O documento de perspectivas a seguir foi discutido e aprovado por unanimidade pelo Congresso Nacional da Seção dos EUA da CMI em outubro de 2021. Ele traça um balanço da profunda transformação do cenário político nos EUA e analisa os principais fatores que estão moldando a consciência de massa hoje. Dezenas de milhões estão tirando conclusões revolucionárias. Nunca antes na memória viva houve tantas oportunidades para as ideias do marxismo se firmarem e se tornarem uma força política de massa. Se concorda com a análise aqui apresentada, convidamo-lo a aderir à CMI e a preparar-se para os acontecimentos históricos que se avizinham. PARTE 1
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O assassinato de George Floyd
Em 25 de maio de 2020, George Floyd foi comprar cigarros na Cup Foods em South Minneapolis, sem suspeitar que, em poucos minutos, ele daria seu último suspiro, algemado e sufocado sob o joelho de um policial racista. Isso sintetizou o regime de terror policial racista e de assédio implacável sofrido diariamente pelos negros nos Estados Unidos. Nas horas que se seguiram, as imagens dessa brutalidade desumana foram testemunhadas em todo o mundo.
Entre 2013 e 2020, a polícia dos EUA matou mais de 9 mil pessoas – um quarto delas negras. Nos dois anos anteriores a 2020, mais americanos foram mortos pela polícia do que em combate no Afeganistão nos últimos 18 anos. Mais americanos foram mortos pela polícia nos últimos três anos do que pessoas foram mortas nos ataques de 11 de setembro de 2001.
Os quatro policiais de Minneapolis que participaram do assassinato planejaram calmamente arquivá-lo como um incidente de rotina – como geralmente é o caso quando a polícia assassina um homem negro nos Estados Unidos. A declaração inócua divulgada por seu departamento dizia: “Homem morre após incidente médico durante interação policial”. Só os policiais de Minneapolis mataram quase 50 homens negros nos últimos 20 anos, e nenhum policial jamais foi julgado por suas ações. Dessa vez, entretanto, um ponto de inflexão qualitativo foi alcançado.
Na panela de pressão do ano eleitoral, com a resposta mal dada à pandemia, e com Donald Trump na Casa Branca, o assassinato de Floyd foi a faísca que acendeu a chama da revolta. Começando com a mobilização incansável de ativistas negros em todo o país, pessoas de praticamente todos os grupos demográficos se juntaram ao maior movimento de massa da história dos Estados Unidos. A indignação explodiu em uma cidade após a outra, crescendo, de centenas para milhares, e para milhões, até que todo o país foi envolvido no protesto.
No total, 10% da população adulta dos EUA – cerca de 26 milhões de pessoas – participaram diretamente do levantamento em massa. Mais de 7.300 protestos foram registrados em mais de 2 mil cidades, abrangendo todas as cidades e vilas de tamanho significativo no país. As cenas eram sem precedentes. O toque de recolher foi aplicado em 200 cidades, e gás lacrimogêneo foi lançado contra os manifestantes em, pelo menos, 100 delas. Mais de 14 mil manifestantes foram presos apenas em junho de 2020. As tropas da Guarda Nacional foram desdobradas em 30 estados – a maior operação militar, fora de uma guerra, na história dos Estados Unidos.
Um vislumbre de revolução
Na noite de 28 de maio, a polícia de Minneapolis fugiu pelos portões dos fundos da Terceira Delegacia de Polícia, em meio a uma chuva de pedras e a aplausos, enquanto milhares de manifestantes cercavam e invadiam o prédio. Depois que os manifestantes conseguiram tomar a delegacia de polícia – um evento sem precedentes na história dos Estados Unidos – incendiaram o prédio e comemoraram, enquanto ele pegava fogo.
Uma semana depois, a Newsweek publicou uma pesquisa mostrando que 78% dos americanos achavam que a raiva que os levou aos protestos era justificada, e que 54% achavam que o incêndio da delegacia – um ato de insurreição de fato – era justo. As descobertas da pesquisa, que seriam impensáveis na semana anterior, forneceram um exemplo gráfico da velocidade com que a consciência de massa muda sob o impacto de eventos que abalam a terra. Além dos milhões que participaram diretamente das manifestações em massa, outros milhões mais assistiram, desde o bloqueio e a quarentena, enquanto essas cenas se desenrolavam em tempo real por meio de transmissões ao vivo nas redes sociais e nos noticiários.
