O Sinn Féin emergiu como o partido mais votado nas eleições para a Assembleia da Irlanda do Norte com 29% dos votos contra os 21% dos “unionistas” do DUP – Partido Democrático Unionista. Este é mais um golpe devastador no prestígio do imperialismo britânico, outra fratura no pseudo “Reino Unido”.
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Numa altura em que Boris Johnson se põe em bicos de pé sobre a guerra na Ucrânia – querendo dar lições de moral a uma potência mundial sobre o quão errado que é anexar pedaços duma nação soberana – o voto numa província anexada a uma nação soberana pelo imperialismo britânico há mais de cem anos atrás, esvaziou-lhe as suas snobes pretensões.
O carácter histórico destas eleições foi ilustrado pelas declarações da BBC (caixa de ressonância do imperialismo britânico) que candidamente explicou aos seus telespectadores:
“Sinn Féin, um partido nacionalista, chegou ao topo da votação. Isso nunca aconteceu antes nos 101 anos de existência da Irlanda do Norte. As fronteiras da Irlanda do Norte foram literalmente desenhadas para que tal nunca sucedesse, para que existisse sempre uma maioria unionista.”
Não podia ser mais explícito: os imperialistas conceberam a Irlanda do Norte como um “Estado protestante para os protestantes”. As fronteiras foram gizadas sem outra lógica em mente senão a de reter no seio do “Reino Unido” a mais industrializada região da Irlanda, mantendo como refém a minoria católica – uma minoria subjugada sem direitos ou representação. Os católicos foram discriminados, negando-lhes casas, empregos, excluídos do poder e subjugados de todas as formas e feitios. Enquanto isso, os protestantes foram constantemente incitados ao ódio contra os seus vizinhos católicos.
E agora..?
Dum ponto de vista formal (mas apenas dum ponto de vista formal…!) estas eleições pouco mudarão. Ganhe quem ganhar, é obrigatório a formação dum governo de coligação. O Executivo é formado pela “cooperação” entre partidos nacionalistas e unionistas. O partido mais votado num dos campos sectários (católico ou protestante) nomeia o primeiro-ministro e o outro nomeia o primeiro-ministro deputado. E apesar da nomenclatura diferente, ambos os cargos têm exatamente os mesmos poderes. E caso as nomeações sejam vetadas o executivo colapsa e novas eleições terão de ser convocadas.
Obviamente este tipo de arranjo favorece o status quo: dando aos unionistas um eterno poder de veto. Os “Acordos de Sexta-feira Santa” sempre deixaram as chaves do poder nas mãos dos unionistas. Contudo, os unionistas não estão preparados para serem os sócios menores dum governo de coligação ou, como afirmou durante a campanha um líder unionista: “nós jamais aceitaremos ser a dama-de-honor dum governo do Sinn Féin”. Escusado será dizer que esta arrogância plasmada por toda a campanha eleitoral mobilizou o eleitorado católico a ir a votos.
Apesar de mascarada pela tradicional polarização em torno da questão nacional, as eleições expressaram uma revolta real pela ausência de medidas que resolvam a crise do serviço Nacional de Saúde ou o degradar das condições de vida.
Pela sua parte, o Sinn Féin fez uma campanha “cor-de-rosa” com muitas crianças beijadas e ainda mais declarações vazias sobre “o trabalho em cooperação com outros parceiros”. Mas o Sinn Féin não precisava duma campanha agressiva em face da autodestruição do campo unionista. Ou como dizia Napoleão: nunca interrompas o teu inimigo quando ele está cometendo um erro.
Com efeito, o DUP – principal partido unionista – só no último ano conheceu 3 líderes. Sobretudo, recebeu a ira e reprovação de quem o responsabilizou pelo “Protocolo da Irlanda do Norte” no dossier do Brexit.
Nos últimos anos começaram por apoiar Theresa May, a seguir recusaram o “Soft Brexit” (que permitiria um Brexit sem fronteiras na ilha da Irlanda ou entre esta e a Ilha da Grã-Bretanha), e depois terminaram nos braços de Boris Johnson que avançou com o citado Protocolo e a “fronteira do mar irlandês”.
A “fronteira do mar Irlandês” garantiu à Irlanda do Norte um estatuto comercial à parte, mantendo as fronteiras abertas com a República da Irlanda, mas criando uma barreira alfandegária no mar da Irlanda para as mercadorias que circulem entre a Irlanda do Norte e a o resto do Reino Unido. Como é fácil de adivinhar, a solução encontrada por Boris Johnson enraiveceu os setores mais extremados dos unionistas, mas permitiu-lhe (a ele Johnson) guindar-se ao poder em Westministe- E conhecendo-se Boris Johnson tal facada nas costas “unionistas” só poderá surpreender os mais incautos..
Daqui resultou uma severa luta de passa-culpas dentro do campo unionistas, mas também uma sensação de traição e cerco. Há um sentimento crescente entre a classe trabalhadora protestante de que as suas comunidades estão em declínio, que as suas condições de vida estão mais difíceis e que foram abandonados: tanto pelo governo em Londres como pelos seus políticos locais.
Dada a incapacidade da burguesia “unionista” em proporcionar um relativo benefício aos trabalhadores protestantes (como acontecia no passado), restar-lhe-á de futuro agarrar-se ao preconceito chauvinista e vibrar o chicote do sectarismo entre católicos e protestantes.
