Embora todos os principais líderes das potências imperialistas, de Biden a Scholz e Macron, entre muitos outros, tenham derramado lágrimas de crocodilo sobre o “excessivo número de mortes civis” em Gaza, na prática, todos eles estão colaborando com o governo israelense. Não só com ajuda militar, mas também por meio do estrangulamento econômico e social do povo palestino. Todos eles ajudaram a criar as condições materiais sob as quais a autoadministração palestina é inviável. Estão colaborando abertamente com Netanyahu, enquanto ele e os seus amigos sionistas de extrema-direita tentam destruir o pouco que resta do território palestino.
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Para além da campanha militar genocida em Gaza e da constante expansão dos colonatos na Cisjordânia, há outra guerra em curso na frente econômica. Esta guerra incluiu o corte do financiamento às agências de ajuda da ONU, a retenção de receitas fiscais à Autoridade Palestina e a recusa em devolver aos trabalhadores palestinos os empregos que tinham em Israel antes de 7 de outubro.
Lembremo-nos das reais condições sociais e econômicas tanto em Gaza quanto na Cisjordânia antes do ataque de 7 de outubro. O desemprego líquido nos Territórios Palestinos, em Gaza e na Cisjordânia, já se situava em cerca de 25%, embora a situação em Gaza fosse muito pior.
Um relatório da Oxfam de 2009, “A Faixa de Gaza: Uma Implosão Humanitária”, explicava já há 15 anos: “A situação de 1,5 milhões de palestinos na Faixa de Gaza [agora são 2,3 milhões] é a pior desde o início da ocupação militar israelita em 1967. A atual situação em Gaza é provocada pelo homem, completamente evitável… A gravidade da situação aumentou exponencialmente desde que Israel impôs restrições extremas à circulação de bens e pessoas em resposta à tomada de Gaza pelo Hamas…” [Minha ênfase]
O desemprego em Gaza era de 40%, mas aumentou continuamente até 50%. Os níveis de pobreza em Gaza aumentaram enormemente, com 80% das famílias dependendo da ajuda humanitária. Este único fato sublinha o quão crucial é a ajuda, como aquela fornecida por agências como a UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo).
Em 2009, quase toda a economia produtiva de Gaza tinha ficado paralisada pela imposição de um bloqueio econômico estrito por parte de Israel. A indústria quase deixou de existir; a agricultura estava em crise; e os milhares de trabalhadores que anteriormente cruzavam a fronteira para Israel a fim de trabalhar já não tinham emprego.
O relatório refere-se a “uma população encarcerada”. Nestas condições, o chefe da UNRWA destacou que “comunidades famintas, insalubres e furiosas não são bons parceiros para a paz”. Isto, é claro, caiu em ouvidos surdos no governo israelense.
Bloqueio econômico de Gaza
Estas eram as condições impostas à população de Gaza muito antes do ataque de 7 de outubro. A razão oficial para esta política brutal foi a emergência do Hamas como o primeiro partido nas eleições de 2006, e a consolidação da sua posição um ano mais tarde através de uma tomada armada da Faixa de Gaza.
Os sucessos eleitorais do Hamas deveram-se à desilusão generalizada entre a população palestina em relação ao Fatah e à OLP que governavam tanto a Cisjordânia quanto a Faixa de Gaza. Isto se deveu à sua desenfreada corrupção e à sua colaboração real com as forças de segurança israelenses no policiamento do povo palestino, em vez de o proteger.
Assim, o bloqueio econômico de Gaza foi uma forma de punir o povo por ousar apoiar uma força que não fosse do agrado das autoridades israelitas. A mensagem era clara: se não votarem nos líderes palestinos que colaboram com Israel, então iremos estrangulá-los economicamente e bombardeá-los quando sentirmos necessidade.
Esta era a situação em Gaza, conforme descrita em um relatório da UNRWA de agosto de 2023:
“A economia e a sua capacidade de criar empregos foram devastadas, resultando no empobrecimento e na estagnação de uma sociedade altamente qualificada e instruída. O acesso à água potável e à eletricidade permanece em nível de crise e tem impacto em quase todos os aspectos da vida. A água potável não está disponível para 95% da população. A eletricidade estava disponível até uma média de 11 horas por dia em Julho de 2023. No entanto, a contínua escassez de energia teve um impacto grave na disponibilidade de serviços essenciais, particularmente os serviços de saúde, água e saneamento, e continua minando a frágil economia de Gaza, particularmente os setores industrial e agrícola.”
