Em todo o mundo ocidental autoproclamado “civilizado”, as classes dominantes uniram-se para denunciar o ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro e em torno do “direito à autodefesa” de Israel enquanto este bombardeia Gaza até as fundações. Mas esta não é a primeira vez que nos dizem para aceitar uma guerra sangrenta contra um povo oprimido em nome da “autodefesa” da nação opressora.
[Source]
A recente viagem de quatro dias do Rei Carlos III ao Quênia despertou memórias de uma das piores atrocidades da brutal era colonial britânica. Entre 1952 e 1960, confrontadas com uma revolta anticolonial, as forças leais britânicas envolveram-se na extensa punição coletiva de 1,5 milhões de quenianos – tudo em nome da “legítima defesa”. A brutalidade do período foi tal que o procurador-geral britânico, em 1957, descreveu a situação como “uma reminiscência dolorosa das condições da Alemanha nazista”.
A revolta Mau Mau, conhecida pelos britânicos simplesmente como a “Emergência”, foi uma insurgência mal equipada contra o poder do imperialismo britânico, e que foi respondida com uma campanha sem precedentes de restrições, tortura, violação, trabalho forçado e assassinatos indiscriminados.
O governo britânico, então, não falava sobre “Democracia” ou “Direito Internacional” – não, esta foi uma guerra colonial à moda antiga e sem adornos. Mas em todos os aspectos, exceto pela linguagem hipócrita e nauseabunda, a atual guerra em Gaza é precisamente isso também: uma guerra colonial imperialista, destinada unicamente a destruir o espírito de resistência entre os Palestinos, da mesma forma como os britânicos tentaram destruir o espírito de resistência do povo queniano na década de 1950.
A violência dos oprimidos
A mídia britânica desempenhou um papel fundamental ao exagerar a crueldade dos Mau Mau, ao mesmo tempo em que minimizava e ocultava quaisquer atos desagradáveis por parte dos legalistas. A mídia capitalista mantém zelosamente esta tradição consagrada de mentiras e calúnias ainda hoje, como evidenciado inúmeras vezes durante a atual guerra de Israel em Gaza.
Desde o início da revolta, os jornais britânicos foram inundados com descrições sinistras e muitas vezes completamente fabricadas da violência Mau Mau, inspiradas em relatórios escandalosos divulgados pelo governo.
Um relatório do governo descreveu os combatentes Mau Mau como “terroristas insaciáveis por sangue” que assassinavam crianças “aos olhos das suas mães”. Tal declaração poderia ter sido retirada literalmente das descrições atuais dos Palestinos na imprensa capitalista! Os jornais burgueses ecoaram lealmente essa mensagem, proclamando os Mau Mau como “bárbaros”, “selvagens”, “bestiais” ou “impiedosos”.
O número de mortos nos ataques Mau Mau também foi grosseiramente exagerado pela imprensa, dando a impressão de que milhares de quenianos brancos tinham sido mortos de várias formas altamente desagradáveis. Os relatórios oficiais, no entanto, estimam que o número real de quenianos brancos mortos entre 1952 e 1960 seja inferior a 100, a maioria dos quais eram soldados mortos em combate. O antropólogo Robert Edgerton observa que, durante os oito anos de insurgência, mais civis brancos foram mortos em acidentes de trânsito em Nairobi do que pelos Mau Mau. As estimativas oficiais estimam o número total de vítimas legalistas em menos de 2.000.
A violência do opressor
Embora os Mau Mau fossem certamente responsáveis por matar inocentes, isto empalidece em comparação com a brutalidade dos britânicos. Oficialmente, o governo britânico afirma que cerca de 10 mil quenianos foram mortos por soldados legalistas.
Este número inclui mais de 1.000 pessoas mortas por enforcamentos, que ocorreram a um ritmo sem precedentes no período. No auge da revolta, 50 quenianos eram enforcados todos os meses, muitos deles sob acusações tão vagas como “rebelião”. Apenas uma minoria dos executados pelos britânicos foi acusada de homicídio.
Mas esta é apenas a ponta do iceberg. Como salienta a historiadora Caroline Elkins, não há registo de quantos não-combatentes morreram em consequência de tortura, subnutrição, abusos e trabalho forçado. Elkins estima que o número de mortes como resultado da resposta britânica ao levante pode chegar a 300.000.