Além de ver soldados patrulhando as principais cidades dos Estados Unidos, vimos exemplos embrionários de auto-organização revolucionária. Espontaneamente, as pessoas comuns pegaram em armas para defender seus bairros contra a ameaça de vigilantes de direita, milicianos, saqueadores e do terror policial. Em Minneapolis, comitês improvisados e patrulhas, alguns liderados pela National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) e pela American Indian Movement (AIM), surgiram em bairros pobres e de classe trabalhadora para manter a segurança, limpar as ruas, atender os vizinhos vulneráveis e distribuir alimentos e suprimentos.
Já em 1º de junho, Trump ameaçou invocar o Insurrection Act de 1807, que teria dado ao presidente o poder de enviar tropas federais terrestres e navais para suprimir “qualquer insurreição” no caso de que “obstruções ilegais, combinações ou assembleias, ou rebelião contra a autoridade dos Estados Unidos” tornassem impossível para as autoridades estaduais locais manterem a ordem. Seguindo uma ordem pouco comum do Pentágono, a polícia militar e as tropas regulares do exército foram colocadas em alerta em várias bases e orientadas a estarem prontas para se desdobrarem em quatro horas, se solicitadas.
Em outro acontecimento sem precedentes, vários oficiais do Pentágono e generais militares aposentados deram declarações, se opondo abertamente ao presidente, incluindo o então secretário de Defesa, Mark Esper, que contradisse Trump ao se manifestar contra o envio de tropas domésticas. O ex-secretário de Defesa “Mad Dog” Mattis chamou Trump de uma “ameaça à Constituição”, sugerindo, de fato, sua remoção. John Allen, um general da Marinha de quatro estrelas aposentado e ex-comandante da ocupação imperialista do Afeganistão, escreveu que as ações e ameaças de Trump “podem muito bem sinalizar o início do fim da experiência americana“.
Ao contrário de Trump, os estrategistas sérios do Pentágono sabem que as forças armadas não podem ser ativadas e desativadas à vontade por meio do uso de ameaças. A maioria das forças armadas vem de famílias de baixa renda da classe trabalhadora, e já houve casos de tropas da Guarda Nacional recusando-se a se mover ou confraternizando com os manifestantes. Como em tantas situações pré-revolucionárias vistas ao redor do mundo, uma ordem de atirar em civis corria o risco de produzir um colapso total na cadeia de comando. Tendo jogado a carta “enviar as tropas”, eles ficariam, literalmente, sem cartas.
Esses eventos foram o mais próximo, de que se tem memória, que os Estados Unidos chegaram de uma reviravolta revolucionária. Eles provocaram medo nos corações da classe dominante e enviaram o presidente às pressas para um bunker subterrâneo abaixo da Casa Branca. Nesse contexto, uma tendência marxista bem organizada, com números suficientes e raízes na classe trabalhadora, poderia ter, sistematicamente, levantado a demanda, para que o movimento operário mobilizasse todas as suas forças para uma greve geral generalizada.
Os comitês de defesa de bairro, que surgiram esporadicamente, poderiam ter sido coordenados e estendidos em assembleias de massa em todas as cidades do país. Esses órgãos, formados por sindicalistas, trabalhadores não organizados, desempregados e estudantes, poderiam ter se articulado nacionalmente, por meio de uma rede de delegados eleitos democraticamente, e revogáveis. Isso marcaria o início do que os marxistas chamam de poder dual – o embrião de um futuro Estado dos trabalhadores, em oposição ao Estado dos capitalistas. Em suma, o movimento de protesto para acabar com o terror policial racista só poderia ter tido êxito, elevando-se a uma luta revolucionária de massa, a fim de formar um governo dos trabalhadores.
Mas, como Trotsky escreveu uma vez: “Uma situação revolucionária não cai do céu. Ela se concretiza com a participação ativa da classe revolucionária e de seu partido”. Esse partido revolucionário era exatamente o que faltava no levante de George Floyd.
É significativo que os protestos em massa tenham aumentado as demandas de retirar fundos ou abolir a polícia, em termos de destaque nacional. Essa foi uma mudança qualitativa em relação aos apelos anteriores, de responsabilização da polícia, através do controle ou da revisão da comunidade. No entanto, o apelo à abolição é incompleto e irrealizável, sem uma análise do papel da polícia na manutenção das relações de propriedade privada através do Estado capitalista. E a retirada parcial de fundos da polícia não pode resolver as causas fundamentais da violência policial racista.
Na falta de um caminho revolucionário claro para avançar, o movimento foi cinicamente cooptado e traído pelos democratas, que usaram chavões vazios sobre a “reforma policial”, enquanto conduziam uma campanha eleitoral baseada na “lei e ordem”. Na verdade, o slogan de retirar fundos foi usado como cobertura para pequenas reformas, que foram revertidas assim que a pressão do movimento de massas recuou. O racismo institucional, profundamente arraigado do sistema, permanece totalmente intacto, e o reinado do terror policial continua em bairros pobres, em todo o país. As aspirações revolucionárias dos milhões que saíram às ruas não encontraram nenhum reflexo real na arena eleitoral, e o candidato preferido do establishment agora está na Casa Branca.