Os unionistas mais demagogos já perceberam que a região está a acumular “material inflamável”. Os unionistas podem não ter a maioria dos votos necessária para vetar o Protocolo da Irlanda do Norte, mas poderão vir a criar a tensão e caos suficientes para, nas ruas e por meios extraparlamentares e violentos, forçarem o governo britânico a rasgar o Protocolo. Já durante a campanha, as milícias paramilitares unionistas (que sempre gozaram de extrema impunidade) não hesitaram em intimidar vários candidatos da esquerda irlandesa republicana.
Este endurecimento de posições dentro duma secção do unionismo é apenas uma face da moeda. O ambiente está a toldar-se entre os trabalhadores e as comunidades protestantes e a sua frustração pela degradação das condições de vida está a ser mal direcionada pelos políticos chauvinistas que parasitam essas comunidades.
Mas a outra face desta polarização é o abandono do campo do unionismo por parte de outros sectores. Uma camada da classe média, que já votara “Remain” no referendo do Brexit, direcionou o seu voto para o Partido da Aliança (que se define como liberal sem ser “unionista”, nem “nacionalista”). A Aliança alcançou o terceiro lugar nestas eleições com 13,5% da votação. Contudo, um setor da juventude protestante, farta do sectarismo dos partidos estabelecidos e sem terem uma representação política de referência, também aqui colocou o seu voto.
… E agora? Boris Johnson!
A Assembleia da Irlanda do Norte está agora num impasse. Mas o DUP tornou-o claro: não colaborarão com o Sinn Féin, como parceiros minoritários no executivo, sem que Londres rasgue o Protocolo da Irlanda do Norte. Reféns, como estão, dos setores unionistas mais radicalizados, não poderão consentir a tomada de posse dum Executivo liderado pelo Sinn Féin sem qualquer contrapartida que lhes possa salvar a face e apresentarem-se como a força dominante da Irlanda do Norte, tenham ou não a maioria dos votos… ou de outra maneira arriscariam o suicídio político.
Dito de outra forma: Boris Johnson está agora confrontado com uma espinhosa escolha: ou bem que tritura os acordos com a União Europeia, arriscando uma guerra comercial, ou bem que deita para o caixote do lixo os Acordos de Sexta-feira Santa, arriscando o reacender da violência sectária entre católicos e protestantes e a total destabilização da província.
Para a União Europeia é liminarmente impossível qualquer compromisso em torno da questão das fronteiras: a integridade do Mercado Único depende do controlo da circulação de mercadorias, capitais e pessoas para fora e para dentro do “espaço europeu”. Pôr fim ao protocolo significaria arriscar uma guerra comercial com a EU e tal significaria um dano gravoso para os interesses do capitalismo inglês. Porém, em última instância, o “buffoon” Boris Johnson poderá muito bem ser tentado a correr esse risco, sabendo de antemão que a sua carreira política já conheceu dias mais solarengos e que o zénite da sua popularidade coincidiu com a sua defesa intransigente do Bréxit…
Por uma Irlanda socialista unificada!
A vitória do Sinn Féin foi um rude e inesperado golpe no imperialismo britânico e na sua “União”. Durante décadas tentou esmagar o IRA e, com ele, a população católica. Empregou os meios mais brutais e falhou. Agora, 28 anos após o cessar-fogo declarado pelo IRA, o imperialismo britânico foi humilhado pelo Sinn Féin – o seu antigo braço político.
Esta derrota acendeu tremendas esperanças. A imagem dum primeiro-ministro Norte Irlandês encontrar-se com um Taoiseach (chefe de governo em gaélico) da República da Irlanda levantou as expectativas para uma tangível unificação irlandesa.
É chegada a altura de planificar e preparar a luta pela unificação irlandesa. Mas seria naïf pensar que a classe dominante britânica aceitará que uma unificação irlandesa fosse decidida pacifica e legalmente pelo voto e pela vontade popular.
Johnson e os Tories, numa lógica de autopreservação, não hesitarão em minar o caminho para a unidade da Irlanda. E o sectarismo “unionista” – um legado do colonialismo britânico que se alimenta da alienação das comunidades protestantes – não ficará passivo perante o iminente triunfo da unificação irlandesa.
Para cortar e combater o preconceito sectário e para construir uma frente para a unidade irlandesa que vá mais além do horizonte de uma só comunidade, um programa político tem de ser encontrado que seja apelativo para os trabalhadores de ambas as comunidades – católica e protestante.
No Sul, o crescimento do Sinn Féin tem tido menos relação com a questão nacional do que com a questão de classe. Tem sido baseado numa retórica de esquerda acerca da habitação, serviços de saúde ou em pôr os ricos a pagar o seu devido contributo para a sociedade (malgrado seja isso proposto através duma moderada proposta fiscal para as grandes empresas e bancos). Porém no Norte, o Sinn Féin tem estado há décadas no governo a aplicar medidas de austeridade!
E, precisamente, o que é necessário é um programa de classe que rompa com as amarras, injustiças e preconceitos do capitalismo! E a unidade de classe (entre trabalhadores católicos e protestantes) apenas pode ser forjada através da luta de classe: na luta contra o custo de vida, por melhores salários e condições de vida, as comunidades católicas e protestantes começarão a perceber quem são os seus verdadeiros aliados e quem são os seus verdadeiros inimigos: a classe capitalista.
Através da luta de classes, os trabalhadores de ambas as comunidades poderão quebrar a suspeita e inimizade secular que os separa e realmente abrir caminho para a unificação. Essa estrada estará necessariamente pavimenta pelas ideias do socialismo, pela revolução social e a criação dum Irlanda socialista unificada, como elo da revolução socialista mundial.
PUBLICADO EM MARXIST.COM