! A contrarrevolução está tentando cobrir seus rastros.
A bancarrota do pacifismo
Com o aumento das baixas e o ímpeto em direção à contrarrevolução, os comitês de resistência dos bairros convocaram os manifestantes a se retirarem para suas casas e criarem barricadas em suas comunidades. Mas, mesmo agora, após mais uma violenta repressão, uma declaração emitida pela SPA, embora condenando o derramamento de sangue nas mãos do exército, continuou a apelar à “resistência pacífica, à ocupação das ruas … e à desobediência civil em massa.” A direção também fez novos apelos por apoio da “comunidade internacional”. Shaheen al Shaheef, membro do Comitê de Resistência de Cartum, disse à BBC: “As pessoas aqui são muito pacíficas. Esses protestos vão continuar pacíficos, mesmo quando confrontados com as armas”.
Esta não é uma estratégia para a paz, mas uma receita pronta e acabada para a derrota e para a morte em uma escala ainda maior. A menos que as massas estejam preparadas para se defender, de armas nas mãos, elas serão simplesmente destruídas. A contrarrevolução está perfeitamente disposta a restaurar a velha ditadura militar sobre um trono de ossos. A única maneira de derrotar o golpe, de uma vez por todas, e prevenir novos massacres, é que sejam imediatamente estabelecidos os comitês de autodefesa, que as massas sejam treinadas e armadas e que seja feito um apelo geral para conquistar quaisquer fileiras simpáticas do exército o mais rápido possível. Esta é a única maneira de repelir os militares.
Parece que o general Burhan, o líder do golpe, depende principalmente da seção mais reacionária das forças de segurança para facilitar a repressão. Em 2019, havia muita simpatia pela revolução nas fileiras dos soldados normais. A SPA não estava disposta a agitar em meio às tropas comuns, porque sabia que isso resultaria em um confronto armado com os generais.
A elite governante sudanesa não desistirá de seu poder sem lutar. Limitar a revolução a protestos de rua e greves gerais limitadas apenas encoraja a contrarrevolução, enquanto desmoraliza as massas revolucionárias.
Esse escrúpulo deve ser abandonado imediatamente. Um apelo geral deve ser enviado às tropas normais – que são formadas por trabalhadores e camponeses comuns – enfatizando o tratamento brutal de seus irmãos e irmãs de classe nas mãos da RSF, e convocando-os ao motim; e juntar, apoiar, treinar e armar o povo revolucionário. Não esqueçamos que durante a ocupação do quartel-general militar em 2019, alguns soldados defenderam as massas das balas da RSF. É responsabilidade dos líderes da revolução explicar a necessidade dessas medidas, para dissipar quaisquer ilusões na desobediência civil pacífica. A recusa em fazê-lo seria um ato de irresponsabilidade criminosa por parte da SPA e dos líderes dos comitês de resistência, e equivaleria a condenar a Revolução Sudanesa ao massacre.
No que diz respeito à “comunidade internacional”: os vigaristas imperialistas anunciaram sanções e condenaram o golpe militar, mas essa é a extensão total do seu apoio. Na verdade, sabemos que os enviados dos EUA estiveram no Sudão pouco antes do início deste golpe – eles, provavelmente, sabiam que isso aconteceria e não mexeram um dedo para evitá-lo. Volker Perthes (Secretário Geral da ONU para o Sudão) comentou no Twitter que esteve em discussões com o primeiro-ministro civil deposto, Hamdok, sobre “opções de mediação e o caminho a seguir para o Sudão”. Ele se comprometeu a “continuar esses esforços com outras partes interessadas sudanesas”. Em outras palavras, os imperialistas estão tentando costurar (na melhor das hipóteses) outro “compromisso” podre com os militares. Mas, como vimos, esses antigos elementos do regime de Bashir não têm intenção de tolerar um governo civil.
Apesar de todo o seu discurso hipócrita de “respeito pela democracia”, os gangsters imperialistas são os responsáveis pelo estrangulamento econômico do Sudão durante anos, principalmente através da dívida externa. Eles mantiveram o país em um estado artificial de atraso e criaram precisamente as condições que facilitaram a ditadura militar de Al-Bashir, que foi derrubada apenas pela força das próprias massas. Eles não são aliados da revolução.