Embora a situação na Cisjordânia não fosse tão grave quanto a de Gaza, em 2021 o desemprego atingiu 25% e o desemprego juvenil 40%, com perto de 20% da população vivendo abaixo do limiar da pobreza. A Cisjordânia dependia fortemente de empregos dentro de Israel, com cerca de 23% da população ativa empregada em Israel ou em colonatos israelenses na Cisjordânia.
As grandes potências cortam financiamento
Agora o processo de estrangulamento está sendo elevado a novos patamares. A entrega de ajuda a Gaza está se tornando cada vez mais difícil, quando não impossível de ser realizada, pelo fato de Israel limitar o número de caminhões permitidos e recusar-se a garantir passagem segura para a entrega da ajuda.
Antes de Outubro do ano passado, uma média de 500 caminhões de abastecimento entravam em Gaza todos os dias. Em janeiro, apenas 140 entravam. Agora o número caiu para cerca de 60. Sob uma situação em que todas as reservas se esgotaram, a fome tornou-se galopante, especialmente no norte. As pessoas estão bebendo água suja e comendo tudo o que encontram, inclusive ração animal.
Israel também está perseguindo o financiamento das agências de ajuda humanitária. Netanyahu agarrou-se ao fato de que, de acordo com um dossiê dos serviços secretos israelenses, uma dúzia de indivíduos que trabalhavam para a UNRWA na Faixa de Gaza (em comparação com 13 mil outros no total) participaram de alguma forma no ataque de 7 de outubro. O Washington Post investigou essas alegações, mas não conseguiu confirmá-las de forma independente. O chefe da UNRWA, Philippe Lazzarini, salientou que Israel não ofereceu quaisquer provas para as suas alegações. Ainda assim, elas seguem sendo utilizadas por Israel como alavanca para dobrar os braços dos seus aliados imperialistas.
Os meios de comunicação social no Ocidente relataram estas alegações como verdadeiras e os EUA, imediatamente seguidos pelo Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Canadá e Austrália, suspenderam o financiamento à agência, sem levar em conta as consequências humanitárias que pareciam “preocupar a todos” apenas um minuto antes. Outros seguiram o exemplo, completando uma lista de países que outrora representavam mais da metade do orçamento da ajuda da UNWRA. Isto apesar do fato de que, quando as alegações foram apresentadas às Nações Unidas, os indivíduos listados – alguns dos quais já estão mortos – terem sido rapidamente demitidos e uma investigação ter sido aberta.
Compare-se a velocidade com que os imperialistas cortaram a ajuda desesperadamente necessária aos palestinos de Gaza a0 seu continuo suporte militar a Israel, à medida em que este último destrói tudo o que torna a vida possível na Faixa. Biden está alargando o orçamento para garantir mais ajuda a Israel;a maior parte dele será destinada a fins militares, enquanto apenas uma pequena fração irá para “ajuda humanitária”, sob a condição específica de que dinheiro algum chegue à UNRWA. O contraste é gritante.
Mais de dois milhões de pessoas em Gaza dependem atualmente da UNRWA “para a sua sobrevivência”, como afirmou Philippe Lazzarini, o comissário-geral da agência. Em janeiro, aproximadamente 1,4 milhões de refugiados de Gaza estavam alojados em 155 acampamentosda UNRWA e outros 500 mil recebiam serviços da UNRWA. Johann Soufi, advogado e antigo diretor do escritório jurídico da agência em Gaza, disse à Agence-France Presse que a sanção à UNRWA, pela alegada responsabilidade de alguns funcionários, equivale a punir coletivamente a população de Gaza.
Há já algum tempo que a UNRWA tem sido alvo de ameaças de cortes de financiamento. Em agosto de 2018, o então Presidente dos EUA, Trump, anunciou que os EUA iriam interromper unilateralmente a sua contribuição. A verdade é que o governo israelense tem tentado há muitos anos bloquear o financiamento da UNRWA. Os governos israelenses têm se oposto particularmente à agência pois consideram sua definição de “refugiado” palestino, que abrange 5,9 milhões de pessoas, demasiado ampla e que, portanto, ela alimenta a esperança de que um dia poderão regressar à sua terra natal.