No entanto, esses eventos deixaram uma marca indelével na consciência de milhões – e a ideia de revolução em nossa vida não é mais tão abstrata como antes. O movimento gastou muita energia, mas, como nenhuma das contradições que o produziram foi resolvida, não demorará décadas para que outra colossal força de luta seja construída. Junho de 2020 foi apenas um ensaio geral.
Polarização, racismo e as “guerras culturais”
O histórico movimento George Floyd trouxe a realidade do racismo estrutural e institucional à frente da consciência de massa. Esses problemas só podem ser resolvidos por meios revolucionários porque o racismo é um produto, não da “cultura” ou das “construções sociais” da supremacia branca, mas das necessidades econômicas da exploração capitalista. Não há um futuro capitalismo “não racista”, como Malcolm X notoriamente apontou. Perto do fim de sua vida, Martin Luther King Jr. tirou a mesma conclusão revolucionária:
Você não pode falar sobre resolver o problema econômico do Negro sem falar sobre trilhões de dólares. Você não pode falar sobre acabar com as favelas sem primeiro dizer que o lucro deve ser retirado das favelas. Você está realmente incomodando e entrando em terreno perigoso porque está mexendo com as pessoas. Você está mexendo com os capitães da indústria. Agora, isso significa que estamos navegando em águas difíceis, porque realmente significa que estamos dizendo que algo está errado com o capitalismo.
A colonização europeia das Américas e a vasta expansão da escravidão foram componentes essenciais na ascensão do capitalismo americano. A supremacia branca era necessária para justificar a exploração do trabalho escravo não branco. Embora a escravidão tenha sido abolida pela Guerra Civil revolucionária, o esforço heroico para erradicar a desigualdade racista durante a Reconstrução foi traído e revertido quando a classe capitalista se agrupou nacionalmente.
Mais de meio século desde a revogação legal das leis de Jim Crow [As leis de Jim Crow foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Todas essas leis foram promulgadas no final do século 19 e início do século 20 pelas legislaturas estaduais dominadas pelos democratas após o período da Reconstrução – NDT], o racismo permanece profundamente enraizado no aparato estatal, nos negócios, na habitação, na saúde, na educação, na mídia, nas instituições religiosas e culturais. O movimento contra o racismo deve, portanto, ser um movimento socialista revolucionário para unir a classe trabalhadora – de todas as cores e outras linhas de identidade – contra o capitalismo. Essa conclusão está começando a se espalhar entre a geração jovem, cuja esmagadora participação no movimento George Floyd revelou claros instintos de unidade contra o racismo do sistema.
Mas com o movimento de massa em declínio e até mesmo seus objetivos mais modestos traídos, as coisas podem deslizar para trás, abrindo espaço para a reação recuperar, temporariamente, a iniciativa. A enxurrada de leis que visam o direito de voto – e, em particular, o direito dos negros e outras minorias oprimidas – é um exemplo claro disso.
Em uma tentativa desesperada de evitar a ameaça de mais agitação social, ambos os partidos da classe capitalista moveram-se para enquadrar a questão do racismo como uma “guerra cultural”. Isso é feito por meio da estrutura burguesa do liberalismo “progressista” – apoiando-se nas influências acadêmicas pequeno-burguesas “despertadas” – e do conservadorismo religioso tradicional com seus preconceitos reacionários e, muitas vezes, seu indisfarçável racismo.
Os democratas esforçaram-se para oferecer um símbolo ou uma peça simbólica de legislação após a outra – tudo isso enquanto preservavam o status quo. Isso inclui a condenação, por assassinato, de Derek Chauvin, a remoção dos símbolos confederados de propriedade do Estado e o reconhecimento de Juneteenth [Juneteenth é um feriado nacional nos Estados Unidos que comemora a emancipação dos escravos – NDT] como feriado federal. Embora essas ações já devessem ter sido tomadas há muito tempo, nas mãos do Partido Democrata elas pretendem apenas o efeito de dissipar o vapor, enquanto impedem qualquer mudança real. Da mesma forma, os democratas, cinicamente, tentam se passar por defensores das mulheres, LGBTQIA+ e outros grupos oprimidos, enquanto defendem o sistema que os oprime e os explora.
Os republicanos, por sua vez, criaram um frenesi sobre a suposta prevalência do “marxismo” e da “teoria crítica da raça” nas escolas públicas e aprovaram leis para bani-los do currículo em vários estados. Como um ramo da teoria interseccional baseada na filosofia pós-moderna, as ideias da teoria crítica da raça nada têm a ver com o marxismo. Este ramo da academia aborda as desigualdades sistêmicas como “construções sociais” e nebulosas “relações de poder”, das quais todo indivíduo faz parte. Em vez de oferecer uma solução para acabar com a desigualdade racista, ele obscurece seu conteúdo de classe e se fixa no “privilégio branco” de uma forma que coloca os indivíduos uns contra os outros ao longo das linhas raciais e de identidade – jogando-os nas mãos da direita.
Como marxistas, devemos olhar além da aparência superficial dos fenômenos. Devemos analisar cientificamente as contradições e conexões entre o racismo inconsciente, interpessoal, institucional e estrutural. Somente examinando os interesses de classe que estão por trás do racismo, podemos entender quem realmente se beneficia – e como combatê-lo.
Compreensivelmente, esse assunto pode ser muito pessoal e, muitas vezes, emocional. Cada ser humano que vive no planeta hoje, é produto de um sistema mundial racista, e isso inclui também os trabalhadores brancos, muitos dos quais são profundamente preconceituosos. Os capitalistas e pequeno-burgueses brancos claramente obtêm um benefício material com o veneno do racismo. Ao manter os trabalhadores atomizados e lutando, uns contra os outros, eles podem se safar pagando menos. No entanto, de uma perspectiva de classe, os trabalhadores brancos não se beneficiam da opressão racista dos negros ou dos “privilégios” relativos que o sistema confere aos brancos.
A classe dominante fomenta o racismo como uma ferramenta para dividir e enfraquecer o movimento trabalhista e para bloquear o desenvolvimento da consciência de classe. Embora, às vezes, o promovam ativa e conscientemente, por exemplo, como o faziam para justificar a escravidão, o racismo também se tornou uma parte intrínseca da cultura e das instituições da sociedade burguesa. O racismo é perpetuado em um circuito de retroalimentação e ganhou vida e lógica próprias. Isso serve bem à classe dominante. Eles são capazes de se apoiar no preconceito racial para justificar a superexploração e as disparidades de salários e condições no seio da força de trabalho e da sociedade em geral. Os capitalistas usaram o racismo para promover uma “corrida para o fundo” – uma disputa implacável por empregos artificialmente escassos, moradia, saúde, educação e muito mais. Isso reduz os padrões de vida de toda a classe trabalhadora – incluindo os dos trabalhadores brancos.
A teoria crítica da raça obscurece o fato de que milhões de trabalhadores brancos pobres e da classe trabalhadora estão procurando as mesmas soluções que os trabalhadores negros: uma solução para moradia, empregos, educação gratuita, saúde universal, creche etc. Uma classe trabalhadora unida, que conscientemente lute contra o racismo com base na classe, aumentaria os padrões de vida de todos os trabalhadores – e ameaçaria a continuidade da existência do capitalismo. Isso é o que os defensores do sistema desejam evitar, levantando o bicho-papão da teoria racial crítica.
E, independentemente de suas implicações reacionárias do ponto de vista da classe, devemos observar que a teoria crítica da raça não está realmente sendo ensinada nas escolas primárias. A campanha republicana paranoica representa um esforço para livrar as salas de aula americanas de qualquer menção ao racismo e seu legado brutal ao longo da história dos Estados Unidos – e que continua até hoje. Mas essas tentativas de enterrar a história falharão. Assim como a iniciativa do governador da Flórida, Ron DeSantis, de forçar as escolas a dar aulas patrióticas sobre “os males do comunismo”, essas tentativas desajeitadas de doutrinação só sairão pela culatra à medida que os alunos continuarem a buscar ideias revolucionárias por conta própria.
A tentativa de enquadrar as divisões na sociedade como uma “guerra cultural” ou como uma forma de polarização ao longo de linhas “partidárias” é uma cortina de fumaça reacionária que esconde a divisão fundamental na sociedade humana moderna: a luta entre classes. Nem é essa polarização uma função de algoritmos de mídia social que produzem “extremismo”, como muitos liberais argumentam. A raiva contra o status quo e a condenação generalizada das “elites” é, em última análise, uma resposta ao impasse subjacente do capitalismo, que dá origem a um sentimento generalizado de descontentamento e à ideia de que “a sociedade está indo na direção errada“.
Pew Research publicou uma pesquisa de 2020 intitulada “[O] humor do público se torna sombrio”, que descobriu que 71% dos americanos sentem-se “zangados com o estado do país“, e quase nove em cada dez, 87%, disseram que estão “insatisfeitos com a maneira como as coisas estão indo.” Outra pesquisa da Pew descobriu que 82% dos americanos acham que pessoas ricas e grandes corporações têm demasiado poder e influência na economia de hoje. Curiosamente, 74% sentiram o mesmo sobre as seguradoras de saúde e 64% disseram que os bancos e outras instituições financeiras têm demasiado poder e influência.
