Morreu o Otelo - basta este nome para todos saberem de quem se trata - o jovem Major que gizou e coordenou todo o golpe militar de 25 de Abril de 1974.
O que Otelo não planeou nem previu foi que por essa brecha que se abriu no aparelho de Estado burguês, no seu elemento fundamental, as forças armadas, que até aí sempre tinham sido o esteio da ditadura, irromperia, logo no dia 25 de Abril, uma revolução, isto é, a entrada directa das massas no curso da história.
Aqui nasce o mito do 25 de Abril.
Porque, na realidade, há dois “25 de Abril”.
O primeiro, o golpe militar vitorioso que pretendia derrubar a ditadura e resolver de alguma maneira a guerra colonial, incluindo pela via do neocolonialismo, tem um dos seus principais protagonistas e, porque não, herói no então Major Otelo Saraiva de Carvalho que nessa madrugada arriscou, como muitos outros que estavam com ele, a sua carreira e até a sua vida.
O segundo começa quando o povo veio para a rua. Teve como protagonista os milhões que quiseram tomar o seu destino nas suas mãos.
Os trabalhadores, o povo não ficaram em casa, como instruídos pelo MFA. Não aguardaram que Spinola e os outros generais da Junta de Salvação Nacional, a quem temerosamente o MFA entregou o poder, decidissem o seu destino.
Logo no dia 25 de Abril o povo tomou as ruas, atacou a Pide, libertou os presos politicos e, nos dias e semanas seguintes, nas fábricas, nos locais de trabalho e também nos quartéis, começou a tomar o seu destino nas suas mãos.
Todas as figuras que associamos ao 25 de Abril, confundindo sempre o primeiro com o segundo, foram, de facto, no pior dos casos, inimigos jurados da revolução e, no melhor, actores inconscientes que, embora se sentissem atraídos pelo movimento popular e com ele simpatizassem, acabariam por ser incapazes de estar à altura dos acontecimentos. Numa revolução que não entendiam, acabaram por “entregar o oiro ao bandido”.
É por causa dessa mitologia que não é de estranhar que o governo Costa tenha convidado para presidente da comissão encarregada de comemorar os 50 anos do 25 de Abril o termidoriano General Eanes.
Otelo e o CopCon
Com a total paralisia da PSP e da GNR, odiadas e incapazes de intervir, foi criado, em Julho de 1974, o Copcon, um comando militar centralizado que englobava todas as forças especiais das forças armadas. Visava a manutenção da ordem - o seu comandante foi Otelo Saraiva de Carvalho, graduado para o efeito em Brigadeiro.
O Copcon foi utilizado inúmeras vezes contra os trabalhadores.
Basta lembrar a intervenção contra a greve dos trabalhadores da TAP em Agosto de 1974, em que tropas comandadas por Jaime Neves ocuparam as instalações, tendo todos os trabalhadores sido colocados sob a alçada do Regulamento de Disciplina Militar (RDM). Ao abrigo desse RDM, 200 trabalhadores foram despedidos e sete chamados a depor perante as autoridades militares.
Ou o cerco da Lisnave e o bloqueio de estradas, em Setembro de 1974, para evitar que os trabalhadores da Lisnave saíssem em manifestação para Lisboa.
Ou o envio do Copcon para dispersar a concentração dos trabalhadores da construção civil que, em Novembro de 1975, cercaram a Assembleia Constituinte.
O que, porém, acontecia é que, apesar das chefias, os soldados enviados, ao contacto com os seus irmãos trabalhadores em luta, sentiam uma irresistível simpatia e atracção por estes e, muitas vezes, recusavam-se a intervir. Pelo contrário, terminavam confraternizando com os trabalhadores em luta.
Otelo, o revolucionário que não foi
Otelo concentrou enorme poder politico e militar nas suas mãos. Além do comando do Copcon, fez parte de um triunvirato de pouca duração, que foi a autoridade máxima do país, composto pelos Generais Costa Gomes, presidente da republica, e Vasco Gonçalves, chefe do Governo e pelo próprio Otelo.
No entanto, todo esse poder que concentrou acabou por servir para comandar acções do Copcon contra os trabalhadores e para recolocar à frente do regimento de comando o Coronel Jaime Neves, que tinha sido expulso e, pouco tempo depois, acabaria comandando as acções militares no 25 de Novembro.
Foi nas ondas revoltas da revolução que os oficiais intermédios que tinham dado o golpe de 25 de Abril, assim como os oficiais superiores que apressadamente foram chamados para a chefia do Estado, viveram os 19 meses que durou a revolução.
A grandeza e profundidade da revolução empurrou-os uns contra os outros. Uns mais para a direita, chegando a conspirar em intentonas e golpes de estado contra a revolução; outros mais para a esquerda, como Otelo, mostrando muitas vezes simpatia pelo movimento popular.
Por esta razão a direita odeia-o, atribuindo-lhe culpas por factos que ele sempre negou e de que acabou absolvido em tribunal. A mesma direita hipócrita que, desde o 25 de Abril de 74 e durante toda a revolução, sempre conspirou, organizou ataques terroristas a sedes de partidos de esquerda e sindicatos e assassinou militantes de esquerda, a mesma direita que organizou milicias armadas de ex-pides e elementos de extrema-direita e procurou convencer o moribundo ditador Franco de Espanha a intervir para afogar no sangue a revolução portuguesa.
Porém, na ausência de uma direcção revolucionária e dadas as politicas do PS e do PCP, essa grandeza e profundidade da revolução não foi suficiente para quebrar a hierarquia militar e os laços entre os oficiais, forjados em África durante as longas comissões na guerra colonial. A 25 de Novembro de 1975 (o “Termidor” da revolução portuguesa), Otelo abandonou os seus comandados, foi para casa e entregou-se em Belém às ordens do General Costa Gomes, presidente da republica e ex-chefe supremo das forças armadas da ditadura, acabando detido.
Otelo, o homem
Todos os que o conheceram descrevem-no como um homem honesto, sincero, romântico, amante do teatro, algumas vezes actor da sua própria vida, algo ingénuo e irrealista.
O poder que teve não o corrompeu.
Terá sido o que comummente se chama um homem bom ou, mais coloquialmente e como ele certamente preferiria, “um “gajo porreiro”.
Na hora da sua morte, honremos o oficial corajoso que ajudou a derrubar a ditadura, respeitemos o homem, mas enterremos também o mito.