O problema para os sionistas é a mudança do equilíbrio demográfico entre palestinos e judeus que vivem na Palestina histórica, ou seja, Israel, Gaza e Cisjordânia. Nesta área existem agora 7,4 milhões de palestinos contra 7,2 milhões de judeus israelitas. Isto inclui os palestinos cidadãos de Israel – cidadãos de segunda classe com menos direitos –, que perfazem cerca de dois milhões da população total de 9,3 milhões. A taxa de natalidade entre as mulheres palestinas é de aproximadamente 4 filhos, em comparação a 3 para as mulheres israelenses.
Nesse ritmo, a população palestina global que vive na Palestina histórica continuará a crescer em relação à população judaica. Isto também explica a posição dos sionistas extremistas, que querem que os palestinos vivendo em Israel sejam expulsos juntamente com os que vivem em Gaza e na Cisjordânia, e que a emigração de judeus de outros países se intensifique, juntamente com o programa de colonatos.
De acordo com estimativas populacionais preparadas pelo PCBS, havia “cerca de 14,3 milhões de palestinos no mundo em meados de 2022”. Destes, cerca de três milhões estão na Jordânia, três quartos dos quais obtiveram a cidadania jordana. Cerca de meio milhão vivem na Síria; 400 mil no Líbano, oficialmente como refugiados; e cerca de 250 mil na Arábia Saudita. Isto significa que de 11 a 12 milhões de palestinos vivem na região, tendo os restantes emigrado para a Europa, as Américas e outras partes do mundo.
Os sionistas querem que seja concedida a cidadania plena a um número significativo de refugiados nos países onde residem atualmente, de modo que, com o tempo, possam ser absorvidos e integrados, perdendo assim o seu estatuto de refugiados e acabando com toda a esperança de regressar à sua pátria histórica. O fato de se esperar que os cidadãos jordanianos de origem palestina adotem uma identidade jordaniana é uma indicação daquilo que os sionistas gostariam de ver em toda a região, ou seja, a eliminação de fato de uma identidade nacional palestina. Tudo isto explica por que é que o governo israelense quer ver o fim da UNRWA enquanto órgão. De acordo com um artigo de 2 de fevereiro no The Guardian, a UNRWA poderá ser forçada a encerrar as suas operações em Gaza se o financiamento não for restaurado em breve. Para Israel, contudo, parece que mesmo conseguir o objetivo de suspender o financiamento da UNRWA não é suficiente. Desde outubro, registrou-se 63 ataques diretos a instalações da UNRWA, tendo outras 69 instalações sofrido algum grau de danos. Um total de 319 pessoas abrigadas em instalações da UNRWA foram mortas, e mais de mil ficaram feridas. Não satisfeito com isto, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, Israel Katz, declarou agora que irá tomar medidas para remover completamente a UNRWA da Faixa de Gaza após a guerra.
O controle israelense sobre a economia palestina
Quando a Autoridade Palestina foi criada com base nos Acordos de Oslo, em 1994, foi estabelecido um acordo conhecido como Protocolo de Paris, através do qual Israel cobra imposto sobre o rendimento em nome da Autoridade Palestina e depois faz transferências mensais, enquanto aguarda a aprovação do Ministério das Finanças do governo israelenses.
Este deveria ser um acordo temporário de cinco anos, após o qual o controle deveria passar para a Autoridade Palestina. Trinta anos depois, nenhuma transição desse tipo foi realizada. A razão para isto é perfeitamente clara: dá a Israel uma importante alavanca para chantagear a Autoridade Palestina.
Mesmo depois de a Faixa de Gaza ter caído sob o controle do Hamas em 2007, muitos trabalhadores do setor público mantiveram os seus empregos e continuaram a receber os seus salários, que eram pagos com as receitas fiscais transferidas do Ministério das Finanças israelense. Atualmente, esse posto é ocupado por Bezalel Smotrich, ele próprio um colono, e um dos sionistas de direita mais extremistas e ultraortodoxos do governo de Netanyahu.
Em novembro, pouco depois do ataque do Hamas ao sul de Israel, em 7 de outubro, o governo de Netanyahu decidiu suspender os pagamentos – um total de US$ 275 milhões, incluindo montantes recolhidos antes do ataque – que se destinavam a funcionários públicos na Faixa de Gaza, argumentando que estes fundos poderiam acabar nas mãos do Hamas. Em reação ao corte no financiamento, a Autoridade Palestina recusou-se a receber as receitas reduzidas, exigindo o pagamento da totalidade do montante devido.
O desenvolvimento mais recente viu Israel reter estas receitas fiscais, recusando-se a enviá-las para a Autoridade Palestina. Em vez disso, enviou-as para a Noruega e elas não deveriam ser liberadas sem a aprovação do governo israelense. Foi o próprio Biden quem pediu a Netanyahu que enviasse as receitas fiscais para a Noruega para serem “guardadas”, como forma de acalmar os nervos dos seus ministros de extrema direita, os quais têm insistido em que nenhum dinheiro deveria chegar às mãos do Hamas em Gaza.
Desde então, a Noruega concordou em transferir fundos destinados à Cisjordânia, retendo ao mesmo tempo os destinados a Gaza. Gaza é administrada pelo Hamas, mas a Autoridade Palestina tem financiado as despesas essenciais, incluindo, por exemplo, os salários dos seus profissionais de saúde. Agora que o financiamento foi cortado, a situação em Gaza continuará a piorar.
Todos os meses, Israel arrecada cerca de US$ 188 milhões em receitas fiscais em nome da Autoridade Palestina – US$ 2,25 bilhões por ano. Este não é um número insignificante, representando 64% das receitas da Autoridade Palestina. Atualmente, existem cerca de 150 mil funcionários públicos na massa salarial da Autoridade Palestina, tanto em Gaza quanto na Cisjordânia.
O resultado deste bloqueio de fundos significou que muitos destes trabalhadores não estão recebendo o seu salário integral. Já em 2021, os seus salários tinham sido reduzidos em 25% devido às constantes restrições por parte do governo israelense. A Autoridade Palestina está em uma grave crise financeira, com um enorme acúmulo de dívidas não pagas. A situação tornou-se tão ruim que, no início de fevereiro, a Autoridade Palestina foi forçada a anunciar um corte de 40% nos salários dos funcionários do setor público.
O acordo da Noruega em liberar os fundos destinados à Cisjordânia pode ser explicado pelo receio dos imperialistas de que a Autoridade Palestina na Cisjordânia possa estar enfrentando um colapso iminente. A situação já está à beira de uma grande explosão social. Os ataques constantes dos colonos e das FDI contra a população local já levaram à morte de cerca de 500 palestinos e a mais de 12 mil feridos só em 2023.
Para piorar ainda mais a situação na Cisjordânia, há o fato de Israel ter suspendido as autorizações de trabalho de cerca de 130 mil trabalhadores palestinos que viajavam da Cisjordânia para Israel. Um total de aproximadamente 200 mil palestinos perderam os seus empregos. Mais da metade deles trabalhava na indústria de construção israelense. Um trabalhador palestino da construção civil em Israel poderia ganhar mais de US$ 3.000 ao mês, o que permitia um nível de vida razoável a alguém que vivesse na Cisjordânia.
Esta fonte de rendimento secou subitamente. Agora, um grande número de trabalhadores desempregados na Cisjordânia está sendo forçado a vender tudo o que puder, em uma tentativa desesperada de reunir dinheiro suficiente para alimentar os seus filhos e pagar as contas. Muitos tiveram a água e a eletricidade cortadas por causa de contas vencidas.
O desemprego nos territórios palestinos aumentou de cerca de 25% para 47% desde outubro, enquanto a economia palestina como um todo diminuiu em 35%. Agora, uma grande parte da população vive literalmente um dia de cada vez, sem saber como ou se sobreviverá até o final do mês.
A situação em Gaza está em um ponto crítico
Entretanto, em Gaza, a população enfrenta a ameaça da fome, segundo muitos observadores no terreno. Muitas famílias passam horas todos os dias caminhando longas distâncias e fazendo filas para conseguir a pouca comida e água que ainda estão disponíveis. No final de Dezembro, um relatório do Comitê de Revisão da Fome (FRC, em suas siglas inglesas) revelou que pelo menos um quarto dos habitantes de Gaza (mais de 500 mil pessoas) enfrentava a perspectiva de uma escassez alimentar extrema.