Em 2019, o Cato Institute publicou uma pesquisa que descobriu que 17% dos americanos – mais de 40 milhões de pessoas – dizem que “cidadãos que praticam ações violentas contra os ricos, às vezes, são justificados“. Entre aqueles com menos de 30 anos, isso sobe para 35%, e entre aqueles que veem o socialismo de maneira favorável, 47% acham que o uso da força, às vezes, é justificado. O crescente sentimento de raiva de classe foi captado de forma sucinta em uma manchete do Washington Post: “Por que todo mundo de repente odeia bilionários? Porque eles facilitaram isso.”
Milhões deram um suspiro de alívio no final do mandato de Trump e com a implementação da vacinação em massa. Mas, mais uma vez, a tendência de longo prazo é clara. O descontentamento na sociedade é mais disseminado do que em qualquer momento da memória viva, e esta é, em última análise, a força motriz por trás da polarização política e “cultural”. 2016 viu a ascensão de Trump e Sanders, dois forasteiros vistos como lutadores contra o status quo do establishment. Quando Sanders começou a capitular no Comitê Nacional Democrata (DNC, na sigla em inglês), apenas um candidato “anti-establishment” permaneceu.
Um balanço do trumpismo
Por várias décadas, devido a presidentes como FDR [Franklin Delano Roosevelt] e Lyndon Johnson, os democratas foram considerados o partido mais “amigo dos trabalhadores” ou o “mal menor”. No entanto, após décadas de fracassos e traições, milhões de trabalhadores mudaram sua fidelidade política. Os democratas não podem mais contar com uma camada de trabalhadores que podiam mais ou menos dar por garantida no passado: um segmento da classe trabalhadora branca sindicalizada e, acima de tudo, aqueles do cinturão da ferrugem e das áreas rurais.
A eleição de 2016 foi caracterizada pela crise do liberalismo e de um sistema bipartidário que não conseguiu refletir o real estado de espírito de descontentamento da sociedade. Como o Brexit, a vitória de Trump não era “para acontecer”. Nenhum dos principais estrategistas políticos esperava isso, e ele claramente não era o candidato preferido de Wall Street. Mas, para milhões de eleitores cansados e furiosos, que acabaram de viver oito anos de estagnação sob os democratas, a perspectiva de mais um “status quo” do governo Clinton não foi inspiradora. Os “deploráveis” mostraram a Washington e aos liberais um dedo médio gigantesco.
Embora ele próprio seja um burguês, Trump explorou com sucesso a raiva crua contra o “pântano” liberal e conseguiu derrotar nada menos que 16 outros candidatos republicanos nas primárias de 2016. Isso marcou a derrota do establishment republicano e, por extensão, a perda do controle da burguesia sobre um de seus pilares fundamentais – um processo semelhante também pode ser observado entre os Conservadores britânicos ou no Likud em Israel. Ao aproveitar a raiva na base, Trump deu ao Partido Republicano outro sopro de vida e, ao fazer isso, remodelou amplamente o Partido Republicano à sua própria semelhança.
Ao analisar o fenômeno do trumpismo, devemos ter em mente a diferença entre sua base mais ativa de partidários fervorosos e seus eleitores nas eleições gerais. Longe de ser um bloco monolítico, a base de Trump representa uma aliança ímpia entre classes de vários segmentos da sociedade. Isso inclui uma ampla gama de elementos pequeno-burgueses, lumpen de extrema direita e fascistas, teóricos da conspiração Q-Anon e um punhado de pessoas atípicas da burguesia. A grande maioria da classe capitalista despreza Trump por ser um fator demasiado imprevisível e desestabilizador. Mas ele conseguiu ganhar os votos de uma camada considerável da classe trabalhadora – particularmente em setores como os da construção e da indústria pesada – em 2016 e novamente em 2020.
Nas eleições presidenciais de 2008 e 2012, Obama recebeu os votos de cerca de 60% dos eleitores sindicalizados. Quando Clinton concorreu em 2016, essa participação caiu para apenas 51%, enquanto Trump obtinha o apoio de 43% dos eleitores sindicalizados. Em 2020, Trump manteve o apoio de 40% dos eleitores sindicalizados, enquanto Biden obteve 56%.
Isso representa uma divisão significativa na classe trabalhadora e é verdade que, no espectro político atual, uma camada considerável de trabalhadores sindicalizados se deslocou ainda mais para a direita. Mas isso ocorre porque existem apenas opções políticas de direita disponíveis. Muitos desses trabalhadores apoiam Trump pela mesma razão que apoiaram Obama e os democratas no passado – porque não há alternativa viável e independente de classe. Foi só depois do fracasso da chamada bota esquerda do capitalismo que eles decidiram dar uma chance à bota direita. Mais do que uma guinada para a direita, representa uma busca frenética por uma saída do impasse.
É verdade que, desde 1960, uma grande camada de trabalhadores brancos, sindicalizados e não sindicalizados, votou consistentemente nos republicanos. Após décadas de relativa prosperidade e da ilusão de que “somos todos classe média”, muitos trabalhadores não se identificam pela classe e, consequentemente, votam de acordo com sua religião, grupos de amigos ou outros fatores. Além disso, a maioria dos programas do governo é paga tributando a classe trabalhadora – uma parte da classe é tributada para financiar programas para a outra. Os demagogos exploram isso falando de “governo grande”, de “direitos”, e mais um monte de desinformação e mentiras descaradas. No entanto, não há dúvida de que muitos trabalhadores que votaram em Obama mudaram seu voto para Trump.
Grupos fascistas como o Oath Keepers, o KKK e os Proud Boys apoiam Trump (pelo menos na maior parte), e esses grupos, sem dúvida, aumentaram de tamanho nos últimos quatro anos, mas não estão se aproximando de se tornar um movimento de massa. Esses minúsculos grupos fascistas podem ser usados como auxiliares contra a esquerda e partes do movimento operário. Eles podem ser uma ameaça real para indivíduos e pequenos grupos. Camaradas e ativistas individuais devem ser cuidadosos e não subestimar o que essas pessoas estão dispostas a fazer. Mas é uma questão totalmente diferente em termos de sua presença social geral e de sua capacidade de enfrentar forças maiores.
Portanto, não devemos exagerar o escopo ou a força da vitória de Trump. Ele perdeu no voto popular em 2016 por uma margem de 2,8 milhões de votos. Devido ao mecanismo arcaico e não democrático do Colégio Eleitoral, menos de 78 mil votos em três estados permitiram que Trump vencesse em 2016. A margem de Biden em 2020 foi ainda mais estreita: menos de 43 mil votos em três estados o colocaram na beirada, apesar de ganhar sete milhões a mais de votos populares. Tanto em 2016 como em 2020, o número de eleitores que ficaram de fora da eleição foi maior do que o número de votos que cada candidato recebeu.
Dada a falta de alternativa, a pequena burguesia enfurecida pode parecer ter influência e visibilidade desproporcionais no cenário político. No entanto, numérica e economicamente, essa camada da sociedade foi drasticamente reduzida em relação ao tamanho da classe trabalhadora. Como resultado, o equilíbrio das forças de classe inclinou-se esmagadoramente contra as reservas sociais do fascismo, em comparação à década de 1930. Longe de ganhar influência na arena política, esses grupos estão sendo cada vez mais visados e processados pelo governo federal, principalmente após a tomada do Capitólio.
Os eventos de 6 de janeiro de 2021 foram, sem dúvida, dramáticos e sem precedentes. Mesmo nos turbulentos anos antes e depois da Guerra Civil, o prédio do Capitólio dos Estados Unidos nunca foi invadido por manifestantes – muito menos com o incentivo tácito do presidente em exercício. Todo o establishment de Washington observou sua “cidade brilhante sobre uma colina” tornar-se um símbolo de polarização violenta e de decadência. O evento marcou o ponto culminante de um desastre de quatro anos que minou profundamente a democracia burguesa. O principal correspondente do New York Times para a Casa Branca lamentou que a reputação dos EUA no cenário mundial estivesse em “baixa”:
Com menos de uma semana para terminar, o mandato do presidente Trump está chegando ao clímax, em termos de violência e recriminação, em um momento em que o país se dividiu profundamente e perdeu o sentido de si mesmo. Noções de verdade e realidade foram atomizadas. A fé no sistema foi erodida. A raiva é o único terreno comum.
No entanto, apesar da linguagem sensacionalista na mídia liberal, 6 de janeiro não foi uma insurreição organizada ou uma tentativa de golpe bonapartista. Para isso, Trump teria exigido o apoio de, pelo menos, um setor do aparato militar – que ele, definitivamente, não tinha, embora houvesse, sem dúvida, oficiais militares pró-Trump. É significativo que, poucos dias antes do motim em DC, todos os dez ex-secretários de defesa vivos publicaram uma declaração conjunta no Washington Post, defendendo os resultados da eleição e alertando que o envolvimento militar na eleição “nos levaria a um território perigoso, ilegal e inconstitucional.” Em outras palavras, se os militares tivessem sido chamados, teria sido para se livrarem de Trump, não para instalá-lo como ditador!
Trump e seus partidários obstinados no Congresso quase certamente não planejaram que a multidão invadisse o Capitólio. As forças de segurança em DC claramente não esperavam isso e, embora alguns policiais fossem simpáticos aos manifestantes, no geral estavam mal preparados e numericamente superados. No entanto, ao enquadrar a eleição como fraudulenta em uma tentativa de derrubar o resultado, Trump estava brincando com fogo. A violação do Capitólio deu uma nova vida à guerra civil que grassava dentro do Partido Republicano, e Mitch McConnell, junto ao líder da minoria na Câmara, Kevin McCarthy, saíram de forma mais aberta contra Trump do que nos quatro anos anteriores. McConnell, por exemplo, escreveu um artigo de opinião afirmando que Trump tinha “responsabilidade moral” pela invasão do Capitólio. Mas eles enfrentaram retaliação instantânea e severa de sua base de eleitores e – com exceção de Liz Cheney – rapidamente voltaram a comprometer sua lealdade ao ex-presidente.
Por enquanto, o controle por Trump da base de eleitores do Partido Republicano assegura seu comando sobre o partido. Durante a maior parte de seu mandato, Trump teve sorte quando se tratava de economia e reivindicou todo o crédito por isso. Isso deu a ele muita credibilidade entre os trabalhadores. Dada a sua autoridade pessoal e a falta de confiança na mídia liberal, ele teve sucesso em servir a China e o coronavírus como bodes expiatórios para seus problemas econômicos entre uma camada significativa da classe trabalhadora. Se a economia tivesse entrado em crise na ausência da pandemia, Trump teria perdido muito mais apoio. Tal como estava, entre novembro de 2020 e janeiro de 2021, o apoio de Trump entre os republicanos auto-identificados caiu de 90% para, aproximadamente, 70%.
A maioria da classe dominante gostaria de encerrar a carreira política de Trump. Eles tentaram o impeachment, mas falharam. Eles gostariam de tirá-lo da disputa em 2024 e enfraquecer seu controle sobre o Partido Republicano. Eles também gostariam de dar um alerta a quaisquer outros políticos, como o senador Josh Hawley, o governador de Dakota do Sul, Kristi Noem, e outros que possam ter ideias e inclinações semelhantes. É por isso que os procuradores distritais do condado de Nova York e do condado de Fulton, na Geórgia, e o procurador-geral do Estado de Nova York, estão considerando acusações criminais contra Trump. O Procurador-Geral dos Estados Unidos também pode se juntar a esse esforço. Alguns dos crimes de que Trump poderia ser acusado têm a ver com práticas comerciais nas quais ele está envolvido há décadas. Essa decisão de fazer cumprir esses estatutos agora diz muito sobre como funciona o chamado “sistema de justiça”.
“Trumpismo versus liberalismo” é uma falsa dicotomia e deve ser rejeitada em favor de uma análise de classe. Ambos os campos representam os interesses da classe capitalista, não dos trabalhadores. A única maneira de quebrar o controle de Trump sobre as mentes de milhões de trabalhadores desesperados e confusos é com um partido ousado e lutador, armado com um programa de reivindicações da classe trabalhadora. Como o Financial Times observou, em dezembro de 2020, o populismo de direita ao estilo de Trump pode prosperar na reação política contra a desigualdade por um tempo, “mas como não pode cumprir suas promessas para os economicamente frustrados, é apenas uma questão de tempo antes que os forcados saiam contra o próprio capitalismo e contra a riqueza daqueles que se beneficiam dele.”
O impasse histórico do capitalismo
Lenin explicou que “a política é a expressão concentrada da economia”. A base econômica para a estabilidade relativa dos anos do pós-guerra foi profundamente abalada e, com isso, as relações políticas e sociais que dela decorreram. A crise que nos é imposta é orgânica e sistêmica, não conjuntural ou temporária. Esta é, em última análise, a causa motriz da polarização social e política e da crise de legitimidade nas instituições da sociedade burguesa.
Como apontamos em documentos de perspectivas anteriores, existem duas barreiras objetivas que limitam o desenvolvimento das forças produtivas: a propriedade privada dos meios de produção e o Estado-nação. Essas são as contradições fundamentais que impedem a humanidade de aproveitar todo o potencial produtivo da economia global e elevar drasticamente os padrões de vida.
A prolongada ascensão do capitalismo mundial durante o período do pós-guerra foi uma anomalia histórica resultante de uma combinação única de fatores decorrentes da Segunda Guerra Mundial. Contrabalançados pela União Soviética stalinista, os EUA emergiram como a potência imperialista dominante devido à destruição em tempo de guerra, de seus rivais europeus, ao aumento da demanda por armamentos e à subsequente reconstrução da Europa, ao surgimento de novas tecnologias e mercados de produção em tempo de guerra e, acima de tudo, ao aumento do comércio mundial. Isso significa que, por um período de tempo, o capitalismo foi capaz de se expandir além de seus limites “naturais”, e a classe dominante pôde se dar ao luxo de oferecer maiores concessões a, pelo menos, algumas camadas da classe trabalhadora.
Essa excepcional “idade de ouro” forneceu a base material para um amortecimento temporário da luta de classes. Os estrategistas do capital argumentaram que o sistema havia superado seu ciclo de expansão e recessão, e que cada geração desfrutaria de um padrão de vida mais elevado do que a anterior. Reforçou o “sindicalismo empresarial” e o hábito de negociar amigavelmente com os patrões, para obter concessões.
Esse período anômalo chegou ao fim com a crise mundial sincronizada de meados da década de 1970, preparando o cenário para uma ofensiva total da classe dominante para recuperar as concessões do boom pós-guerra. Juntamente com a colaboração de classe dos líderes trabalhistas, isso levou ao declínio constante dos salários e ao agravamento das condições para a classe trabalhadora desde os anos 1970. Se o salário mínimo tivesse acompanhado os ganhos de produtividade, como fez de 1938 a 1968, agora seria de US$ 24 por hora. Em vez disso, o salário mínimo federal é de apenas US$ 7,25.
Enquanto isso, a riqueza concentrada nas mãos dos capitalistas atingiu níveis quase insondáveis. As 400 pessoas mais ricas agora têm uma riqueza coletiva igual a 20% de todo o PIB dos EUA – em comparação com apenas 2% em 1980. A receita combinada das empresas Fortune 500 é de US$ 14,2 trilhões – o equivalente a dois terços de toda a economia. Hoje, os 15 maiores bancos dos Estados Unidos têm quase US$ 13 trilhões em ativos, cerca de 60% do PIB, e há um alto grau de monopolização em setores como energia, comunicações, alimentos e tecnologia, apenas para citar alguns. Isso representa uma concentração de capital muito além de qualquer coisa que Lenin descreveu em seu livro clássico, Imperialismo: A Etapa Mais Alta do Capitalismo.
Em resposta à crise dos anos 1970, os capitalistas tentaram expandir, artificialmente, os limites do mercado mundial por meio da expansão maciça do crédito. Nos Estados Unidos, entre 1964 e 2007, o crédito disparou de US$ 1 trilhão para US$ 50 trilhões. O resultante acúmulo de dívidas contribuiu para a gravidade da recessão de 2008. Como Marx explicou no Manifesto Comunista:
As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas gerada. E como a burguesia supera essas crises? (…) Abrindo caminho para crises mais extensas e destrutivas e diminuindo os meios pelos quais as crises são evitadas.
As crises periódicas da economia são, em última análise, o resultado da superprodução – uma das contradições internas e insolúveis do modo de produção capitalista. Os lucros dos capitalistas vêm da mais-valia extraída do trabalho da classe trabalhadora – a riqueza que os trabalhadores criam além da quantidade que levam para casa em termos de salários e benefícios. Visto que a classe trabalhadora recebe coletivamente menos do que o valor total dos bens e serviços que produz, a competição de mercado resulta, periodicamente, em uma situação em que mais bens e serviços são produzidos do que podem ser vendidos com lucro. Para evitar o empilhamento de mercadorias não vendidas, os capitalistas demitem trabalhadores e reduzem a produção, minando ainda mais a demanda em uma espiral descendente.
No final de 2019, antes do estouro da crise da saúde, o FMI anunciou que 90% da economia global estava em desaceleração sincronizada – o nível de crescimento mais lento em uma década. O crescimento do PIB nos EUA estava cambaleando, pairando abaixo de fracos 3% desde 2005. Os economistas burgueses sérios estavam soando o alarme sobre a volatilidade nos mercados de ações e alertaram para uma queda profunda e iminente. Como lamentou o Financial Times, “a economia global está oscilando no limite”.
Embora a pandemia tenha exercido um poderoso choque externo que derrubou o castelo de cartas econômico, as condições para uma queda profunda já vinham se acumulando há mais de uma década. Portanto, embora o alívio da pandemia tenha levado a uma espécie de recuperação econômica, à medida que a poupança acumulada e o dinheiro da política de estímulo inundam a economia, nenhuma das contradições subjacentes foi resolvida. Mais cedo ou mais tarde, outro colapso econômico “único na vida” desabará sobre as cabeças dos trabalhadores.
CONCLUI NA PARTE 3.