Provavelmente também saberíamos mais sobre a escala dos assassinatos perpetrados pelas forças legalistas se os responsáveis coloniais no Quênia não tivessem destruído convenientemente três toneladas e meia de documentos confidenciais pouco depois do fim da revolta.
Às mortes não registradas de vítimas da tortura britânica somam-se as inúmeras mortes resultantes da campanha de bombardeio indiscriminado da Grã-Bretanha contra zonas rurais consideradas como santuários dos Mau Mau. Ao longo dos oito anos do conflito, a Força Aérea Real lançou um total de 50.000 toneladas de bombas e disparou dois milhões de tiros de metralhadora desde aviões em áreas florestais como parte da “Operação Cogumelo”.
Esta campanha de destruição cega reflete a atual devastação de Gaza por Israel, com Israel lançando 18.000 toneladas de bombas nas primeiras três semanas do atual conflito. A classe dominante britânica não pode reivindicar um pingo de credibilidade enquanto faz barulho sobre o “Direito Internacional” e a proteção dos civis, embora não precisemos regressar à década de 1950 para nos convencermos disso.
Mesmo que tomemos as estimativas britânicas mais conservadoras do número de mortos e ignorando as incontáveis vítimas, as forças legalistas mataram cinco ou seis vezes mais quenianos do que os Mau Mau. É mais do que provável, no entanto, que as mortes pelos britânicos tenham superado as dos Mau Mau em mais de 100:1.
Tudo isso foi conduzido sob o mantra da “autodefesa”. Desde 2008, a ONU estima que as mortes palestinas superam as mortes israelenses dentro de uma proporção de 20:1, como resultado do conflito. Tal comportamento não é o produto de um Estado “civilizado” e “democrático” que se defende a si próprio – no Quênia, como na Palestina, é o produto de uma guerra unilateral para esmagar um povo oprimido que ouse revidar.
“Gulag britânico”
O bombardeio e o assassinato de civis foram, no entanto, apenas uma parte do reinado de terror da Grã-Bretanha no Quênia. Talvez ainda mais insidioso tenha sido o confinamento forçado de praticamente todos os Kikuyu, nativos do Quênia, que constituíam a maior parte dos Mau Mau – um total de 1,5 milhões de pessoas.
Aqui está a medida em que Israel hoje superou os britânicos no passado. Atualmente, mais de dois milhões de pessoas são mantidas reféns por Israel só em Gaza, juntamente com outros três milhões na Cisjordânia.
A maioria dos Kikuyu foram confinados através de um processo chamado de aldeamento, saudado pelos imperialistas britânicos como a introdução de um modo de vida “europeu” para os primitivos quenianos. Sem aviso prévio, as suas casas e granjas foram incendiadas por soldados coloniais – muitas vezes com as famílias ainda no interior – e todos os que sobreviveram foram forçados a entrar em campos patrulhados dos quais não podiam sair.
Tal como acontece hoje em Gaza, o acesso a recursos essenciais, como alimentos e água, foi fortemente restringido. A intenção era quebrar o espírito de qualquer Kikuyu que tivesse esperanças nos Mau Mau, mas teve o efeito colateral previsível de matar um grande número de pessoas devido às doenças e à desnutrição.
Muito pior do que o destino daqueles que estavam nas “aldeias”, no entanto, foram as condições que aguardavam os supostos membros ou simpatizantes dos Mau Mau que acabaram no “pipeline” – uma série de campos de concentração especializados em diferentes graus de trabalho forçado e tortura física.
O suposto “sistema de reabilitação” do “pipeline” produziu, de longe, alguns dos comportamentos mais repugnantes e desumanos de que o imperialismo é capaz, mesmo para os padrões já chocantemente baixos da Grã-Bretanha.
Um ex-recluso descreve os “interrogatórios” regulares realizados por oficiais britânicos da seguinte forma:
“Se uma pergunta não fosse respondida de forma satisfatória para o interrogador, o sujeito era espancado e chutado. Se isso não levasse à confissão desejada, o que raramente acontecia, era aplicada mais força. O choque elétrico era amplamente utilizado, assim como o fogo. As mulheres eram mergulhada e mantidas sufocadas debaixo de água… [Os homens] eram arrastados atrás de Land Rovers, chicoteados, queimados e golpeados com baionetas… Alguns agentes da polícia não se preocupavam com formas de tortura mais demoradas; eles simplesmente atiravam em qualquer suspeito que se recusasse a responder e depois diziam ao próximo suspeito para cavar a sua própria cova. Quando a sepultura era concluída, perguntava-se ao homem se ele estava disposto a conversar agora.”
Junto aos espancamentos, abusos sexuais, castração, queimaduras e trabalhos forçados, os suspeitos Mau Mau também eram submetidos a torturas psicológicas cruéis. O cristianismo foi imposto, com pregadores transmitindo regularmente propaganda religiosa por todos os campos, denunciando as crenças tradicionais Kikuyu. Os prisioneiros também eram frequentemente forçados a cantar “God Save the Queen”, enquanto eram espancados por oficiais britânicos.
O regime de terror generalizado e monstruoso do “pipeline” foi imposto a cerca de 320 mil pessoas ao longo da revolta, deixando cicatrizes físicas e emocionais em toda uma geração, e que ainda hoje persistem.
“Esclarecido e humano”
Tal como hoje, enquanto os legalistas britânicos massacravam e humilhavam civis quenianos com uma brutalidade desumana, nem um pingo de arrependimento foi demonstrado pela classe dominante britânica ou pelos seus comparsas Conservadores no governo.
Terence Gavaghan, encarregado de supervisionar a “reabilitação” dos Mau Mau, descreveu o processo de tortura física e psicológica de um suspeito até que admitisse alguma ligação com o grupo como “esclarecido, humano e de base cristã”. Sem dúvida que hoje ele teria usado a expressão “ordem internacional baseada em regras”.
Da mesma forma, o então procurador-geral britânico do Quênia, Eric Griffith-Jones, elaborou leis que sancionavam espancamentos injustificados, mas evitando que fossem denunciados, escrevendo: “Se vamos pecar, devemos pecar silenciosamente”.
Estes são os cavalheiros criminosos de guerra, que ainda hoje enchem os salões iluminados das Casas do Parlamento e do Knesset. Eles têm o decoro de falar sobre humanidade e dignidade, enquanto assassinam e saqueiam. E o mais importante é que estes responsáveis não foram considerados “animais terroristas” como os que lançaram a revolta anticolonial!
Lágrimas de crocodilo no Quênia
Na sua viagem ao Quênia, enquanto derramava algumas lágrimas de crocodilo sobre o seu “profundo pesar” e sobre os “aspectos dolorosos” da política colonial britânica durante a revolta Mau Mau, o rei Carlos III não conseguiu sequer emitir um pedido de desculpas superficial.
E, de fato, há boas razões pelas quais ele não pode apresentar um pedido de desculpas pela política que o imperialismo britânico conduziu no meio da revolta Mau Mau, pela simples razão de que essa política não terminou.
A realidade é que as forças “civilizadas” do imperialismo britânico no Quênia hoje estiveram ligadas a inúmeros assassinatos e agressões sexuais, bem como a danos generalizados com explosivos e produtos químicos em terras agrícolas e aldeias até aos dias de hoje.
Portanto, não, Carlos III não pode pedir desculpas pelos crimes que o imperialismo britânico ainda comete no atual Quênia, e não tem escrúpulos de que seus aliados cometam crimes que, afinal, não são tão diferentes dos seus próprios.
Fundamentalmente, seja na Palestina ou no Quênia, tais crimes sempre continuarão enquanto existir o imperialismo. A subjugação dos oprimidos não se preocupa com os valores democráticos, com a “ordem baseada em regras”, ou com a questão de “quem atirou primeiro”.
Os horrores do imperialismo britânico no Quênia mostram a face nua e crua da classe capitalista, uma vez eliminada a farsa da democracia liberal. Esta é a verdadeira natureza da guerra que está sendo travada contra o povo de Gaza, e as tentativas de apresentá-la em termos mais palatáveis nada mais são do que a mais pura hipocrisia vinda da boca de uma classe capitalista podre que está preparada para fazer muito pior.