As crianças, em particular, são as mais vulneráveis nesta situação, especialmente nos primeiros anos de vida, quando qualquer período prolongado de desnutrição pode prejudicar o desenvolvimento físico e mental. Existem atualmente mais de 130 mil crianças em Gaza com menos de dois anos de idade. Portanto, esta situação pode ter impactos de longo prazo na saúde das crianças, mesmo depois de a guerra terminar.
A agricultura local, graças aos bombardeamentos constantes e massivos, entrou em colapso total. Muitas infraestruturas – como padarias e armazéns de alimentos – foram destruídas ou forçadas a fechar. Os fornecimentos de alimentos provenientes de fora de Gaza são tudo o que resta às pessoas acampadas em Rafah, nas suas imediações e noutras cidades.
A Action Against Hunger, com sede em Washington D.C., afirmou em 17 de Fevereiro: “Se esta situação continuar, assistiremos a um dos maiores desastres que já enfrentamos como instituição humanitária. E ele será devido à fome, às doenças e ao ambiente muito poluído e perigoso em Gaza, resultante dos resíduos de milhares de bombas, do fósforo branco, do esgoto sem tratamento, que flutua a céu aberto por todo os lados, e da água poluída consumida pelas pessoas que não têm outras opções.”
A situação no norte de Gaza é verdadeiramente dramática. Ainda restam cerca de 300 mil pessoas sob as condições mais horríveis. De acordo com uma reportagem recente da BBC, devido ao isolamento do norte de Gaza “as crianças ficam sem comida durante dias, enquanto a autorização de entrada é negada cada vez mais aos comboios de ajuda”. As pessoas agora estão morrendo de fome.
Nestas condições de colapso quase total das infraestruturas básicas, combinado com uma redução maciça da ajuda, as doenças infecciosas estão se espalhando a taxas alarmantes. A diarreia afetou mais de 100 mil pessoas desde Outubro, metade das quais eram crianças com menos de cinco anos de idade, um aumento de 25 vezes em relação aos níveis anteriores. Dezenas de milhares de infecções respiratórias estão sendo relatadas. A hepatite e inúmeras outras doenças estão se alastrando. O Global Nutrition Cluster, parceiro da Unicef, alertou que uma “explosão da taxa de mortalidade infantil” é iminente.
Concentrando as mentes dos imperialistas
Os imperialistas têm boas razões para temer que a situação possa estar atingindo um ponto de virada. O povo palestino está sendo pressionado muito além do que é humanamente tolerável. O que estamos vendo aqui é a ameaça de um colapso total da Autoridade Palestina na Cisjordânia, além da devastação absoluta em Gaza.
Tudo isso começa a preocupar seriamente os imperialistas que observam os territórios afundarem em um atoleiro. Eles podem ver a bomba-relógio tiquetaqueando e compreendem que, se a população atingir o limite do que pode suportar, poderão se ver confrontados com uma revolta popular generalizada.
Eles entendem que, para manter algum grau de estabilidade na região, deve ser garantido aos palestinos um mínimo básico de existência civilizada, com alimentação, habitação, cuidados de saúde básicos, empregos e rendimentos, e pelo menos um fio de esperança de que um dia possam ter algum tipo de pátria onde possam reconstruir as suas vidas. Na situação atual, estas esperanças estão sendo destruídas não apenas em Gaza, mas também na Cisjordânia.
A última reviravolta nos acontecimentos, com a demissão do primeiro-ministro palestino, Mohammad Shtayyeh, é uma confirmação da crise política que a Autoridade Palestina enfrenta. Parece que a sua demissão faz parte de um movimento em direção a uma espécie de governo tecnocrata, que também governaria Gaza quando a guerra terminasse.
O termo “governo tecnocrata” é um eufemismo para um governo não eleito que irá impor o programa da elite dominante. A Autoridade Palestina liderada por Abbas está desacreditada aos olhos da maioria dos palestinos, por isso eles desejam impor-lhes os mesmos colaboracionistas, mas por trás de uma nova máscara. Este é o programa do imperialismo norte-americano para os palestinos.
Por enquanto, porém, Netanyahu não está ouvindo. Como explicamos em um artigo anterior, um ataque total a Rafah levaria a situação ao limite. Poderia abrir um cenário em que centenas de milhares de pessoas desesperadas, atualmente acampadas em tendas – possivelmente até um milhão –, atravessassem a fronteira para o Egito.
Parece ter sido confirmado que as autoridades egípcias estão tomando medidas de precaução para o caso de tal cenário vir a se concretizar. As últimas imagens de satélite parecem indicar a realização de obras ao longo da fronteira do Egito com Gaza, a fim criar um interregno murado para receber os refugiados palestinos, caso Israel prossiga com a sua ofensiva terrestre em Rafah.
As mentes dos imperialistas estão concentradas nisso tudo. Eles agora pressionam Netanyahu para que ele aceite um cessar-fogo temporário e levante os bloqueios à ajuda. Os EUA redigiram uma resolução própria do Conselho de Segurança da ONU, apelando a um “cessar-fogo temporário” em Gaza, mas com a ressalva adicional: “assim que for possível”.
Não devemos ter quaisquer ilusões aqui. O imperialismo norte-americano não está trabalhando para pôr fim ao bombardeamento de Gaza. Procuram apenas uma cessação temporária – ou uma “pausa”, como chamam – para liberar alguma da pressão que está se acumulando. Isso foi confirmado pelo fato de os mesmos EUA terem vetado recentemente uma resolução da Argélia no Conselho de Segurança da ONU que apelava a um cessar-fogo imediato.
No entanto, como comentou o Financial Times: “A utilização de uma Resolução do Conselho de Segurança da ONU [pelos EUA] apelando por uma mudança na estratégia de Israel representa um grande marco diplomático para os EUA…” Sob tal pressão, o governo israelense adiou a sua ofensiva terrestre planejada em Gaza para 10 de Março. Estabeleceu um prazo para que, caso o Hamas não liberte todos os reféns até lá, a ofensiva seja lançada.
Essa data não foi escolhida por acaso. O Ramadã deste ano começará na noite de domingo, 10 de março! Lançar a ofensiva terrestre sobre Rafah nesse dia teria um significado extremamente simbólico para os muçulmanos em todo o mundo, e em particular no Oriente Médio. De fato, Netanyahu estaria cuspindo na cara de milhões de muçulmanos na região.
No contexto da crescente turbulência social em muitos dos países do Oriente Médio, isso poderia levar a revoltas massivas e a movimentos de dimensões revolucionárias. É por isso que os imperialistas, com os EUA desempenhando um papel importante, estão tentando sair do abismo.
Eles querem desesperadamente alguém em quem sintam que podem confiar no comando de Israel. Gantz, o atual ministro da Defesa de Israel, é aclamado como “a pessoa adulta na sala do governo israelense”, de acordo com o New York Times, e “o homem com maior probabilidade de substituir o Sr. Netanyahu e o seu desastroso governo”.
Gantz, no entanto, não é nenhum santo. Como Chefe do Estado-Maior General de Netanyahu, tornou-se conhecido pela forma como foi implacável durante a “Operação Margem Protetora”, o bombardeamento de Gaza em 2014 que matou mais de 2.300 palestinos e mutilou mais de 10 mil.
Ele declarou recentemente que: “O mundo deve saber, e os líderes do Hamas devem saber – se atéo Ramadã os nossos reféns não estiverem em casa, os combates continuarão por todos os lados, incluindo a área de Rafah”. Isto é a confirmação do fato de que, quando se trata de esmagar os palestinos, todos os principais políticos sionistas têm a mesma posição.
O que é racional nem sempre é possível
A guerra em Gaza já desestabilizou a região e corre o risco de desestabilizá-la ainda mais. Se a ofensiva em Rafah prosseguir, irá minar dramaticamente os regimes árabes circundantes, que enfrentarão a ameaça de uma revolta revolucionária. Isso emitiria ondas de choque que reverberariam por todo o mundo.
Do ponto de vista das necessidades objetivas da classe capitalista a nível global nesta situação, é lógico que os imperialistas procurem forçar Netanyahu a recuar. Biden anunciou agora com confiança que até segunda-feira, 4 de março, um cessar-fogo – de até seis semanas, segundo alguns relatos – estará em vigor.
O otimismo de Biden, contudo, não se reproduz nem dentro de Israel nem em Gaza. As razões para isto residem no fato de um cessar-fogo ser apresentado como uma medida temporária, e não como o fim da guerra, uma das principais exigências do Hamas.
Basem Naim, chefe da divisão política do Hamas em Gaza, afirmou que os anúncios de Biden eram “prematuros” e “não correspondiam à realidade no terreno”, enquanto as autoridades israelenses afirmavam que o Hamas os continuava pressionando com “exigências excessivas”.
O acordo em discussão também permitiria apenas a libertação de 40 reféns detidos pelo Hamas em troca de 400 prisioneiros palestinos. Isso ainda deixaria a maior parte dos reféns restantes nas mãos do Hamas. Isto significa que, mesmo que tal acordo fosse firmado, apenas daria ao povo palestino em Gaza uma trégua temporária e não o fim da guerra.
Netanyahu continua a insistir que, mesmo que haja um acordo de cessar-fogo, ele prosseguirá com os preparativos para um ataque a Rafah, o que não é um bom presságio. O problema aqui é que os interesses mais amplos e gerais do capitalismo global não correspondem aos interesses de Netanyahu, de seus colegas de gabinete de extrema-direita, e também de uma seção significativa da classe dominante sionista.
Mesmo o suposto “moderado” Gantz difere de Netanyahu, não quanto a continuar expulsando os palestinos do pouco que resta da sua pátria histórica, mas quanto a em que ritmo e em como fazê-lo. Ele também pode ser um pouco mais sensível à pressão dos apoiadores imperialistas de Israel.
Para Netanyahu, por outro lado, recuar e deixar o Hamas no poder em Gaza marcaria o fim da sua carreira política. A extrema-direita provocaria o colapso do seu governo. Isto seria seguido por eleições, nas quais Netanyahu sairia derrotado, e os seus problemas jurídicos em casa poderiam levar a graves consequências pessoais.
Isto explica as suas últimas manobras, que visam a destruir as tentativas de se chegar a um acordo com o Hamas sobre os reféns em curso. Ele está impondo condições cujo objetivo específico é serem rejeitadas pelo Hamas, porque inaceitáveis. De acordo com o The Times of Israel de 25 de fevereiro, as autoridades acusaram Netanyahu “de tentar torpedear o nascente acordo dos reféns, a fim de apaziguar os elementos de extrema-direita do seu governo”.
Netanyahu poderá, em algum momento, passar dos limites, abrindo a perspectiva de um conflito mais amplo com o Egito e outros regimes árabes. As crescentes escaramuças armadas na fronteira libanesa também poderão levar a uma escalada ali. Tudo isso imporia um enorme obstáculo ao processo de normalização que os imperialistas tanto desejavam entre Israel e a Arábia Saudita, e outros países da região. Elementos importantes dentro do establishment israelense poderiam, portanto, concluir, a certa altura, que Netanyahu deve sair. Ainda não chegamos lá, mas seus dias claramente estão contados.
O problema que os imperialistas enfrentam é que, por vezes, o que é racional no abstrato pode nem sempre ser possível nas condições concretas no terreno. Vivemos uma época de crise sem precedentes do sistema capitalista global. A margem de manobra dos poderes individuais, grandes e pequenos, é severamente reduzida. Isso pode conferir aos indivíduos em posições-chave de comando um poder desproporcional durante um período temporário. Entretanto, os conflitos sobre os mercados e as esferas de influência tornam-se cada vez mais aguçados, com as situações sendo levadas ao limite, descambando para uma guerra aberta, onde as contradições são mais acentuadas.
Com isso, são os trabalhadores de todos os países que sofrem. Os palestinos estão envolvidos nesta contradição, mas o seu intenso sofrimento também coloca em evidência o próprio impasse de todo o sistema. E explica por que a esmagadora maioria dos trabalhadores e jovens de todo o mundo simpatiza instintivamente com eles e apoia a sua causa. A luta de classes corre como uma espessa linha vermelha através da questão palestina e afeta todos os países.
Cabe aos trabalhadores de todos os países resolver esta contradição, não corrigindo este ou aquele detalhe, mas cortando pelas raízes todo o sistema capitalista.