Sangue por sangue
Há evidências de que os eventos do dia 30/10 estão começando a afetar setores das massas. Um manifestante respondeu à declaração de Perthes no Twitter:
“Não há mediação depois do que militares criminosos cometeram contra o povo. Agora estamos totalmente cientes de sua intenção, ainda mais do que antes. O que realmente precisamos é de sua eliminação do poder e de um governo totalmente civil. Essa é a demanda do povo.”
Da mesma forma, uma senhora idosa em Cartum, cujo filho foi morto durante a semana, foi filmada indo de seu funeral diretamente aos protestos de sábado, declarando: “sangue por sangue, não aceitarei outra compensação“. Este slogan da revolução de 2019, referindo-se ao dinheiro sangrento que poderia ser pago à família de uma vítima de assassinato, sob a lei islâmica, mostra a vontade de lutar contra o golpe até o fim, rejeitando todos os compromissos.
No dia 30, as massas também revelaram sua imensa coragem e uma vontade crescente de lutar. Multidões forçaram os militares a recuar pela Ponte Al Mansheiya em Cartum, armados com nada mais além de paus ou com as mãos nuas.
A SPA deu alguns sinais de endurecimento após a repressão brutal no sábado. Em um comunicado ainda no dia 30, à noite, delineou seus objetivos da seguinte forma:
- Derrubada do golpe orquestrado pelo conselho militar e entrega imediata de todos os seus membros a julgamentos justos por seus crimes contra o povo sudanês;
- Nenhuma negociação com os criminosos, nem um retorno ao acordo quebrado, em vez disso, a entrega imediata do poder a um governo civil pleno escolhido pelas forças revolucionárias cujos elementos acreditam na mudança radical e no cumprimento dos objetivos da revolução de dezembro;
- Liquidação dos Serviços Nacionais de Inteligência e Segurança e dissolução das milícias por meio do desarmamento e desmobilização, em vez disso, construção de um exército nacional profissional com base na doutrina de proteção do povo e das fronteiras sob o comando da autoridade civil;
- Submeter todas as empresas das forças de segurança e militares à autoridade do governo civil e acabar com a interferência dessas agências nos investimentos e na atividade econômica;
- Cessação da intervenção da oposição regional e internacional ao nosso povo e suas aspirações nos assuntos políticos [do Sudão].
Essas demandas são passos à frente, mostrando a pressão dos eventos sobre a SPA, mas não vão longe o suficiente e não serão cumpridas pelos métodos fracassados de desobediência civil pacífica. Se há alguma paz a ser encontrada no futuro das massas sudanesas, ela só será obtida defendendo sua revolução por todos os meios necessários.
Embora a contrarrevolução tenha conquistado uma vitória no 30 de outubro, a luta ainda não acabou. Todos os sindicatos emitiram declarações confirmando que a greve geral continua em vigor. As massas voltaram às ruas no dia seguinte. Elas estão cada vez mais ensanguentadas e enfurecidas. Pode-se chegar a um ponto em que elas rejeitem o pacifismo inútil e pressionem os comitês de resistência e o SPA a enfrentar a força da contrarrevolução. Isso não deve acontecer de forma desorganizada, mas deve ser construído e coordenado pelos comitês de resistência. As organizações operárias devem estar plenamente integradas a esses órgãos, que devem se tornar o germe do poder operário e camponês. Deve apelar e enviar delegações para confraternizar com os soldados rasos e se preparar para um confronto final para derrotar o golpe militar sanguinário.
Em última análise, os comitês de resistência devem se conectar em todo o país e desenvolver um programa para a expropriação dos generais contrarrevolucionários, dos capitalistas e de todos os elementos restantes do regime de Bashir. Com esses recursos nas mãos das massas, elas serão capazes de realizar um amplo programa de reformas sociais e econômicas para assentar o governo civil democrático exigido pelas massas em uma base sólida. Isso lançaria as bases para o socialismo e para um regime operário e camponês. Mas antes que tudo isso possa ser alcançado, a estratégia falida de “protesto pacífico” deve ser descartada. O destino da revolução depende disso.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM