Este é o ano do centenário de dois grandes compositores*. Um deles, Mozart, é universalmente conhecido e amado. O segundo é Dimitri Shostakovich, um dos maiores compositores do século 20, um gigante que deu voz aos sofrimentos e triunfos do povo soviético em um dos mais turbulentos e revolucionários períodos da história.
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Shostakovich nasceu em São Petersburgo, em 25 de setembro de 1906, e morreu em Moscou, no dia nove de agosto de 1975. Sua vida, por conseguinte, abrangeu a Revolução de Outubro, a guerra civil e as duas guerras mundiais, bem como os horrores do stalinismo, que mudou todo o curso de sua vida, assim como mudou o destino do país de Outubro, pisoteando as esperanças e os sonhos despertados pela Revolução Bolchevique. Tais eventos titânicos evocaram a música em escala equivalente e encontraram eco harmônico nas poderosas sinfonias de Shostakovich.
Os artistas não podem manter distância da vida, mesmo se o desejarem. E Shostakovich certamente não o desejou. Sob a aparência exterior de uma pessoa tímida e reservada piscando os olhos através das lentes dos óculos, tinha uma personalidade corajosa e jovial – era um homem determinado a fazer ouvir sua voz a todo custo e que assumiu enormes riscos para agir assim.
A despeito de todas as tentativas, por diferentes razões, para depreciar este grande compositor e distorcer suas verdadeiras ideias e objetivos, a história restabelecerá sua reputação enquanto um dos maiores – senão o maior – compositores do século 20, como uma heroica e trágica figura que forneceu à posteridade o mais comovente e verdadeiro registro da história dos tempos em que viveu, produziu e lutou.
Shostakovich era filho da Revolução e, sem ela, nunca teria conseguido fazer o que fez. Durante toda sua vida, apesar de todas as tentativas de comentaristas reacionários e maliciosos, ele permaneceu leal aos ideais do socialismo e de Outubro. Mas ele detestava Stalin e a burocracia. Isto lhe custou caro. Devido a seus princípios, teve uma vida dura, cheia de tragédias – tanto com relação a sua própria vida, quanto com relação à tragédia ainda maior sofrida por seu povo – o povo da União Soviética.
Todos os sofrimentos de sua terra natal estão expressos em sua música. Por essa razão, às vezes, parece uma música “difícil”. Este é o caso, particularmente, de suas últimas três sinfonias, escritas no final de sua vida, quando Shostakovich estava amargurado e crescentemente obcecado com a ideia da morte. Mesmo então sua música nunca foi pessimista, mas sim trágica e profundamente humanista.
A origem do presente artigo foram algumas anotações que escrevi, há alguns anos, para explicar em linhas gerais o significado das sinfonias de Shostakovich, como eu as via, ao meu caro amigo Miguel Fernandez, um veterano do movimento dos trabalhadores espanhóis na luta contra a ditadura de Franco, bem como um talentoso poeta e amante da música clássica.
Ao escrever este fragmento, estou consciente de que não faço justiça ao gênio de Shostakovich como compositor e que somente muito superficialmente abordo certos aspectos de Shostakovich como homem. Enquanto marxista, estou mais interessado nos acontecimentos de sua vida, na medida em que esses acontecimentos dizem respeito à política e às complexas relações entre o compositor e o trágico destino da Revolução de Outubro. Não estou interessado em sua vida pessoal, exceto quando ela intervém com um elemento desta complicada e contraditória equação.
Refiro-me apenas de passagem à controvérsia que envolve a “autobiografia” de Shostakovich escrita por seu antigo aluno Solomon Volkov, que apareceu nos anos 1970 nos EUA sob o título Testimony. É um livro muito interessante para todos os que quiserem entender Shostakovich e os terríveis acontecimentos na URSS sob Stalin. Contudo, desde que o objeto desse livro não mais está vivo para garantir sua autenticidade, sempre permanecerão dúvidas.
Minha própria opinião, baseada numa cuidadosa leitura do livro e de outros materiais, leva-me à conclusão de que Shostakovich ditou longos fragmentos dele a Volkov, mas que este adicionou e interpretou as opiniões do compositor de acordo com o seu próprio ponto de vista, que não coincide necessariamente com o ponto de vista de Dimitri Shostakovich.
Há dois sérios problemas aqui. Um deles é que Shostakovich não era um homem que se abria facilmente para as pessoas. Além de seu caráter bastante tímido e retraído, os pesados golpes que caíram sobre sua cabeça, durante toda a sua vida e que ameaçaram a sua própria existência, ensinaram-no a ser reservado e cauteloso. Isto explica as suas declarações frequentemente enigmáticas sobre o seu próprio trabalho. Quando questionado sobre o que elas significavam, ele encolhia os ombros e dizia, literalmente: “adivinhe”.
O outro – e mais sério – é que, particularmente hoje, há uma campanha feroz para desacreditar as ideias do socialismo e para “provar” que a Revolução Russa foi uma gigantesca aberração, um erro histórico que não levou a nada. Isto é inteiramente falso. Apesar de todos os horrores do stalinismo, a Revolução de Outubro provou na prática a superioridade da economia nacionalizada e planificada. Ela provou que era possível administrar a economia de um imenso país sem latifundiários, banqueiros e capitalistas privados. Nas palavras de Leon Trotsky, ela provou a superioridade do socialismo, não na linguagem do Capital de Marx, mas na linguagem do cimento, do ferro, do aço, do carvão e da eletricidade.
A URSS também deu notáveis passos à frente na ciência, na arte e na cultura. É verdade que penosos danos foram infligidos à cultura soviética pela burocracia corrupta e contrarrevolucionária e que, no final, esta burocracia voraz minou e destruiu a economia nacionalizada e planificada, levando o país de Outubro de volta ao capitalismo. Atualmente, os antigos dirigentes do Partido Comunista da União Soviética, que costumavam falar sobre “socialismo” e “comunismo”, estão cantando louvores à economia de mercado. Eles têm todas as razões para fazer isto, uma vez que saquearam o estado e converteram-se em proprietários de grandes monopólios privados.
Atualmente, a grande maioria dos escribas profissionais, que, ontem, bajulavam Stalin e Brezhnev e que atacaram Shostakovich por sua oposição ao regime stalinista, juntou-se ao coro da contrarrevolução capitalista. E, no Ocidente, a ofensiva ideológica sem precedentes contra o socialismo e a Revolução de Outubro proclama em voz alta a inutilidade da cultura soviética, assim como proclama que a URSS nunca conseguiu qualquer coisa de valioso no campo da economia, da ciência e da tecnologia.
Apesar de conter muitas informações valiosas, o livro de Volkov comete o erro grosseiro de atribuir a Shostakovich (pelo menos implicitamente) uma visão antissoviética e anticomunista. Em outras palavras, ele confunde sua rejeição ao stalinismo com a rejeição ao socialismo e à Revolução de Outubro em geral. Isto é incorreto. Shostakovich estava bem consciente do potencial cultural da Revolução de Outubro, que ele apoiou sinceramente, junto com todos os melhores intelectuais de sua geração.
Ainda pior é a posição dos críticos do livro de Volkov, que consideram Shostakovich como uma marionete do establishment stalinista, um oportunista covarde, um pouco melhor que um agente da KGB. Essas damas e cavalheiros nunca poderão aceitar que a União Soviética produziu grandes compositores, escritores e cientistas. Para essas prostitutas intelectuais da burguesia, a URSS nunca produziu qualquer coisa que valha a pena na arte e na cultura, da mesma forma que na economia.
O que não conseguem explicar é como uma nação – que, em 1917, era mais atrasada que o Paquistão atual – conseguiu se transformar muito rapidamente na segunda nação mais forte do planeta; como a URSS teve êxito, quase sem ajuda, em derrotar a Alemanha de Hitler que dispunha de todos os recursos da Europa por trás dela; e como, depois da guerra, teve êxito, sem os benefícios do Plano Marshall, em reconstruir um país que tinha perdido 27 milhões de pessoas – mais do que todos os outros países do mundo juntos.
E o que têm esses admiradores do capitalismo a dizer sobre a Rússia atual? A restauração do capitalismo não conferiu quaisquer benefícios aos povos da antiga URSS. Como Trotsky previu, o retorno ao capitalismo na União Soviética causou o declínio sem precedentes das forças produtivas e da cultura. Seus efeitos em todas as esferas da ciência, arte, música e cultura têm sido catastróficos.
É tempo de deter essas tentativas de sequestrar Shostakovich para o campo da contrarrevolução capitalista. O presente artigo tenta restabelecer o equilíbrio e mostrar Shostakovich como ele realmente era: um grande artista soviético que usou a música para expressar os terríveis e inspiradores acontecimentos do período no qual viveu; um homem do povo que acreditava na possibilidade de um mundo melhor sob o socialismo; um idealista que odiava toda injustiça e desigualdade; um produto da Revolução de Outubro que odiava o stalinismo como uma perversão e uma traição dos verdadeiros ideais de Lênin.
De um ponto de vista estritamente musical, o escopo do presente trabalho é limitado. Trato aqui quase exclusivamente das sinfonias de Shostakovich. Isto não significa que ele escreveu somente isto. O primeiro concerto de violoncelo e o de violino, o quinteto e o quarteto de cordas, as canções e as músicas para piano, todas contêm a marca do gênio. Mas, em primeiro lugar, para se tratar de toda a vasta produção de Shostakovich, requer-se um livro não um artigo. Em segundo lugar, Shostakovich é conhecido internacionalmente acima de tudo como um sinfonista.
Tenho a convicção de que quem ouvir suas sinfonias cuidadosamente pode fazer uma ideia de como era sobreviver aos terríveis, mas inspiradores, acontecimentos que o povo da URSS experimentou de 1917 aos anos 1970. Conhecer e amar esses maravilhosos trabalhos constitui uma experiência profundamente gratificante e emotiva.
Sou um compositor soviético e vejo a nossa época como algo heroico
Acho que todo artista que se isola do mundo está condenado
(Shostakovich)
Nascido em São Petersburgo, Shostakovich era o segundo de três filhos. Sua família pelo lado do pai era de origem polonesa (o nome original da família era Szostakowicz). Seu avô paterno, Boleslaw Szostakowicz, participou da insurreição fracassada de 1863 contra o domínio russo e foi sentenciado ao exílio perpétuo na Sibéria. Esses fatos devem ter produzido impactos profundos na mente do jovem Shostakovich, que, apesar de não ser ativo na política, sempre teve uma incandescente aversão à tirania e uma profunda simpatia pelos sofrimentos das vítimas da opressão.
Sua família era politicamente liberal e sabe-se que alguns de seus parentes participaram do movimento clandestino contra o czarismo nos anos iniciais do século 20. Um de seus tios era bolchevique. Um ano antes dele nascer, a primeira revolução de 1905 tinha sido afogada em sangue. Não por casualidade uma de suas mais belas sinfonias (a Décima Primeira) está baseada nesta página trágica da história revolucionária da Rússia, ou faz uso das velhas canções revolucionárias russas, incluindo as canções cantadas pelos prisioneiros políticos e exilados siberianos.
As vicissitudes de sua vida trágica acompanham de perto as vicissitudes da Revolução de Outubro. Esta revolução terminou com mil anos de opressão czarista. Despertou as massas para a vida política e inspirou toda uma geração. Hoje em dia, na era da apostasia e do cinismo, quando a própria ideia de se construir um mundo novo e melhor é encarada com risos de zombaria pela tribo dos fariseus e das prostitutas intelectuais, é difícil imaginar o sentimento de libertação que nasceu da Revolução Russa. Para expressar isto, devemos citar as famosas linhas com que o jovem poeta Woodsworth saudou a Revolução Francesa:
“Felicidade era estar vivo naquela alvorada,
Mas ser jovem era o completo paraíso!”
Os ideais democráticos e socialistas de Outubro não atraíram apenas as massas exploradas e oprimidas. Eles inspiraram também os melhores artistas e intelectuais que foram irresistivelmente atraídos à causa da Revolução. Mesmo que não entendessem as ideias do marxismo, pessoas talentosas como os poetas Alexandre Blok e Sergei Yesenin simpatizavam sinceramente com a Revolução. Entre os compositores, Rachmaninov e Stravinsky ficaram no estrangeiro, amargamente hostis à Revolução; mas outros, como Alexandre Glazunov, permaneceram. Também permaneceu o famoso baixo russo, Fyodor Chaliapin, submetendo-se a consideráveis privações para servir ao povo. O maior baixo russo de todos os tempos era pago frequentemente por seus espetáculos com farinha e ovos.
Outro grande compositor russo, Sergei Prokofiev, também viajou para o exterior. Mais tarde, ele recordou que Anatoly Lunacharsky, o Comissário do Povo para a Cultura e Educação, encorajou-o a ficar: “Você é um revolucionário na música como nós somos na vida. Deveríamos trabalhar juntos. Mas, se você quer ir para a América, não bloquearei o seu caminho”. Prokofiev foi para os EUA em maio de 1918. Ninguém tentou impedi-lo de ir – um gritante contraste com a situação sob Stalin e Brezhnev. Mais tarde ele voltou quando Stalin já estava no poder e pagou um alto preço por isto.
Os anos de revolução e guerra civil foram anos de fome e de terríveis privações e sofrimentos. Em um período em que a sobrevivência e a procura por pão tornaram-se a primeira prioridade, as atividades artísticas e culturais foram relegadas a segundo plano. Não obstante isso, uma nova geração de jovens artistas soviéticos, escritores e compositores estava sendo formada, buscando respostas criativas aos desafios levantados pela revolução. Alguns deles procuraram por linhas radicais e inovadoras de criação com o espírito iconoclasta e revolucionário daqueles anos.
Lunacharsky não temia atrair os serviços da jovem geração. Dada a hostilidade de grande parte dos intelectuais velhos e privilegiados, ele não tinha muita escolha. Arthur Lourié, o compositor futurista, foi designado como diretor do recentemente formado departamento de música do Narkompros. Ele tinha 25 anos de idade. Ele escreveu sobre os anos depois da Revolução de Outubro: “Não havia nenhum pão e a arte ocupou o seu lugar. Em nenhum tempo e lugar vi pessoas, não somente ouvindo, mas devorando música com tanta avidez e sentimento como na Rússia daqueles anos” (citado por Amy Nelson em “Music for Revolution”).
O talento de Shostakovich para a música evidenciou-se cedo. Ele teve lições de piano aos nove anos de idade. Em 1919, entrou no famoso Conservatório de Petrogrado, dirigido por Glazunov. Embora este fosse, musicalmente falando, um conservador com suas raízes firmemente fincadas no mundo de Tchaikovsky e no século 19, ajudou o jovem Shostakovich, que mais tarde sempre falou afetuosamente dele.
Shostakovich era o representante da nova tendência musical que refletia o espírito revolucionário da época. Ele seguia os passos de Prokofiev e Stravinsky, que reagiram contra o espírito romântico do século 19 e escreveram músicas muitas vezes com uma violenta característica que estava mais em consonância com o férreo caráter da época: músicas como Sagração da Primavera de Stravinsky, que causou uma revolta no teatro de Paris onde foi apresentada pela primeira vez logo antes da Primeira Guerra Mundial, ou a “Scythian Suite” de Prokofiev. Muitos amantes da música ficaram chocados com essas dissonâncias e as repeliram. Mas elas foram apenas um pálido reflexo da completa e real violência e barbaridade que o século 20 estava preparando para a humanidade.
Na União Soviética, os anos 1920 foram excitantes. A lava da Revolução não tinha ainda esfriado e endurecido para produzir a crosta de conservadorismo burocrático, como foi o caso, mais tarde, com a ascensão da burocracia stalinista. Uma jovem geração de escritores, artistas e compositores suportou as tempestades e tensões da Revolução de Outubro. Poucos deles tinham uma ideologia política ou uma firme compreensão do marxismo, mas instintivamente gravitaram em torno da Revolução de Outubro e do Bolchevismo, que de alguma forma correspondiam a sua própria rebelião espiritual, a sua enfática rejeição do velho e a sua busca de novas formas de expressão artística. Esses escritores, artistas e compositores eram “companheiros de viagem”, para usar a notável expressão inventada por Trotsky (um dos poucos importantes dirigentes bolcheviques que prestaram séria atenção às novas escolas de arte e literatura, sobre as quais escreveu em seu brilhante e polêmico livro “Literatura e Revolução”).
Os poetas acmeístas Osip Mandelshtan e Anna Akhmatova e o poeta simbolista Alexandre Blok participaram nos debates sobre arte e literatura, junto com Bogdanov e outros representantes do Proletkult. Boris Pilnyak experimentou novos estilos escrevendo novelas. O arquiteto e projetista Vladimir Tatlin fez arrojadas inovações na arte da arquitetura construtivista. Seu projeto para um monumento à Internacional Comunista é famoso, mas permaneceu no papel.
Na música, a nova tendência “proletária” estava representada em sua forma mais extrema por Mossolov, cuja impressiva evocação da vida na fábrica Zavod (A Fundição de Ferro) ganhou certa notoriedade. É possível ter diferentes avaliações do valor artístico deste e de outros trabalhos do período, mas eles possuem indubitavelmente certos vigor e sinceridade e representavam uma tentativa honesta de encontrar uma nova voz para a arte e a música soviética.
No momento não poderia haver nenhum questionamento do Partido ou do Estado sobre o que poderiam ou não escrever os escritores e compositores. Naturalmente, o Partido não poderia ser indiferente às tentativas artísticas e se engajou numa vívida polêmica, criticando certas tendências como burguesas ou pequeno-burguesas. Mas este foi um diálogo amigável e construtivo e não um monólogo burocrático em que um Estado todo poderoso, com o Pai dos Povos à sua cabeça, dita não somente como os homens e mulheres deveriam agir, mas também como eles deveriam pensar e sentir.
As primeiras sinfonias
A primeira realização musical importante de Shostakovich foi a Primeira Sinfonia (Ouça um fragmento da Primeira Sinfonia), apresentada pela primeira vez em 1926, escrita como sua peça de graduação. O êxito da Primeira Sinfonia tornou famoso o seu autor à idade de 19 anos. Musicalmente, ela está em débito com compositores anteriores como Scriabin e Mahler, mas já tem uma linguagem musical toda própria.
Mais do que isso, ela é a sinfonia de um homem jovem que acabou de embarcar numa jornada empolgante, cheio de autoconfiança e desejos de aventuras. Ela lembra as palavras do poeta revolucionário bolchevique, Maiakovski, em seu precoce trabalho Uma Nuvem de Calças:
“Seus pensamentos,
Fantasiando em um cérebro embriagado,
Como um lacaio gordo se espreguiçando num sofá gorduroso,
– Com os farrapos sangrentos de meu coração,
Zombarei novamente e mais uma vez, e até me satisfazer,
Serei impiedoso e irritante.“Não há nenhuma ternura de avô em mim.
Em minha alma não há nenhum cabelo grisalho.
Agitando o mundo com minha voz trovejante e sorrindo,
Passo por você,
Vistoso, vinte e dois anos mais velho”
Alguns críticos burgueses, que, quinze anos depois do colapso do stalinismo, ainda estão lutando a Guerra Fria, têm tentado atribuir a Shostakovich uma atitude negativa com relação à Revolução Bolchevique desde o próprio início. Não há absolutamente nenhuma base para este ponto de vista. Apesar de não ser um ativista político, o jovem Shostakovich simpatizava claramente de coração e alma com a Revolução de Outubro. Isto se reflete em sua música. Em 1927, ele escreveu sua Segunda Sinfonia com o subtítulo “A Outubro”. Ela foi seguida pela Terceira Sinfonia, dedicada ao Dia do Trabalho, o festival internacional proletário.
A Segunda Sinfonia foi escrita em 1927 para celebrar o décimo aniversário da Revolução de Outubro. Não pode haver nenhum questionamento de que o jovem e idealista compositor teve a intenção de agradar as autoridades soviéticas. Se ele a escreveu sobre este tema foi porque acreditava nele – apaixonadamente. Ela inclui o texto de um poema sobre Lênin de Alexandre Boziensky. Introduzida pela sirene de uma fábrica, termina com as palavras “Outubro”, “A Comuna”, “Lênin”.
Alguém pode dizer que esses trabalhos iniciais – com a exceção da magistral Primeira Sinfonia – continham muito de imaturidade, deselegância e malogros. A Terceira Sinfonia, apresentada em primeiro lugar em Leningrado em 1930, foi, de modo geral, um trabalho prospectivo. Mas é realmente uma confusão bastante incoerente de ideias que não chegam a um todo satisfatório. O jovem compositor ainda estava encontrando o seu caminho, procurando no escuro por seu próprio estilo. E é um direito sagrado de qualquer jovem escritor ou compositor escrever mal às vezes. Somente por meio da tentativa e erro a juventude aprende como viver a vida, sem ser incomodada ao escrever trabalhos de música e literatura. Nenhum grande artista se tornou grande lendo livros de receitas de como escrever ou compor.
Ele também escreveu trabalhos importantes para o balé (“A Idade do Ouro”, “O Parafuso”) e para o cinema (“Nova Babilônia”). Este foi o início de uma longa associação de Shostakovich com o cinema. Todos esses trabalhos iniciais são experimentais e inovadores em caráter, e cheios do espírito dos tempos em que foram escritos. Vemos nesses trabalhos iniciais a influência de Prokofiev, como também de Stravinsky, Hindemith e Krenek. Naquele tempo, não cabia condenar um jovem compositor por escrever música “difícil”, por experimentar ou não modelos usados no exterior. Ele até mesmo musicou uma popular canção ocidental da época, “Chá para Dois”, a qual chamou de “Tahiti-Trot”, que foi incluída em seu balé “A Correnteza Límpida”.
Mas pelo final dos anos 1920 todo o clima político e cultural da URSS estava mudando. A derrota da revolução socialista na Europa como resultado da traição dos dirigentes da social-democracia levou ao isolamento da Revolução Russa em condições assustadoras de atraso. No lugar do entusiasmo revolucionário inicial, os trabalhadores soviéticos caíram na exaustão e apatia. Depois da morte de Lênin em 1924, a burocracia soviética, conduzida por Stalin, tornou-se crescentemente agressiva. Uma nova casta de burocratas carreiristas empurrou os trabalhadores para o lado e ocupou suas posições no Estado e no partido. A derrota e expulsão da Oposição de Esquerda no XV Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) imprimiram o selo oficial sobre a política contrarrevolucionária da burocracia que colocou o poder nas mãos de Stalin e de sua facção.
A reação stalinista
Em 1930, o mais famoso poeta soviético, Maiakovski, que era conhecido como “o tambor da Revolução”, cometeu suicídio. Em seu comovente último poema, escrito logo antes de tirar a própria vida, Maiakovski escreveu: “Sinto-me envelhecendo lentamente”. Estas palavras, em flagrante contraste com o otimismo juvenil de “Uma Nuvem de Calças”, refletiam o desespero de um poeta revolucionário diante da crescente reação burocrática que estava se espalhando como um veneno por toda a sociedade soviética, paralisando todas as iniciativas e estrangulando todos os elementos de democracia operária, ao mesmo tempo em que sufocava a liberdade artística. Maiakovski não poderia se reconciliar com o stalinismo. Seu suicídio foi um ato de protesto.
Quando tinha 30 anos de idade, em 1936, Shostakovich era conhecido por duas óperas e três balés inteiros, além de numerosas partituras para o teatro e cinema, enquanto que somente uma sinfonia puramente orquestral e um quarteto de cordas tinham sido apresentados. Mas depois desta meteórica ascensão à fama, Shostakovich agora se encontrava desesperadamente (e perigosamente) em descompasso com o novo espírito dos tempos. Ele já tinha iniciado os trabalhos de sua Quarta Sinfonia, com seus tons escuros e sinistros. Mas os acontecimentos forçaram-no a abandonar o projeto e a sinfonia foi guardada na gaveta. Ela teve sua primeira apresentação três décadas mais tarde.
Enquanto ainda trabalhava em sua segunda sinfonia, Shostakovich tomou um novo rumo: a ópera. O arquétipo do burguês médio tornou-se agora o objeto de sua fértil experimentação. Ele escreveu uma ópera satírica, “O Nariz”, baseada na famosa história de igual nome do grande novelista russo-ucraniano Nikolai Gogol. O tema deste pequeno conto tem tonalidades anti-burocráticas muito claras. O conto aparenta ser uma pura fantasia: um burocrata desperta uma manhã e descobre que tinha perdido o seu nariz. Procura por ele em todos os lugares e eventualmente percebe em sua procura que o seu nariz está vestido com o uniforme de um oficial superior. Finalmente, o seu nariz reaparece em sua própria face. No conto de Gogol este é o final. Mas, na ópera de Shostakovich, há um epílogo em que o burocrata diz: “Foi somente um pesadelo, mas a realidade é até mesmo pior”.
Em um debate sobre a ópera, Shostakovich foi perguntado se estava preocupado em ser entendido. Ele replicou: “A julgar pela audiência de hoje, sim: houve muitos aplausos e nenhuma vaia”. Ele prosseguiu para dizer especificamente que esta era uma ópera contra a burocracia, e que, como artista soviético, ele estava unicamente interessado em escrever música para os trabalhadores e camponeses. “Todos estão pensando em seu próprio ‘nariz’, quando deveriam estar pensando na causa comum” (esta entrevista está reproduzida em um interessante filme soviético sobre o compositor chamado “A Sonata para Viola”).
Isto levou o jovem compositor a sua primeira dificuldade com as autoridades soviéticas. Já tinham passado os tempos em que um artista ou compositor soviético poderia usar o seu talento para ridicularizar a nova casta de novos-ricos burocratas com impunidade. O Partido Bolchevique sob Lênin e Trotsky promoveu a liberdade artística. Escritores abertamente contrarrevolucionários poderiam ter seus trabalhos sobre a área política proibidos (esta era a única exceção), não seus trabalhos na área artística. Devemos ter em mente que o país estava nesse momento se recuperando da sangrenta guerra civil. Mesmo assim, nunca ocorreu a Lênin e Trotsky imporem o controle totalitário do Estado sobre a literatura e a arte. Eles se limitaram a polemizar contra aquelas tendências na arte que eles consideravam negativas.
Sob Stalin tudo mudou. Tendo suprimido toda oposição no interior do Partido Comunista (o Partido Bolchevique sempre se caracterizou por sua vida interna animada e pelo debate livre, até mesmo nos mais difíceis períodos), Stalin começou a introduzir o controle burocrático das artes, das quais ele era profundamente desconfiado. A criação da RAPM (Associação Russa dos Músicos Proletários) foi uma tentativa de exercer o mesmo controle sobre os compositores soviéticos que já tinha sido imposto sobre os escritores através de associação similar (RAPP). Em 1929, a ópera de Shostakovich foi criticada como “formalista” por esta organização stalinista de músicos, e foi submetida a revisões hostis. Os críticos de “O Nariz” estavam furiosos, mas isto era somente uma suave antecipação dos ataques ideológicos que logo caíram sobre a cabeça do compositor.
Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk
O momento de sua queda foi com sua ópera “Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk”. Baseada na novela do escritor russo Leskov, escrita no século 19, teve sua primeira apresentação no teatro Maly de Leningrado, em janeiro de 1934, e obteve êxito imediato, tanto com o público quanto, pelo menos no início, em nível oficial. Disseram que era “o resultado do êxito geral da construção do socialismo, da política correta do Partido” e que como ópera “somente poderia ter sido escrita por um compositor soviético influenciado pelas melhores tradições da cultura soviética”. Mas as nuvens da tempestade já estavam sendo reunidas.
No mesmo ano em que “Lady Macbeth” teve sua primeira apresentação, acontecimentos dramáticos estavam se preparando na União Soviética. Stalin tinha vencido no conflito interno do Partido. Mas, como qualquer usurpador, ele se sentiu inseguro. Ele via inimigos por todos os lados, em particular o secretário da organização do partido de Leningrado, Kirov. Em 1934, Stalin organizou o assassinato de Kirov e, em seguida, responsabilizou um “Centro Trotskista-Zinovievista” que nunca existiu. O assassinato de Kirov foi o sinal para uma onda de repressão que levou à prisão de centenas de milhares de pessoas, inclusive de leais partidários de Stalin, que foram acusados de trotskismo e levados sem cerimônia às prisões e campos de trabalho.
Estava sendo criada uma atmosfera de terror que penderia como um pesadelo sobre a sociedade soviética. Mas nesta etapa Stalin ainda estava cautelosamente avaliando o seu caminho. Ele sequer tinha confiança suficiente para executar seus antigos rivais, os Velhos Bolcheviques, Kamenev e Zinoviev. Depois que eles confessaram mais uma vez crimes que não tinham cometido e de terem caluniado a si próprios nos julgamentos-espetáculo de Stalin, foram “recompensados” com a permissão de ficar vivos na prisão. Mas não por muito tempo. Em 1936, a consolidação da casta burocrática dominante exigia métodos novos e mais severos. Novos julgamentos-espetáculo foram organizados, nos quais não somente Kamenev e Zinoviev, como também toda a velha guarda leninista foram exterminados fisicamente.
O ano de 1936 foi funesto para Shostakovich e para o povo da URSS. “Lady Macbeth” agora estava em cartaz no teatro Bolshoi em Moscou. Isto não poderia ter ocorrido em momento pior. O ano começou com uma campanha de ataques contra Shostakovich nas páginas de Pravda, instigada pelo próprio Stalin. A primeira advertência agourenta foi quando o Pai dos Povos assistiu uma apresentação de “Lady Macbeth” e se retirou. Um artigo aparecido no Pravda, intitulado “Confusão em vez de Música”, condenava “Lady Macbeth” como formalista. “É tudo tosco, primitivo e vulgar”, declarava o artigo, “A música grasna, grunhe e resmunga”. É muito provável que o autor do artigo fosse Stalin. Na atmosfera que prevalecia àquela época, isto equivalia a uma longa sentença de trabalhos forçados – ou coisa pior.
As objeções de Stalin à ópera eram apenas parcialmente estéticas. É verdade que seus gostos artísticos e musicais, assim como os da casta burocrática que ele representava, eram primitivos, filistinos e conservadores. A reação burocrática contra a Sturm und Drang da Revolução de Outubro expressava-se na aversão do establishment stalinista à experimentação e inovação na arte, na literatura e na música. Neste caso, o mau gosto não é apenas uma característica pessoal, mas o reflexo de tendências sociais, de mudanças políticas e de interesses de classe e casta.
Mas não era apenas da modernidade da música na ópera de Shostakovich que Stalin desgostava. Era do tema. Através da história da sociedade de classes, a escravização da mulher pelo homem proporcionou firmes alicerces para a família, e a família proporcionou firmes alicerces para o Estado, isto é, para a opressão organizada de uma classe (ou casta) por outra. A Revolução de Outubro inscreveu em sua bandeira a emancipação da mulher, e isto se manteve como sua promessa. Como em todas as outras esferas, a vitória da contrarrevolução burocrática significou a liquidação das conquistas políticas de Outubro. Lascívia, casos de amores ilícitos e assassinatos não eram os temas mais apropriados para os stalinistas que estavam pregando a necessidade de uma “nova” e “socialista” (isto é, completamente conservadora e burguesa) moralidade, baseada na família.
A personagem central, Katerina Izmailova, que, presa na armadilha de um casamento sem amor por um comerciante, o assassina, é mostrada com uma luz de simpatia, como uma vítima das circunstâncias. Mas havia muito mais do que isto. Na ópera de Shostakovich, a polícia e as autoridades estão expostas a uma luz negativa. A polícia é uma tirana insensível, envolvida na extorsão e na chantagem (exatamente como o é atualmente na Rússia). Ainda pior: um grupo de prisioneiros aparece no palco acorrentado, sendo conduzido pelas estepes sem fim da Rússia ao exílio siberiano. No ano de 1936, isto não era o tipo de coisas que os stalinistas gostavam de mostrar nos palcos.
Shostakovich tentou defender a si próprio e a sua ópera. “Minha compreensão de Lady Macbeth é que os crimes de Katerina Izmailova são um protesto contra a atmosfera em que ela vive: contra a sinistra e sufocante atmosfera do meio mercantil do último século”. Mas a mentalidade e moralidade do meio burocrático da Rússia stalinista não estavam assim tão longe do ambiente mencionado. O burocrata russo típico do tempo de Stalin era rude, ignorante, limitado e provinciano como o comerciante da novela de Leskov. O próprio Stalin compartilhava da mentalidade, moralidade e gostos deste meio. A contrarrevolução política stalinista tinha suas raízes mergulhadas na reação pequeno-burguesa à Revolução de Outubro.
“Inimigo do Povo”
A liquidação da democracia leninista dos trabalhadores foi acompanhada, necessariamente, pela imposição de normas totalitárias em todos os níveis da vida social e cultural. A primeira vítima do novo regime totalitário burocrático foi a liberdade artística. A burocracia exigia obediência e conformismo e não originalidade e livre debate sobre arte. Além do mais, em um regime totalitário, onde o debate político e a crítica estão silenciados e a oposição é perseguida com a pesada mão do Estado, a arte, a literatura e a música podem desempenhar o papel de uma oposição subterrânea em que a crítica à burocracia é propagada numa linguagem oculta que o povo acostumado a ler nas entrelinhas pode entender. A União de Compositores Soviéticos foi formada especialmente para controlar os compositores e transformá-los em servos obedientes da burocracia.
Logo após o aparecimento do artigo de Pravda, Shostakovich começou a sentir os seus efeitos. Os picaretas do Partido na União dos Compositores começaram a denunciar não somente “Lady Macbeth”, mas também outros trabalhos de Shostakovich, como “O Nariz” e “A Correnteza Límpida”. Os pedidos para sua música começaram a escassear, e sua renda caiu em cerca de três quartas partes. Naquelas raras ocasiões em que seus trabalhos tinham apresentação pública, seu nome aparecia em cartazes de advertência, como “Dimitri Shostakovich – Inimigo do Povo”. A Quarta Sinfonia chegou até a fase de ensaio, mas no clima político prevalecente sua apresentação pública estava fora de questão. Sua primeira apresentação pública ocorreu em 1961, embora uma sua redução para piano tenha sido publicada em 1946.
Shostakovich era agora um grande perigo. A primeira condenação de Shostakovich coincidiu com o início do Grande Terror, em que centenas de milhares de pessoas desapareceram nos Gulags de Stalin, e a maioria deles jamais reapareceu. Muitos dos amigos e parentes do compositor foram aprisionados ou mortos. Em 1937-38, os expurgos de Stalin alcançaram um clímax sangrento. O famoso diretor de teatro, Vsevolod Meyerhold, com quem Shostakovich tinha colaborado, foi enviado para um campo de concentração, onde morreu em 1940. Outros escritores e artistas soviéticos notáveis também caíram vítimas dos expurgos, inclusive Isaak Babel, o autor de “Cavalaria Vermelha”, o poeta Osip Mandelshtan e muitos outros menos conhecidos. Mossolov, o compositor de “A Fundição de Ferro”, também foi aprisionado.
Os expurgos se estenderam ao topo do Exército Vermelho. Entre as vítimas encontrava-se o Marechal Tukachevsky, o herói da guerra civil e gênio militar. Considerando que ele um dia ajudara Shostakovich, foi este um momento de perigo extremo. A partir desse momento, ele estava se equilibrando numa precária corda bamba sobre um abismo sem fundo. A qualquer momento ele poderia despencar e nunca mais ser visto. Ele costumava levar uma pequena mala de viagem com ele de prontidão para a prisão que ele esperava acontecer de uma hora para outra.
A Quinta Sinfonia
A resposta do compositor a essas denúncias foi a Quinta Sinfonia, cujo idioma musical era mais conservador e menos moderno que seus trabalhos anteriores. Apesar disso, é um trabalho absolutamente genial. Foi um êxito imediato e permanece como um de seus trabalhos mais populares. Isto silenciou temporariamente seus críticos. Dizem que o compositor descreveu a Quinta Sinfonia como “a resposta de um artista soviético a uma crítica justa”. Isto é mentira. Shostakovich nunca proferiu estas palavras evasivas, que foram inventadas por algum lambe-botas e picareta stalinista. Este nobre trabalho certamente marcou uma mudança de direção no estilo musical do compositor, mas com certeza nenhum declínio de padrão. Na verdade, a despeito de seu aparentemente final triunfal, ela tem um caráter profundamente trágico.
Este foi um período particularmente negro na história da União Soviética, quando Stalin falava de uma “vida feliz”, enquanto a loucura da coletivização forçada causava uma fome que matou em torno de 10 milhões de pessoas. Stalin sistematicamente pisoteava todos os princípios do leninismo e da democracia soviética. A constituição stalinista de 1936 foi também considerada como “a mais democrática constituição do mundo”. A ironia, portanto, estava implícita em toda a situação.
A vitória da burocracia stalinista encontrou sua expressão no campo da arte com a chamada teoria do “realismo socialista”. Esta expressão era um contrassenso. Não era nem socialista nem realista, mas antes uma espécie de monótono conformismo e conservadorismo que Stalin e a burocracia apresentaram como uma espécie de “arte” complacente e superficial, que o seu limitado entendimento e estreito ponto de vista poderiam atingir, enquanto ao mesmo tempo pintava a vida soviética em cores róseas. O próprio Stalin gostava de assistir filmes em uma sala especial dentro do Kremlin. Ele gostava particularmente de assistir filmes que exibiam contentes e bem nutridos fazendeiros coletivos num momento em que a zona rural se encontrava sofrendo o aperto de uma fome terrível em que milhões estavam morrendo de inanição.
Em geral, tal arte não se elevava acima do gosto duvidoso e brega. Hoje as imagens presunçosas de trabalhadores contentes e sorridentes fazendeiros coletivos circundados por um mar ondulante de campos de trigo não despertam nenhum outro interesse além da curiosidade ou um sorriso de desprezo. Mas isto estava de acordo com os propósitos da burocracia, para quem a arte era unicamente mais um departamento da máquina de propaganda totalitária.
Como o “realismo socialista” se aplicava à música? As autoridades não contestavam as contradições na música (afinal, o Pai dos Povos tinha determinado – em flagrante contradição com Marx e Lênin – que a luta de classes se intensificaria enquanto o comunismo mais se aproximava). Mas todas essas contradições podem ser satisfatoriamente resolvidas no último movimento. Da mesma forma, todos os filmes e novelas soviéticos devem ter um final feliz. O fato de que na vida nem todo final é feliz e que, sob Stalin, muitas pessoas terminaram muito mal, absolutamente não dizia respeito aos censores burocráticos e cães de caça da União dos Compositores.
A Quinta Sinfonia não é uma celebração da “vida feliz”. É um trabalho transbordante da mais intensa tragédia e sofrimento. Ela não é meramente a tragédia pessoal e o sofrimento de um indivíduo, e embora seja uma declaração intensamente pessoal, reflete, em cada barra ou frase, a maior tragédia coletiva sofrida por todo o povo soviético até este tempo. O primeiro movimento é como um homem que atravessa uma paisagem estéril e desolada, como a paisagem da lua. Mas é no sublime movimento lento (“Largo”) quando o sentimento de tragédia se torna quase intolerável. Apenas o último movimento dá a impressão de um “final feliz” com seu progressivo tema de marcha à frente. Mas isto é uma declaração irônica. Ele guarda tanta relação com o resto da sinfonia quanto os discursos de Stalin sobre a “vida feliz” mantinham com a severa realidade enfrentada pela maioria dos cidadãos soviéticos daquele tempo.
A ironia do final da Quinta Sinfonia foi entendida por muitas pessoas. O famoso maestro Kurt Sanderling, assistente de Mravinsky durante 1941-1960, disse: “Penso que para nós contemporâneos, que conheceram e trabalharam com Shostakovich, nunca foi difícil interpretar seus trabalhos junto com seus duplos significados. Para nós, tudo isto era muito claro… A Quinta Sinfonia foi o primeiro trabalho contemporâneo com o qual eu me defrontei (na URSS) e tive a seguinte impressão: sim, é exatamente isto; isso é a nossa vida aqui… O chamado ‘triunfo’ no final – nós entendemos o que ele estava dizendo. E isto não era o ‘triunfo’ dos poderosos, daqueles no poder”.
O contraste entre as proclamações oficiais e a vida do povo era a maior ironia de todas. Isto se refletia na música de Shostakovich. Mais tarde, o compositor disse do final da Quinta Sinfonia que ele era como se alguém estivesse nos batendo na cabeça, gritando: “Você deve se regozijar! Você deve se regozijar!”. Em outras palavras: ele está impregnado de ironia e de dupla mensagem. Doravante a ironia tornou-se uma parte essencial da música de Shostakovich – particularmente as sinfonias. Não é acidental que foi naquele tempo que Shostakovich compôs o primeiro de seus quartetos de cordas. O mundo mais íntimo da música de câmara permitia-lhe experimentar e expressar ideias que ele não arriscaria em suas sinfonias.
Dos comentários do próprio compositor, sabe-se que, exatamente antes da Segunda Guerra Mundial, ele estava se preparando para escrever uma “Sinfonia para Lênin” em escala larga, com coros, nas linhas da Nona de Beethoven, e texto baseado no poema épico de Maiakovski, “Lênin”. Ele até mesmo escreveu a um jornal do soviete que tinha iniciado “uma tarefa de imensa responsabilidade, expressar em sons a imagem imortal de Lênin”. Mas a sinfonia nunca foi escrita. Segundo os críticos anticomunistas, isto aconteceu porque Shostakovich estava “alérgico” para escrever música sobre Lênin. Isto é inteiramente falso. Shostakovich se opunha amargamente a Stalin e tudo que ele representava. Mas permaneceu fiel aos ideais do socialismo e da Revolução de Outubro.
Não há absolutamente nada que possa sugerir que ele identificava Stalin com Lênin, a usual calúnia dos historiadores burgueses da atualidade, determinados a manchar o nome dos bolcheviques ligando-os aos crimes de Stalin. Esses falsificadores da história “esquecem” convenientemente um pequeno detalhe: que, para consolidar seu regime burocrático, Stalin teve de destruir o partido de Lênin e de exterminar quase todos os seus líderes. A razão por que Shostakovich nunca escreveu a sua “Sinfonia para Lênin” era que o contraste entre as ideias de Lênin e da Revolução de Outubro e a repulsiva realidade do stalinismo era tão grande, as imagens dos expurgos antibolcheviques tão recentes, para permitir que ele fizesse isso. Shostakovich era um homem de princípios e a hipocrisia era inteiramente estranha a ele.
Como vimos, Shostakovich evitou isto na Quinta Sinfonia ao escrever uma obra trágica com um final ficticiamente feliz. Pode-se dizer que todas as suas sinfonias depois da Quinta (esta, inclusive) contêm de alguma forma uma crítica ao regime stalinista. Quando a Sexta Sinfonia foi apresentada em novembro de 1939, junto com a maravilhosa cantata de Prokofiev, Alexandre Nevsky, a audiência ficou desapontada. Eles pesquisaram detidamente para encontrar algumas pistas de Lênin nela, mas não acharam nada. A Sexta Sinfonia é uma obra estranha, tanto no que respeita à forma quanto ao conteúdo.
Ela começa com o primeiro movimento prolongado e trágico, no qual o compositor perscruta o abismo e olha fixamente para o próprio inferno. A isto se segue movimentos curtos e enigmáticos, cheios de matizes sinistros e ameaçadores, em que as contradições iniciais não podem ser mencionadas por terem sido resolvidas. Pelo contrário, elas estão mais evidentes do que em qualquer outro de seus trabalhos. A principal característica destes movimentos é o sarcasmo cáustico – uma das armas mais importantes de Shostakovich. Não há nenhuma sombra de pesar aqui, nenhuma concessão ao “realismo socialista”, apenas um ato de aberto desafio. Isto não era definitivamente o que as autoridades tinham em mente quando falaram de “uma resposta de um artista soviético à crítica justa”. Mas, nesse meio tempo, acontecimentos dramáticos estavam se preparando no cenário mundial que varreriam todas essas questões para o lado.
A Segunda Guerra Mundial
Depois do pesadelo dos expurgos, novos e ainda maiores horrores estavam sendo preparados para o povo soviético. A criminosa política de Stalin do “social-fascismo” levou Hitler à vitória na Alemanha, o que colocou a URSS sob mortal ameaça. Mais tarde, sua traição à Revolução Espanhola removeu o último obstáculo a uma nova guerra na Europa. Sua tentativa de evitar um choque com a Alemanha nazista através da assinatura de um pacto com Hitler entrou em colapso em 1941, quando Hitler atacou a União Soviética, infringindo terríveis perdas ao Exército Vermelho, que se encontrava totalmente despreparado. Quando soube do ataque, Stalin inicialmente recusou-se a acreditar e ordenou ao Exército Vermelho não reagir. Em consequência, muitos dos aviões soviéticos foram destruídos no solo e milhões de soldados do Exército Vermelho foram capturados sem dar um tiro e enviados para os campos de morte nazistas dos quais poucos saíram vivos.
Um dos mais terríveis e, ao mesmo tempo, inspiradores episódios da guerra foi o cerco de Leningrado. Shostakovich, corajosamente, permaneceu em Leningrado durante o cerco, quando muitas pessoas morreram de fome, de frio ou das bombas alemãs. Embora pudesse ter deixado a cidade, Shostakovich decidiu permanecer e compartilhar o destino de seu povo. O compositor chegou a se alistar numa brigada de bombeiros. Ele foi destaque na capa de uma revista americana, completamente vestido como bombeiro. Neste momento, ele adquiriu fama internacional com a sua Sétima Sinfonia (mais conhecida por “Leningrad”). Ele escreveu os primeiros três movimentos em sua cidade natal sitiada. Apenas quando recebeu ordens diretas de Moscou para deixar Leningrado, ele relutantemente concordou em ser evacuado.
Alguns “engenhosos” intérpretes sustentaram que a Sétima Sinfonia representa um ataque ao stalinismo ou ao totalitarismo em geral. Alguns desses comentaristas chegaram a afirmar que Shostakovich teria dado as boas-vindas a uma vitória alemã! Para conclusões tão insanas se dirige o fanático anticomunismo de algumas pessoas. A própria ideia de que Shostakovich poderia dar boas-vindas à vitória de Hitler é uma escandalosa calúnia ao homem que, durante toda sua vida, defendeu ideais progressistas e sempre foi um compenetrado patriota soviético, a despeito de seu ódio a Stalin e à burocracia. Logo que soube das notícias do ataque de Hitler à URSS, ele se ofereceu como voluntário para o serviço militar, mas foi recusado devido a sua pobre visão. Ele participou ativamente do esforço soviético de guerra, servindo como guarda florestal na sitiada cidade de Leningrado e participando de programas de rádio para o povo soviético. Finalmente, em outubro de 1941, o compositor e sua família foram evacuados para Kuybishev (agora, Samara), onde a sinfonia foi concluída.
Qualquer um que ouça Shostakovich falando de uma plataforma denunciando a agressão nazista contra a URSS (no filme “Sonata para Viola”) não pode ter nenhuma dúvida sobre o seu apaixonado ódio ao nazismo e sobre sua determinação em defender sua pátria e seu povo da barbárie de Hitler. Esta é a mensagem central desta notável sinfonia. Shostakovich estava expressando seus mais profundos sentimentos sobre a guerra. Ele disse: “A música lançou-se para fora de mim. Não pude segurá-la”. Ele trabalhou febrilmente para terminar a sinfonia, permanecendo em sua mesa dia e noite, até mesmo durante os ataques aéreos. Todos, menos o último movimento, foram escritos na cidade cercada e constituem uma comovente expressão dos sofrimentos e heroísmo do povo de Leningrado e de toda a União Soviética.
O primeiro movimento da sinfonia inclui uma célebre passagem na qual o tema da marcha é constantemente repetido, enquanto vai ficando mais alto, à maneira do “Bolero de Ravel”. Diz-se que o tema representa o avanço das forças do exército nazista. O próprio tema tem um caráter banal, refletindo a vacuidade espiritual e estupidez do fascismo. O poderoso movimento final é dominado por um sentimento de luta contra vantagens sobre-humanas, em que o espírito humano finalmente triunfa contra a tirania e a barbárie. Ela frequentemente cita as quatro notas que, no código Morse, significa o “V” da vitória, e que, por coincidência, são também usadas por Beethoven no famoso primeiro movimento de sua Quinta Sinfonia.
Ela obteve êxito imediato, não somente na URSS, mas internacionalmente (sua première nos EUA foi conduzida pelo grande Arturo Toscanini) e se tornou um símbolo da heroica resistência do povo soviético à barbárie nazista. Mas, para Shostakovich, ela foi muito mais do que isto. Ele intitulou o último movimento de “Vitória e uma Bela Vida no Futuro”. Graças ao esforço sobre-humano do povo soviético (fielmente refletido em sua música) e à superioridade da economia nacionalizada e planificada, a URSS foi sem dúvida vitoriosa. Mas as esperanças do compositor de que isto poderia representar uma melhor vida no futuro cedo foram frustradas.
O período do pós-guerra
Durante a guerra, Stalin foi obrigado a relaxar, pelo menos parcialmente, o seu controle total. Os oficiais do Exército Vermelho aprisionados nos expurgos foram precipitadamente libertados e colocados em posições de comando na linha de frente, onde serviram com notável bravura. Como o Exército Vermelho empurrava gradualmente os alemães para trás, revertendo a maré e, em seguida, marchando para o coração da Europa, havia um ânimo geral de otimismo de que as coisas poderiam melhorar depois da guerra. Mas a ilusão não perdurou.
Na primavera de 1943, Shostakovich e sua família mudaram-se para Moscou. Por este tempo a maré já tinha mudado e o Exército Vermelho estava avançando em todas as frentes. Stalin esperava que os compositores soviéticos escrevessem heroicas músicas patrióticas para inspirar o povo a lutar. Mas a nova sinfonia de Shostakovich (a Oitava) era completamente diferente da Sétima, que descrevia uma heroica (e definitivamente vitoriosa) luta contra a adversidade. Em contraste, a Oitava Sinfonia daquele ano é uma obra totalmente sombria. Ela é como a vasta paisagem da Rússia, devastada pela guerra, e não somente pela guerra.
O movimento muito longo se eleva firmemente a um clímax fragmentado, que é como um grito de protesto expressando inimaginável dor e tristeza. Não é o que autoridades queriam ouvir. De que trata realmente esta obra? Seus mais importantes temas formam uma mistura de sombrias tragédias e violentas lutas. O rápido e violento scherzo é considerado por alguns como um retrato de Stalin. Isto é possível. A obra era, certamente, um desafio às autoridades, que a identificaram como tal. A sinfonia foi proibida até 1960. Ela foi seguida pela Nona Sinfonia (1945) – novamente outro ato de desafio. Stalin e a burocracia estavam esperando música triunfal – um “hino” à vitória.
Eles esperavam algo completamente diferente. Eles tinham mesmo sugerido a Shostakovich que ele deveria usar grandes forças orquestrais e um grande coro. Apesar disso, Shostakovich compôs a mais curta de todas as suas sinfonias, com somente 25 minutos, enquanto que a Sétima e a Oitava demoravam mais de uma hora. Ela é uma obra plena de ironia da primeira à última linha. Em troca, a Nona Sinfonia é cômica, irônica e mesmo trivial. O primeiro movimento é como uma criança malcriada torcendo o nariz para as autoridades. Mas o movimento lento é cheio de ansiedade, enquanto os outros movimentos são sinistros, ameaçadores, mesmo diabólicos. O último movimento assemelha-se a uma gigantesca e forte risada, como se dissesse: o que me importa todo este pomposo absurdo? O resultado era previsível.
Nos desoladores anos após o final da guerra, Stalin decidiu pôr um freio novamente. No campo das artes, ele usou os serviços do famoso Zhdanov, que lançou um ataque selvagem contra os artistas, escritores e compositores que não se comportavam de forma totalmente servil em relação ao regime. Os mais proeminentes dos denunciados foram os dois mais notáveis compositores soviéticos, Prokofiev e Shostakovich. Em 1948, Shostakovich foi novamente denunciado como “formalista”. Imediatamente um exército de patifes, compositores de terceira categoria, funcionários servis da União dos Compositores, críticos e picaretas de todo tipo, lançaram-se sobre as vítimas dos ataques de Zhdanov como um bando de lobos famintos esforçando-se por destroçar um animal indefeso.
Depois das resoluções do Comitê Central do Partido Comunista de 10 de fevereiro, ocorreram numerosas manifestações (algumas delas continuaram por semanas), reuniões e publicações da imprensa para denunciar os que pertenciam “à linha antinacional e formalista na música”. Shostakovich teve de ficar calado enquanto baldes de lama eram lançados sobre sua cabeça. Ele foi chamado de compositor com “um sentido subdesenvolvido de melodia”, produtor de música “asquerosa”, de cacofonias e “cérebro retorcido”.
O crítico Afanasiev descreveu a sua Nona Sinfonia como “uma irrefletida e formal obra, indigna de nossa música soviética”. O compositor Zakharov (de cujas obras ninguém mais se lembra hoje) reclamou que era necessário colocar músicas patrióticas para inspirar o povo trabalhador soviético a reconstruir mais rapidamente e exigiu saber de que forma a música de Shostakovich cumpriria aquela função. Em vão o compositor protestou contra a pretensão de que todo o seu trabalho fosse destinado a expressar os sentimentos do povo soviético. Esta não era a resposta que seus críticos esperavam. A revista Kultura I Zhizn’ asseverou que Shostakovich era “incapaz de refletir o espírito do povo soviético”. Mas o objetivo real do “realismo socialista” não era de forma alguma expressar os verdadeiros sentimentos da verdadeira classe trabalhadora soviética, mas o de expressar as necessidades e cumprir as ordens da casta burocrática dominante. O problema da música de Shostakovich não era o de ter falhado na expressão dos verdadeiros sentimentos do povo soviético, mas o de tê-los expressado à risca.
Shostakovich foi retirado de seu posto no Conservatório de Moscou. A maioria de suas obras foi banida, ele foi forçado a se arrepender publicamente e sua família teve os privilégios retirados. Yuri Lyubimov disse que, naquele momento, “ele esperava por sua prisão a cada noite na plataforma do elevador, de forma que pelo menos a sua família não seria perturbada”. Shostakovich continuou a compor música de câmara, mas não escreveu outra sinfonia até a grandiosa Décima, escrita em 1953, o ano da morte de Stalin.
Depois do ataque de Zhdanov, Shostakovich foi compelido a se retirar para a sombra. Ele não escreveu nenhuma sinfonia e suas composições eram repartidas por filmes musicais para pagar as contas e trabalhos “oficiais” destinados a assegurar a sua reabilitação. Durante os próximos anos, suas composições sérias (que incluem obras importantes como o Primeiro Concerto de Violino) tiveram de ficar engavetadas até tempos mais favoráveis. A despeito da condenação de Zhdanov, alguns de seus filmes musicais foram aclamados pela crítica, como “A Jovem Guarda” e “Cinco Dias e Cinco Noites” – o último sobre a cidade alemã de Dresden. Mesmo nestas peças secundárias, o humanismo de Shostakovich brilha através de todas as misérias da guerra.
As restrições às músicas de Shostakovich e ao seu sustento foram parcialmente relaxadas em 1949, a fim de assegurar a sua participação em uma delegação soviética aos EUA. A Guerra Fria já se encontrava bem encaminhada e as autoridades soviéticas estavam ansiosas por provar ao mundo a superioridade da URSS no campo da cultura. Se Shostakovich fosse um antissoviético virulento como alguns sustentam, aqui estava a oportunidade de ouro para ele desertar. Mas durante toda sua vida Shostakovich não mostrou nenhum interesse em emigrar, nem expressou qualquer admiração particular pelo modo de vida capitalista. Ele demonstrava um vivo interesse pela música dos compositores do ocidente, como Britten e Hindemith, mas sua natural afinidade pelo trabalho de seus colegas músicos era tudo o que lhe interessava no ocidente.
Os que atacam Shostakovich do ponto de vista de um raivoso anticomunismo apontam para o fato de que ele estava obrigado a fazer concessões ao regime com o objetivo de sobreviver e ganhar em troca um pedaço de pão. De fato, parece que a única coisa que salvou Shostakovich do campo de prisioneiros (do qual, dado o frágil estado de sua saúde, ele provavelmente não teria saído vivo), foi o fato de que Stalin gostava de seus filmes musicais. O Pai dos Povos, como já dissemos, era um fervoroso aficionado de cinema e regularmente assistia filmes em seu cinema privado no Kremlin. Gostava particularmente de filmes em que ele desempenhava um papel dirigente – mesmo que isto não guardasse a menor semelhança com os fatos. Ele necessitava de um grande compositor para escrever a música para tais filmes, e Shostakovich era o melhor candidato para o emprego.
Ele escreveu a música de vários filmes que apresentavam Stalin sob luz lisonjeira. Sua cantata, “Canção das Florestas”, aplaudiu Stalin como o “grande jardineiro”. No filme “O Inesquecível ano de 1919”, para o qual Shostakovich escreveu a música, Stalin é apresentado como o líder do Exército Vermelho na Guerra Civil, embora de fato fosse Trotsky quem estava à cabeça do Exército Vermelho. Não há a menor dúvida de que o compositor tapou o seu nariz enquanto fazia tais concessões. Mas ele realmente não tinha nenhuma alternativa se quisesse sobreviver. A natureza maliciosa de Stalin – da qual Lênin comentou em seu testamento suprimido – foi revelada com o seu tratamento das famílias daqueles que ele via como inimigos. A esposa de Prokofiev foi mandada à prisão depois que seu marido foi denunciado por Zhdanov.
Deve-se ter em conta que Shostakovich não era um político ativista, mas um compositor, ainda que um compositor com um profundo senso de justiça e consciência social que o fizeram expressar os problemas mais importantes de seu tempo em música profundamente sentimental e imponente. Apesar de ser um homem tímido e reservado, ele mostrou coragem pessoal enorme e grande integridade em combater o regime stalinista, enquanto simultaneamente produzia trabalhos que representam o nível mais alto de criação musical do século 20, não somente na URSS, mas no mundo. Mas houve tempos em que o peso de sua luta solitária provou ser demasiado para ele, o que forçou a adotar uma tática de retirada.
Marina Sabinina descarta os seus trabalhos corais “falsamente patrióticos” com tendo “muito pouco em comum com o seu estilo real” e descreve os motivos de Shostakovich para fazer tais “repulsivos e hipócritas filmes como “O Inesquecível ano de 1919”, “A Queda de Berlim” e “O Encontro no Elba” como “compromissos que o repeliam como artista e que foram amargos e humilhantes para ele” (ela agrega que ele tinha de escrever essas coisas, mesmo que o “violentassem”, porque ele não tinha nenhum recurso para sobreviver naquele tempo). Ela confessa ter descartado “passagens inteiras” de seu livro de 1976 sobre as sinfonias de Shostakovich com o objetivo de vê-lo publicado: “Eu teria gostado de mostrar fielmente a tragédia de seu gênio que sofria perseguições de rudes nulidades que tentavam pisoteá-lo e esmagá-lo; e que tinha de comprar o direito de ser ele mesmo com algumas concessões”.
O compositor soviético Rodion Shchedrin escreveu na revista Gramophone: “Vocês no Ocidente têm algumas vezes uma visão muito ingênua. Vocês pensam em preto e branco. As relações com as autoridades foram sempre complexas para Shostakovich e Prokofiev, bem como para os outros. Eu me lembro de ter tocado em uma apresentação de Zdravitsa (também conhecida como “Aclamação para Stalin”) de Prokofiev, por exemplo. Mas você não chegaria a um acordo se tivesse de salvar a sua família?”.
Os reacionários anticomunistas que o responsabilizam por isto não têm razão e são mal-intencionados. Se um homem como Christian Rakovsky, um experimentado veterano do movimento revolucionário, um homem com uma profunda compreensão da teoria marxista, se mesmo um homem como este capitulou perante Stalin sob pressões intoleráveis, como pode alguém esperar de um homem como Shostakovich resistir à imensa pressão da máquina repressiva de Stalin? Shostakovich se dobrou à pressão, mas nunca se quebrou. Ele permaneceu fiel a si mesmo e intransigentemente hostil ao stalinismo até o fim dos seus dias.
Significa isto que Shostakovich era um oponente pró-burguês do socialismo, como sustenta outra escola de pensamento ocidental? Não há a menor evidência para apoiar esta visão. Shostakovich não era nem secretamente stalinista nem um contrarrevolucionário do tipo de Solzhenitsyn. Ele era um adepto leal dos ideais socialistas da Revolução de Outubro, mas viu que esses ideais estavam em aberta contradição com a caricatura burocrática stalinista. A morte de Stalin pavimentou o caminho para a reabilitação oficial de Shostakovich. Mas não foi o fim de sua luta contra a burocracia. Ele secretamente começou a escrever uma cantata chamada “Rayok” em maio de 1948. Esta foi uma aguda sátira ao “ativismo musical” do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que permaneceu guardada secretamente até depois da morte do compositor em 1975.
A luta de Shostakovich contra o antissemitismo
O antissemitismo caracterizou de forma destacada cada etapa da política contrarrevolucionária stalinista. Como nos tempos do czarismo, o antissemitismo foi usado como arma para distrair as massas de seus mais prementes problemas. Embora, paradoxalmente, Stalin tivesse apoiado a instalação do estado de Israel, com o objetivo de enfraquecer o controle do imperialismo britânico no Oriente Médio, ele mais uma vez usou o antissemitismo como uma cobertura para um novo expurgo depois da guerra. A chamada campanha contra os “cosmopolitas sem raízes” (isto é, os judeus) culminou com o conhecido “complô dos médicos”. Os médicos pessoais de Stalin, que por acaso eram judeus, foram acusados de conspiração para envenenar o Vozhd (Chefe), presos e torturados para se extrair confissões. Essas confissões foram usadas para implicar outras pessoas no “complô” e assim por diante.
A Revolução de Outubro emancipou todas as nacionalidades que tinham sido oprimidas pelo czarismo (Lênin chamou isto de “uma prisão das nações”), inclusive os judeus, a quem foi concedida a igualdade política e social. Todas as velhas restrições humilhantes foram removidas. Mas, sob o chauvinismo russo stalinista começaram a ressurgir, e com isto todas as velhas imundícies do antissemitismo. Embora não fosse publicamente aberto (a herança do internacionalismo proletário da Revolução de Outubro era ainda muito recente na consciência do povo), isto estava sempre presente como uma decorrência, que de tempos em tempos emergia como uma ferramenta com a qual a burocracia poderia desviar a atenção das massas de seus problemas reais.
Depois da assinatura do pacto Hitler-Stalin, a burocracia russa tentou estabelecer boas relações com o regime nazista de Berlim. Como parte dessa política, judeus proeminentes foram removidos das funções públicas. Litvinov, o ministro do exterior, que era judeu e identificado com a política de aproximação com a Inglaterra e a França contra a Alemanha nazista, foi substituído pelo russo Molotov. Chegaram a emitir uma ordem aos campos de concentração, instruindo os guardas a não usar a palavra fascista como um insulto contra os prisioneiros. Stalin entregou alemães antifascistas refugiados na Rússia à terna clemência de Hitler.
Nas memórias de Shostakovich escritas por Solomon Volkov, registra-se que nesse período as obras de Wagner foram apresentadas pela primeira vez no Bolshoi, iniciando com “As Valquírias”. O diretor não era nada menos que Sergei Eisenstein, que convidou um colega judeu para tomar parte na produção. Este último respondeu: “Você não entende o que isto significa? Não posso tomar parte nesta produção porque sou judeu”. Eisenstein não acreditou nisto, mas era verdade. A ópera foi apresentada na presença do embaixador nazista e sem judeus.
Foi nesta época que Shostakovich escreveu seu magistral e comovente ciclo de canções “Da Poesia Popular Judaica”. Perversamente, críticos de direita como Fay argumentam que isto era exatamente uma tentativa do compositor de se insinuar junto às autoridades ao escrever no estilo da música folclórica! Mas Shostakovich poderia ter escolhido qualquer tipo de música folclórica – russa, georgiana, armênia, usbeque ou kalmik – mas escolheu especialmente a música judia e poemas que sublinhavam os sofrimentos do povo judeu sob o czarismo russo.
Fay argumenta que devido ao trabalho ter sido completado em Outubro de 1948 e que a campanha de Stalin contra as instituições judias (em suas palavras) “não tinha ganhado impulso” até dezembro, isto não vale como protesto contra o antissemitismo. Mas o antissemitismo não era uma ideia nova inventada pelo Kremlin da noite para o dia. Ainda no final dos anos 1920, na luta contra Trotsky e a Oposição de Esquerda, Stalin fez uso do antissemitismo, colocando em circulação a ficção de que “os judeus estão provocando problemas no Comitê Central”.
Shostakovich estava muito interessado na música judia que aparece em intervalos regulares em sua obra. Mas a oportunidade da obra era significativa. Seria Shostakovich tão bobo para não perceber que este era um terreno perigoso para ele andar? De jeito nenhum, ele sabia disto muito bem porque ele tinha vínculos estreitos com algumas das pessoas afetadas pela campanha antissemita. O tema do antissemitismo era algo que ele sentia profundamente e que continuamente ressurgia em sua obra, de forma mais memorável na Décima Terceira Sinfonia (Babi Yar), que é um ataque específico ao antissemitismo russo.
Shostakovich detestava a tirania em geral e a opressão do povo indefeso em particular. No início dos anos 1960, quando havia evidências de uma nova eclosão de antissemitismo na URSS, o poeta radical Eugene Yevtuchenko (ele próprio, um ucraniano) escreveu um poema de protesto contra isto, com o título “Babi Yar”, que contém uma angustiante contagem das atrocidades cometidas contra os judeus na Rússia e na Ucrânia através da história. O poeta afirma que isto o fez sentir vergonha de ser russo. No final ele diz: “Eu sou russo. Em minhas veias não corre uma simples gota de sangue judeu, mas diante de tudo isto, eu sou judeu”. Shostakovich tomou esses versos como base de sua Décima Terceira Sinfonia, que é um protesto extremamente franco contra o stalinismo e o antissemitismo.
A morte de Stalin
O Pai dos Povos estava agora revelando todos os sinais de uma paranoia patológica. Ele era morbidamente suspicaz com relação a todos, mesmo de seu círculo interno. Khrushchev, um dos membros de seu círculo mais tarde recordou que era suficiente Stalin dizer para alguém que “seus olhos parecem evasivos hoje” para esta pessoa ficar sob suspeita. Ele acusou seu velho amigo Kaganovich de ser espião britânico e tinha mandado a esposa judia de seu fiel lacaio Molotov para um campo de trabalho.
Em 1953, tornou-se claro que Stalin, com a ajuda de seu novo fantoche, o chefe da polícia secreta Beria, estava preparando um novo expurgo que teria liquidado a principal camada da liderança do Partido e do Estado. Isto teria mergulhado a URSS em uma profunda crise, em uma época em que o país estava lutando para emergir da horrível devastação de uma guerra que lhe custou 27 milhões de mortos, e que estava envolvido em uma amarga luta contra o imperialismo americano. A camarilha dirigente, por essa razão, deu os passos necessários para proteger suas vidas e para eliminar a fonte do perigo. Stalin foi envenenado ou eliminado de outra forma por seus camaradas.
O ano de 1953 também viu uma torrente de premières de obras de Shostakovich que ele tinha mantido em segredo por anos. Este era o momento que Shostakovich estava esperando. Celebrou a morte do tirano como somente ele poderia. Sua Décima Sinfonia exibe um grande número de citações e códigos musicais, inclusive uma referência à Elmira (Nazirova), por quem parece que ele se apaixonou. Mas o mais importante destes temas é um que se baseia no motivo DSCH – seu próprio nome escrito em forma de música [O motivo DSCH é formado pelas notas ré-mi bemol-dó-si, que equivale a D-Es-C-H em notação musical alemã, correspondentes às iniciais do compositor, NdT]. Esta não é a única peça em que Shostakovich “assina o autógrafo” na música (o “Oitavo Quarteto de Cordas” é um exemplo notável). Mas é certamente a mais importante.
Esta é, certamente, a maior sinfonia de Shostakovich, ao lado da Quinta. O tempestuoso e selvagem segundo movimento é tido como o retrato musical do próprio Stalin. No final, a orquestra repete o motivo DSCH triunfantemente, insistentemente. No meio do último movimento, ele cita o tema de Stalin do segundo movimento e o corta transversalmente com o tema DSCH. É como se Shostakovich gritasse: o monstro Stalin morreu e eu estou ainda aqui, ainda escrevendo minha música, ainda proclamando a verdade! É um dos mais inspiradores e comoventes momentos de todas as obras de Shostakovich.
Começando com o 20° Congresso do PCUS em 1956, Nikita Khrushchev tentou encontrar uma forma de sair do beco sem saída causado pelo controle e administração burocrática da economia nacionalizada e planificada da URSS por meio de reformas vindas de cima. Há tempos, Alexis de Tocqueville afirmou que o momento mais perigoso para um regime despótico é precisamente quando ele tenta se reformar. Meses após o discurso secreto de Khrushchev no 20° Congresso denunciando os crimes de Stalin, os trabalhadores húngaros levantaram-se, armas nas mãos, contra a dominação soviética e stalinista. A Revolução Húngara foi suprimida em sangue, embora os trabalhadores húngaros organizassem greves gerais e duas insurreições, antes e depois da intervenção militar russa.
A Décima Primeira Sinfonia
A Décima Primeira Sinfonia é uma obra épica. Ela dura mais de uma hora e exige uma orquestra muito grande. Shostakovich a escreveu em 1957, alguns meses depois da supressão da Revolução Húngara. A escolha do momento é altamente significativa. 1957 foi o 40º aniversário da Revolução de 1917, então a escolha óbvia do objeto da sinfonia deveria ter sido Outubro, não 1905. Oficialmente dedicada à memória da suprimida Revolução Russa de 1905, a Décima Primeira Sinfonia foi interpretada privadamente como um protesto contra o esmagamento pelos soviéticos do então recente levantamento húngaro. Sempre que foi questionado, Shostakovich negou; mas isto não faz nenhuma diferença. Sua audiência nunca questionou.
Formalmente, a sinfonia se baseia nos acontecimentos do Domingo Sangrento, no início da Primeira Revolução Russa em nove de janeiro de 1905, quando uma demonstração pacífica de trabalhadores foi atacada pela polícia e cossacos czaristas e muitas pessoas foram assassinadas. Toda a obra se baseia em canções revolucionárias russas, algumas datadas do século 19. Elas eram bem conhecidas nas audições soviéticas, embora não o fossem para os frequentadores de concertos no ocidente. Uma vez estive presente em um concerto no Centro Cultural do London’s South Bank, onde a obra era apresentada. Ela causou um profundo impacto no público essencialmente de classe média, cuja maioria provavelmente votaria nos Conservadores. Quantos deles perceberam que o tema sublime do movimento lento era de fato “Memória Eterna”, a velha canção que era sempre cantada ao lado do túmulo de revolucionários mortos? Nenhum deles, suponho.
O primeiro movimento é intitulado “O Quarteirão do Palácio” e descreve com tremendo poder a tensa atmosfera às vésperas do Domingo Sangrento. É noite e o quarteirão está coberto de neve e é varrido por um vento glacial. Mas isto simboliza uma sociedade tirânica, onde, na superfície, tudo está congelado como o permafrost. Contudo, sob a superfície, há um agitado descontentamento. O tema central é uma canção dos velhos prisioneiros revolucionários do século 19 chamada “Ouça!” (Slushai!), que contém os seguintes e poderosos versos:
“Como um ato de traição, como uma consciência intranquila, a noite é negra.”
O tema de “Ouça!” se repete através da obra. O próximo tema, “O Prisioneiro”, é introduzido pelos contrabaixos. Esta canção contém as palavras:
“Os muros da prisão são altos; os portões estão fechados com dupla fechadura de ferro…”
Isto é mais uma vez alegórico. Na Rússia czarista – e na Rússia de Stalin, também – toda a sociedade assemelha-se a uma gigantesca prisão. A noite sombria é a longa noite de domínio da arbitrariedade e do despotismo. A atmosfera de ameaça é incrementada pelo aumento do som dos tambores e toques de trompete que lembram as sinfonias de Mahler. Um clima de muita tensão é criado.
O segundo movimento tem o subtítulo de “O Nove de Janeiro”. Ele começa com o que somente pode ser comparado a um gemido lançado da profundeza do povo. É um tema que transmite o intolerável sofrimento das massas, e que é insistentemente repetido. O primeiro tema expressa o apelo do povo ao czar. Ele é a expressão musical da petição que era para ser apresentada pelos manifestantes ao czar (Goy ty tsar nash, batyushka), e que começa assim: “Oh, czar, nosso pequeno pai, olhai em torno de vós! Não podeis ver que a vida se tornou intolerável para nós devido aos servidores do czar?”.
O tema que começa quase como um murmúrio torna-se cada vez mais alto, mais violento e ameaçador, como uma gigantesca onda de indignação popular, que finalmente quebra contra um muro de violência. A segunda canção é chamada de “Descubram suas cabeças!” (obnazhite golovy!). A música infla-se até um poderoso clímax. Esta é uma visão das massas que “atacam violentamente o céu”, para usar a descrição de Marx da Comuna de Paris. Em seguida, a música cede como uma calma tensa antes de uma tempestade violenta. Retornamos momentaneamente ao tema do primeiro movimento que descreve o quarteirão do palácio, onde a polícia e os cossacos estão esperando com rifles apontados e baionetas caladas.
A cena do massacre deve ser um dos mais violentos episódios em toda a música. Depois de os tambores laterais imitarem o tagarelar das metralhadoras, a orquestra explode em um estrondo despedaçador. Logo, inesperadamente, há um silêncio total. Retornamos mais uma vez aos temas sinistros do Primeiro Movimento. O quarteirão do Palácio está novamente frio e silencioso e a noite caiu. Mas a neve está agora vermelha de sangue.
O sublime e comovente Terceiro Movimento é um réquiem para os caídos, “Memória Eterna”. Ele se baseia em uma velha canção revolucionária (Vy zhertyoyu pali) a que já nos referimos. As palavras são “Caíste vítima na fatídica batalha com amor abnegado pelo povo”. O movimento alcança um clímax em que o massacre sangrento de Nove de Janeiro é relembrado. É como se o povo estivesse jurando vingança por seus camaradas caídos. Em seguida, o movimento retorna à triste solenidade da marcha fúnebre.
O Movimento Final tem o subtítulo: “O Toque do Sino”. E é exatamente isto: um chamado às armas. Ele se abre com a canção revolucionária: Ódio aos tiranos! Os versos são:
“Ódio aos tiranos! Zombaram de nós!
Embora nossos corpos sejam esmagados,
Somos mais fortes de espírito.
Vergonha, vergonha, vergonha sobre vós, tiranos!”
Mais tarde isto é matizado com outras canções revolucionárias, inclusive a famosa “Bandeira Vermelha” polonesa (a Warshavianka). Estaria Shostakovich pensando em seu próprio avô polonês que foi exilado na Sibéria por sua participação na insurreição de 1863? Parece muito provável que ele fez esta conexão, particularmente à luz da recente revolta húngara. Contudo, a Warshavianka tinha sido incorporada pelos trabalhadores russos como uma de suas próprias canções revolucionárias e, em 1905, era tão popular quanto a “Marselhesa Operária”. Ela se espalhou da Rússia para outros países, principalmente à Espanha, onde se tornou o hino dos anarquistas sob o título “A Las Barricadas”. Seus versos são:
“Furacões furiosos redemoinham em torno de nós.
Iniciamos a batalha decisiva contra nossos inimigos.
Nosso destino ainda é desconhecido”
Mais tarde, o tema de “Ódio aos tiranos!” é repetido, mas mais lentamente e com maior força e determinação, como uma irresistível marcha. Aqui, temos o novo despertar da Revolução. Ele culmina em uma explosão de raiva, neste ponto os sinos tubulares fazem soar o sinal de alarme da revolta. Logo antes deste momento, uma série de cinco notas é repetida de forma martelada. Estes são os últimos versos da canção que abre o movimento, “Ódio aos Tiranos!” Em russo, esses versos são “Smert’ vam tirany!” – Morte aos Tiranos! A mensagem de Shostakovich não poderia ser mais clara para um auditório soviético que estava completamente familiarizado com a canção – e seus versos.
Alguns críticos ocidentais de Shostakovich, que estão determinados a apresentar o compositor como um instrumento obediente do regime, têm lançado dúvidas sobre a ideia de que a Décima Primeira Sinfonia estava de alguma forma conectada com a insurreição húngara de outubro de 1956. A única declaração que Volkov atribui a Shostakovich com respeito à sinfonia em seu livro Testemunho é o comentário de que a obra tem a ver com os acontecimentos que se repetiram na própria história da Rússia, e que “ela trata de temas contemporâneos embora seja chamada de 1905. Trata-se do povo, que deixou de acreditar porque foi atropelado pelo destino”.
Contudo, seu filho Maxim não tinha nenhuma dúvida. Alarmado com o que seu pai tinha feito, ele cochichou em seu ouvido: “pai, e se eles o culparem por isto?”. Irina Shostakovich, entrevistada por Margarite Mazo, no DSCH Journal 12, confirmou esta interpretação: “A Décima Primeira Sinfonia foi escrita em 1957 quando estes acontecimentos (as consequências do levantamento húngaro de 1956) ocorreram. O que aconteceu foi visto com grande seriedade por todos. Não existe nenhuma referência direta aos acontecimentos de 1956 na sinfonia, mas Shostakovich tinha-os em mente”.
As últimas sinfonias
A Décima Segunda Sinfonia, escrita em 1959-61, e com o subtítulo de “Outubro”, é entendida como a continuação da Décima Primeira. Isto não é inteiramente incontestável. Ela é nobre em sua concepção e não faltam belas melodias (Shostakovich era incapaz de escrever uma má sinfonia). Contudo, parece-lhe faltar o fogo da paixão que está presente em cada linha da Décima Primeira. Claramente não é algo que fluiu, como o faz a Décima Primeira, de um profundo desejo interno. Ainda assim é uma obra com uma mensagem.
Os movimentos desta sinfonia, como as anteriores, contêm uma “programação”. Isto é feito especificamente nos títulos de cada movimento:
- Petrogrado Revolucionária
- Lênin em Razliv
- O cruzador Aurora
- O amanhecer do gênero humano
O final da Décima Primeira sugere um assunto inconcluso. O apelo à ação no final da obra é claramente entendido como uma preparação para a Décima Segunda Sinfonia, como o insucesso da Revolução de 1905 preparou o caminho para a Revolução Bolchevique de 1917. Então, por que a Décima Segunda desaponta quando comparada à Décima Primeira? A resposta está em que Shostakovich não viu a realização de seu sonho de um novo e melhor mundo – uma verdadeira sociedade socialista – realizada durante a sua vida. Pelo contrário, a despeito do repúdio a Stalin no 20° Congresso, a burocracia permaneceu firmemente no poder. Os princípios leninistas de democracia soviética e igualdade permaneceram tão longe quanto eram antes. Como poderia o compositor escrever com sinceridade sobre a vitória final do socialismo quando ele não acreditava em uma só palavra da burocracia?
Shostakovich estava certo. A tentativa de “degelo” sob Khrushchev teve uma abrupta parada em 1964, quando ele foi derrubado por Brezhnev. Gradualmente, os novos donos da Rússia reverteram a tendência a concessões e incrementaram a repressão.
Shostakovich retornou ao tema do antissemitismo em sua Décima Terceira Sinfonia (com o subtítulo de “Babi Yar”). A sinfonia está baseada em poemas de Yevgeny Yevtushenko, o primeiro a recordar o massacre de judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. “Babi Yar” é o nome do local onde este massacre aconteceu. Embora fosse parte da política de Hitler o extermínio sistemático de judeus nos territórios ocupados, não há nenhuma dúvida de que alguns ucranianos (uma minoria) colaboraram com os nazistas e compartilharam de sua visão antissemítica. Os stalinistas sempre foram relutantes em aceitar este fato. Na verdade, depois da première da sinfonia, Yevtushenko foi forçado a acrescentar uma estrofe ao seu poema dizendo que russos e ucranianos morreram ao lado de judeus em Babi Yar.
As cores, aqui, são sombrias; a entonação é amarga e violenta. Esta música não é fácil de ouvir, mas é tremendamente poderosa. Ela começa com dobre de sinos. Este não é o toque de alarme que finaliza a Décima Primeira Sinfonia e que convoca à ação. Este é o som sombrio de um toque fúnebre. Logo o coro e o baixo profundo entram com o poema de Yevtushenko. Os versos são lidos como segue:
Nenhum monumento ergue-se em Babi Yar.
Somente um declive íngreme, como tosca lápide.
Sinto medo.
Hoje, sou tão velho
Quanto toda a raça judia.
Vejo-me como um velho israelita.
Vagueando pelas estradas do antigo Egito
E aqui, sobre a cruz, morro, torturado
E ainda carrego as marcas de cravos.
Parece-me que Dreyfus sou eu mesmo.
Os filisteus me traíram – e agora o juiz.
Estou numa prisão. Cercado e imobilizado,
Sou perseguido, insultado, caluniado e
As graciosas bonecas com seus babados de Bruxelas
Gritam, quando eles espetam guarda-chuvas em meu rosto.
Eu me vejo como um menino em Bielostok
Sangue derramado escorrendo no chão,
Os chefes de botequins furiosamente desimpedidos
E cheirando à vodka e cebola, meio a meio.
Sou repelido por uma bota, não tenho nenhuma força à esquerda,
Em vão imploro à turba do pogrom,
Com zombarias de ‘Morte aos Judeus e salvem a nossa Rússia!’
Minha mãe está sendo golpeada por um balconista.
Oh! Rússia de meu coração, sei que você
É internacional, por natureza íntima.
Mas muitas vezes esses cujas mãos estão mergulhadas na lama
Abusaram de seu puro nome, em nome do ódio.
Conheço a afabilidade de minha terra natal.
Com vileza, e sem tremer
Os antissemitas proclamaram-se
De a ‘União do Povo Russo!’.
Eu me sinto como Anne Frank,
Transparente, como o mais fino galho em Abril,
E estou apaixonado, e não preciso de frases,
Mas somente que contemplemos nos olhos um do outro.
Como se pode ver pequeno e até mesmo sentir!
Folhas são proibidas, assim é o céu,
Mas muito é até permitido – com gentileza
Nos quartos escuros um abraça o outro.
– ‘Eles chegam!’
– ‘Não, não tema – estes são sons
Da própria primavera. Ela está chegando cedo.
Depressa, seus lábios!’.
– ‘Eles quebram a porta!’
– ‘Não, o gelo do rio está quebrando…’.
O capim selvagem farfalha sobre Babi Yar,
As árvores olham com severidade, como se julgassem furtivamente.
Aqui, em silêncio, tudo grita e, com o chapéu na mão,
Sinto meu cabelo tornar-se grisalho.
E eu, como um longo grito sem som
Sobre os milhares de milhares de sepultados,
Sou cada ancião aqui executado,
E sou cada criança aqui assassinada.
Nenhuma fibra de meu corpo esquecerá isto.
Que a ‘Internacional’ troveje e ressoe
Quando, de uma vez por todas, for enterrado e esquecido
O último dos antissemitas desta terra.
Não há nenhum sangue judeu que seja sangue meu,
Mas, odiado com paixão corrosiva,
Sou para os antissemitas como um judeu.
E é por isso que me considero russo!(Yievgenii Yevtushenko)
A Décima Terceira Sinfonia não trata unicamente do antissemitismo, ela é uma crítica devastadora do sistema burocrático em geral. Um dos movimentos descreve uma fila de mulheres soviéticas que esperam por escassos bens de consumo. Foi assim que a Revolução de Outubro terminou (ele parece dizer): com as massas indiferentes, cansadas e alienadas. Outro movimento é chamado de “Medo”, e se refere especificamente ao medo da “batida da meia-noite” – medo que pode estar “morrendo, mas não está morto”. O movimento chamado “Uma Carreira” cita o último movimento da Décima Segunda Sinfonia intitulada “A Alvorada da Humanidade”. Mas a sinfonia termina como começou – com as badaladas de um sino: é o toque fúnebre da Revolução de Outubro.
Khrushchev, já sob pressão, pediu a Shostakovich e Yevtushenko para cancelar a primeira apresentação, mas ela aconteceu assim mesmo. Depois de apenas três apresentações, a Décima Terceira Sinfonia sofreu o mesmo destino da Quarta e da Oitava. Uma apresentação foi cancelada “porque o solista estava doente”. Yevtushenko fez algumas mudanças em seu poema para mostrar que o povo soviético tinha lutado contra o fascismo. Mas, em 1964, Khrushchev foi derrubado e toda a situação mudou novamente para pior.
Os últimos anos
As últimas obras de Shostakovich são impregnadas de uma profunda preocupação com sua própria mortalidade. Em seus últimos anos, sua saúde começou a deteriorar. Ele sofria de uma enfermidade crônica, mas fumava e tinha a paixão tradicional dos russos pela vodca. Em 1958, ele teve uma enfermidade que afetou particularmente a sua mão direita, o que eventualmente o forçou a desistir de tocar piano.
Em 1965, foi-lhe diagnosticado poliomielite. Ele sofreu ataques cardíacos e várias quedas nas quais lesionou as duas pernas. Ainda assim, manteve o seu irônico senso de humor, como o revela o seguinte extrato de uma carta: “Meta alcançada até agora: 75% (perna direita lesionada, perna esquerda lesionada, mão direita defeituosa. Tudo que preciso fazer agora é lesionar a mão esquerda e então 100% das minhas extremidades não funcionarão)”. É necessário dizer que mesmo aqui ele está zombando dos pronunciamentos oficiais da burocracia, com seu otimismo açucarado sobre “a realização completa dos objetivos do Plano Quinquenal”.
A subseqüente Era Brezhnev ficou conhecida como “os anos de estagnação”. De obstáculo relativo ao desenvolvimento das forças produtivas, a burocracia agora se transformou em obstáculo absoluto ao progresso. A corrupção, os estragos, o desgoverno e o caos do sistema burocrático minaram todas as vantagens da economia nacionalizada e planificada. A despeito de todos os discursos jactanciosos dos dirigentes, a taxa de crescimento caiu de 6% ao ano, nas últimas etapas do domínio de Khrushchev, a quase zero nos últimos anos de Brezhnev. O contraste entre os entusiásticos relatórios sobre “a construção do comunismo” e a defasagem das forças produtivas era evidentemente óbvio. Em vez de aumentar a igualdade houve o crescimento persistente da desigualdade entre os burocratas e as massas, agravada pela corrupção em escala gigantesca.
As últimas três sinfonias são claramente expressões de angústia pessoal. A Décima Quarta Sinfonia de 1969 é um ciclo de canções baseado em poemas relativos ao tema da morte. Ela foi escrita num tempo em que ele estava gravemente doente e com uma crescente disposição de ânimo pessimista. Shostakovich era ateu e no seu trabalho não encontramos nenhum traço de consolação ou otimismo. Ele escreveu: “As pessoas que pensavam serem meus amigos queriam o fim para proporcionar algum consolo, isto é o que dizem: que a morte é apenas o começo. Mas não é o começo. É realmente o final. Depois dela, não há nada. Nada”.
As duas primeiras canções são do poeta espanhol Lorca, que foi assassinado pelos fascistas no início da Guerra Civil. A primeira – De Profundis – abre com um lúgubre tema das cordas baixas. O segundo é uma canção tradicional alemã. As restantes são de Apollinaire e de poetas russos. A última é do poeta alemão Rilke. Esta é uma obra difícil em termos de linguagem musical. Ela utiliza a escala de doze notas usada no ocidente por compositores como Schoenberg e Webern, mas raramente usada nas composições soviéticas.
A Décima Quinta Sinfonia de 1971 é, se possível, uma obra ainda mais embaraçosa. Ela é puramente orquestral, com enigmáticas citações de Wagner, da obra de Rossini William Tell e da Quarta Sinfonia do próprio compositor. Quais foram as intenções do compositor? É difícil dizer. Mas o humor prevalecente é de uma amarga ironia. Ela coloca a questão, mas não dá nenhuma resposta. Qual o significado destas enigmáticas últimas obras? Podem elas ser explicadas puramente em termos da má saúde do compositor e de suas premonições de morte?
Em janeiro de 1988, Maxim Shostakovich, em uma entrevista a Volkov (“On ‘late’ Shostakovich”), faz um comentário interessante: “Era uma fraude dos críticos soviéticos daquele tempo escrever que Shostakovich estava doente e por isso começou a escrever músicas trágicas. Meu pai não estava falando de sua própria saúde, mas da saúde de uma época, dos tempos”. As contradições entre teoria e prática, entre as palavras e os fatos, que eram a base do regime, eram intoleráveis para Shostakovich. A realização de todas as promessas de um retorno a Lênin e a uma democracia socialista era apenas uma mentira e tornou o seu final ainda mais amargo.
Há uma citação da obra de Wagner, “A Marcha Fúnebre de Siegfried” do “Crepúsculo dos Deuses” (Goetterdaemmerung), que termina na morte de um herói e no fim ígneo do Walhalla, a casa dos deuses. A outra é de “Tristão e Isolda”, uma história de amor que termina em morte. William Tell era um famoso lutador pela liberdade suíça da opressão austríaca. Poderia ser o caso de que o compositor, sabendo que estava morrendo, concluísse que sua luta particular por liberdade tinha fracassado e que seu apaixonado amor pela humanidade devia logo terminar em morte, após o que, como ele próprio disse, “Não há nada, nada”.
Terminou Shostakovich sua vida em desespero? Parece que assim o foi. Diferentemente de seu herói Beethoven, que foi capaz de se elevar acima dos momentos de dúvida e de crise pessoal e dar ao mundo a Nona Sinfonia, Shostakovich dá a impressão de ter perdido toda esperança. Sua última palavra, na Décima Quinta Sinfonia é de amargo sarcasmo. Mas em primeiro lugar não devemos esquecer que Beethoven também passou através de longos períodos de depressão quando ele escreveu muito pouco. Além do mais, por mais difícil que tenha sido a sua situação nos anos de triunfante reação depois de 1815, Beethoven nunca teve de enfrentar as horríveis condições de um monstruoso estado totalitário que mantinha os seus opositores em Gulags ou hospitais psiquiátricos.
Devemos ter em mente, também, que Shostakovich não era um político ativista no sentido normal da palavra. Ele não teve o auxílio de uma análise científica do que estava acontecendo na União Soviética. Ele não dispunha de nenhum partido ou organização para ajudá-lo. No final, ele se encontrava sozinho – completamente sozinho. Shostakovich morreu de um câncer pulmonar em nove de agosto de 1975 e foi sepultado no cemitério Novodevichy, em Moscou. O obituário oficial não apareceu no Pravda até três dias depois de sua morte, aparentemente porque o seu teor teve de ser aprovado nos escalões mais altos, por Brezhnev e pelo resto do Politburo. A cantata satírica “Rayok”, que ridicularizava a campanha “anti-formalista”, manteve-se escondida até depois de sua morte. Até mesmo do além, Shostakovich estava ainda dando à burocracia dores de cabeça, e talvez dando a última risada irônica.
O pós-morte
Em 1979, o livro de Solomon Volkov, “Testimony”, que se acreditava ser as memórias de Shostakovich ditadas a um de seus antigos alunos, foi publicado nos EUA. Isto foi denunciado como uma falsificação pelos críticos direitistas, particularmente nos EUA, que estão determinados a caluniar o compositor como um defensor do stalinismo. Tem havido uma furiosa controvérsia desde então acerca da autenticidade do livro e sobre “o que Shostakovich realmente representava”.
Os dois lados desta controvérsia alinham-se em posições reacionárias antissoviéticas e pró-burguesas. Um grupo afirma que Shostakovich era realmente um dissidente secreto como Sakharov ou Solzhenisyn, do ponto de vista de um ainda maior furioso reacionarismo. O outro grupo, composto de teimosos lutadores da Guerra Fria, insiste que Shostakovich era realmente um agente da KGB durante todo este tempo.
No The New York Times, de nove de março de 2000, o crítico de ópera Bernard Holland acusou o compositor de covardia, chamando-o de “um medíocre ser humano” que “bajulava e lisonjeava servilmente aos seus chefes soviéticos”. Entrevistado por Tamara Bernstein (National Post, de 15 de março de 2000), Laurel Fay descreveu Shostakovich como “um fraco”. Esta é a linguagem escolhida na rarefeita atmosfera do debate acadêmico nos EUA; como teria dito Marx: cada palavra, um urinol e não exatamente vazio.
Qual a razão para tal quantidade de bile venenosa, rancor e completo ódio? Isto não tem nenhuma relação com a música. Isto é motivado por ódio de classe e anticomunismo vicioso. Em seus confortáveis apartamentos de Nova Iorque, críticos burgueses de música bem de vida lutam a Guerra Fria mais uma vez – sem até mesmo removerem seus chinelos de feltro. Quem disse que a arte e a música não têm nada a ver com política?
Na Rússia, não há nenhum debate sobre “Testimony” porque não foi publicado. Somente o ultra-burocrata Tikhon Khrennikov rejeitou “o testemunho” de Shostakovich. Isto dificilmente surpreende, uma vez que se pode dizer com total confiança que o picareta stalinista Khrennikov era certamente “um ser humano medíocre” que “bajulava e lisonjeava servilmente os seus chefes soviéticos”.
Outro supostamente “respeitável” acadêmico, Richard Taruskin, incrivelmente descreveu “Lady Macbeth de Mtsensk” como uma apologia ao genocídio stalinista na Ucrânia! Stalin deve, então, ter sido altamente ingrato por banir e perseguir seu autor. Quando se lê tais disparates, pode-se começar a perguntar como seriam os acadêmicos não respeitáveis se estes são os respeitáveis?
Em 15 de fevereiro de 1998, Christopher Norris declarou na Rádio BBC 3 que é imoral [sic] sugerir que Shostakovich não era um comunista fiel e que sustentar tal opinião era apenas um “modismo”. Sim, Shostakovich era de fato um comunista. Mas o que as pessoas como Norris não podem entender é que ser comunista não é ser stalinista, e que as duas coisas são mutuamente incompatíveis. Isto interessa aos reacionários para confundir comunismo com stalinismo e para caluniar o socialismo igualando-o à caricatura burocrático-totalitária que existiu na URSS sob Stalin, Khrushchev e Brezhnev. Mas não lhes interessa de modo algum admitir que isto não tem absolutamente nada a ver com as ideias de Lênin, Trotsky e a Revolução de Outubro, aos quais comunistas honestos como Shostakovich aderiram e tentaram defender.
O problema é que as duas posições assumem que somente era possível se opor ao regime stalinista a partir de um ponto de vista capitalista. Isto é inteiramente falso. Que Shostakovich se opôs a Stalin e à burocracia é óbvio até mesmo para um cego. Mas há alguma evidência por menor que seja de que ele estava a favor do capitalismo ou que simpatizava com o Ocidente? Não, não há tal evidência. Todas as evidências confiáveis apontam para o contrário disto.
Krzysztof Meyer chega mais perto da verdade quando escreve (DSCH Journal, 12 de janeiro de 2000): “[Shostakovich] nunca foi como os Comunistas. Mas certamente devo lembrar que sua família veio de gerações com fortes sentimentos socialistas – é claro que Comunismo e Socialismo são fenômenos bem diferentes. O Comunismo Soviético era sinônimo de tirania”. É um escândalo completo igualar seja o comunismo ou o socialismo com o regime burocrático e totalitário do stalinismo. Mas de forma confusa pelo menos Meyer está dizendo que a indubitável oposição de Shostakovich ao regime não significava de todo oposição ao socialismo.
A Oitava, Décima e Décima Terceira sinfonias, Stenka Razin e as canções judias expressam clara oposição ao regime stalinista. Mas Shostakovich não era nem um dissidente pró-capitalista, como Sakharov, ou agente da KGB, ou stalinista picareta como Khrennikov. Ele era um homem honesto e progressista que escreveu grandes músicas e tentou por meio dela expressar a agonia e o êxtase do povo soviético nos turbulentos dias em que viveu.
Música com mensagem
Depois de sua morte, as obras de Shostakovich foram submetidas à crítica mais destrutiva e maliciosa. Gerard McBurney descreve seu trabalho sinfônico como “derivativa, sem valor, vazia e de segunda mão”. Pierre Boulez diz: “Eu penso de Shostakovich como o segundo ou mesmo o terceiro depois de Mahler”. E agora, a partir da queda da URSS está se tornando “moda” para os críticos russos ladrarem unidos por seu sangue. Sendo assim, Filip Gershkovich chamou Shostakovich de “um charlatão inconsciente”. E assim por diante.
Derivativa? Sim, mas que música não é de alguma forma derivativa? Shostakovich não fez nenhum segredo de sua dívida para com Mahler e muitos outros compositores: Bach, Stravinsky, jazz e música popular, música folclórica judia ou russa. Mas não estava a música de Beethoven enraizada na música de Mozart e Haydn? É claro que estava. Mas não evoluiu a algo inteiramente diferente – algo que é inconfundivelmente Beethoven? Certamente, evoluiu. E quem pode negar que as sinfonias de Shostakovich, tomando seu ponto de partida de Mahler, desenvolveram-se em um idioma musical inteiramente diferente que é característico de Shostakovich e de ninguém mais além de Shostakovich?
Charlatão, Shostakovich com certeza não era. Este rótulo se prende mais convenientemente à nova ninhada de prostitutas intelectuais na Rússia que ontem rastejava diante da burocracia stalinista e que hoje trocou de dono e está agora rastejando diante do capitalismo e dos EUA. Para esta nova geração de répteis, Shostakovich representa um alvo tentador no campo da música, justamente como Lênin e Trotsky no campo da história. O objetivo é despejar lama sobre a Revolução de Outubro e a URSS e “provar” que nada de bom resultou delas. E o verdadeiro propósito disto, por sua vez, é o de persuadir as futuras gerações, tanto na Rússia quanto no Ocidente, de que é melhor aderir ao capitalismo.
Quanto a Pierre Boulez, que já foi considerado como um dos principais representantes da escola vanguardista ocidental de compositores, não ajuda desejar saber se suas azedas opiniões sobre Shostakovich não estão influenciadas pela inveja. Honestamente, ninguém hoje em dia ouve a chamada vanguarda musical de compositores, como Schoenberg, Webern e Pierre Boulez, que se revelou um beco sem saída. O único local onde se pode ouvir esta espécie de música atualmente é no cinema, onde ela proporciona um esplêndido acompanhamento musical aos filmes de terror. Por outro lado, o centenário de Shostakovich, que está se aproximando, provou que as sinfonias deste grande compositor do século estão se tornando crescentemente populares junto ao público – não porque seja “vulgar”, “sem valor” ou, tampouco, vazia, mas porque é uma música que tem uma mensagem sobre os mais importantes acontecimentos de nossos tempos.
O ano do centenário de Shostakovich mostrou que, a despeito das ironias dos críticos mal-intencionados, sua música está obtendo uma crescente e vasta audiência. Há pouco tempo, o Quarteto Borodin tocou os quartetos completos de Shostakovich no Bantry House, em West Cort, Irlanda. O anúncio do festival assinalava:
“Os quartetos… contam a abrasadora história da luta de um homem contra a tirania, da voz de um artista que ficou para trás e falou para o seu povo. O primeiro deles, escrito em 1938 após sua terrível entrevista com a temível NKVD, não é nenhum experimento juvenil. E o extraordinário Décimo Quinto Quarteto, com seus seis Adágios, foi escrito em 1974, exatamente um ano antes de sua morte. Nesses trinta e seis anos, ele escreveu uma sequência de quartetos plenos de força interna, música não exatamente de sofrimento, mas de capacidade de acabar com aquele sofrimento, música de purificação, da essência da vida de um homem e de um século terrível como um todo.”
A música de Shostakovich viverá enquanto homens e mulheres amarem a música, porque, como seu ídolo Beethoven, ele era um homem com algo importante a dizer.