Depois do colapso da União Soviética e da contrarrevolução capitalista na China, um imenso vácuo político se abriu na ideologia e na política em escala mundial. Nestas condições, ocorreu a ressurgência do Islã político e do fundamentalismo religioso.
Os conflitos sectários das belicosas seitas religiosas, que vão do Islã ao Judaísmo, passando pelo chauvinismo hindu e pelo cristianismo, levantaram suas feias cabeças, levando a terríveis banhos de sangue, crueldades e massacres, principalmente nos antigos países coloniais e particularmente nas sociedades árabes e muçulmanas. Da reação negra de ISIL [siglas em inglês do Estado Islâmico do Iraque e do Levante – grupo jihadista no Oriente Médio – NDT] à ferocidade bestial do Talibã no Afeganistão e Paquistão, essas monstruosidades criadas pelo imperialismo no passado, têm causado o caos e estão levantando o espectro da barbárie em várias áreas. Agora, seus próprios patrões imperialistas estão uivando através de sua mídia reacionária sobre a ameaça que eles próprios cultivaram.
O arquiteto da reacionária teoria do “Choque de Civilizações” foi o notório “açougueiro do Vietnã”, Samuel P. Huntington, o principal teórico da CIA nos anos 1990. Esta teoria foi destinada a fomentar conflitos religiosos nas sociedades tanto no Oriente quanto no Ocidente, a fim de atalhar as ameaçadoras vagas da luta de classes. Embora o papel reacionário do fundamentalismo religioso não seja um fenômeno novo, seu caráter mudou dramaticamente com o surgimento do capitalismo e do imperialismo. As relações sociais e os antagonismos de classe que emergiram a partir do modo de produção capitalista, e os padrões do desenvolvimento socioeconômico desigual e combinado dos países coloniais, exacerbaram preconceitos religiosos, que vieram à tona nos períodos de reação.
Embora a maioria desses fundamentalismos religiosos tenham raízes antigas, são eles, ao mesmo tempo, modernos, e também uma resposta a esta modernidade. Por exemplo, o fundamentalismo cristão enraizou-se na rejeição dos Protestantes americanos e britânicos ao visível liberalismo teológico e à modernidade cultural do final do século XIX e início do século XX. Embora os atores e locais sejam diferentes, as mesmas tendências básicas se podem ver na ascensão do fundamentalismo religioso islâmico, hindu, judeu e outros. Eles representam um desejo reacionário e ilusório de retorno a uma utopia fictícia, o conservadorismo daqueles que não podem tolerar quaisquer ameaças aos seus direitos adquiridos e poder. Os líderes desses movimentos manipulam cinicamente os preconceitos e superstições do atraso e da ignorância, enquanto praticam ansiosamente os mesmos “pecados” e “vícios” contra os quais vociferam do púlpito ou dos minaretes.
No Paquistão, sessenta e sete anos depois de seu estabelecimento como estado, ainda há um debate raivoso sobre a base ideológica de sua criação. Os liberais afirmam que Jinnah [Muhammad Ali Jinnah, tido como fundador do Paquistão – NDT] era secular, enquanto que grandes setores do Estado e do clero insistem que o Paquistão é um Estado teocrático. De fato, ambos pontos de vista podem ser atribuídos aos discursos de Jinnah em diferentes ocasiões. Ele prometia criar um estado tanto secular quanto teológico, dependendo do contexto da audiência a que ele se dirigia em um momento particular. Contudo, presentemente, as principais formas das tendências islâmicas no Paquistão são tradicionais e conservadoras, e demasiado diversas para serem reduzidas a uma versão monolítica do Islã. Vem sendo disseminada pela mídia liberal e pela intelligentsia no Paquistão e em outros lugares, particularmente no Ocidente, uma versão absurda de que deve haver uma diferenciação entre os fundamentalistas “moderados” e “extremistas”. A experiência das últimas décadas tem mostrado que os extremistas podem se tornar moderados e vice-versa, de um momento para o outro, a depender da mudança dos interesses financeiros, das contingências estratégicas e das exigências dos patrões, mentores e patrocinadores. Este é o caso também com a patética estratégia Ghandista de “diálogo inter-religioso” para acabar com a ameaça terrorista dos fundamentalistas. Esta estratégia provou ser um fracasso total, mas de fato vem sendo desenvolvida como uma lucrativa empresa do setor das ONGs.
A cobertura exagerada e os afagos aos partidos políticos islâmicos no Paquistão fazem parte também do esforço da classe dominante de lançar os setores mais primitivos da população contra as camadas mais avançadas, a fim de perpetuar o domínio coercitivo e despótico de um capitalismo apodrecido. A turbulenta estagnação e conflagração na sociedade, por sua vez, resulta do desenvolvimento convulso e estrangulado do capitalismo paquistanês, onde as classes dominantes entraram na arena de forma historicamente tardia e economicamente débil.
A imagem da natureza desigual e combinada deste desenvolvimento é evidente na paisagem urbana do Paquistão. O Paquistão permanece de várias formas como uma sociedade rural, onde mesmo as cidades de crescimento rápido são ainda majoritariamente rurais na cultura, devido ao fluxo constante de migrantes do meio rural e ao fracasso da burguesia paquistanesa em criar um estado industrial avançado e uma sociedade moderna que pudessem absorver e desenvolver esta afluência. A maior parte das variedades de fundamentalismo islâmico que hoje prevalecem são principalmente um fenômeno urbano ou suburbano. As massas rurais podem ser de vez em quando agitadas até o pânico religioso, mas, durante séculos, estas regiões tinham tradições culturais seculares. A entrada de fluxos de caixa maciços na forma de dinheiro ilegal e a intromissão capitalista adulterada deram lugar a uma modernização fictícia. Isto destruiu a vida relativamente harmoniosa e as ricas e antigas culturas do meio rural. Contudo, em vez de aproveitar e embelezar a natureza, desfiguraram a paisagem rural com consequências ambientais e sociais desastrosas.
Houve também uma transformação nas várias escolas de pensamento islâmico com esta imposição de relações capitalistas fragmentadas. Teologicamente, a maioria das tendências islâmicas sunitas, desde os partidos do Islã político como o JUI [Jamiat Ulema-e-Islam – partido político religioso do Paquistão – NDT] ao Jamaat-e-Islami [organização islâmica baseada no Paquistão – NDT] e outros grupos, procede principalmente das seguintes tradições sunitas: o Deobandi, o Ahle-e-Hadith e os Barelvis. As tendências xiitas que surgiram no subcontinente sul-asiático são principalmente de origem persa. Mas também existem várias sub-seitas e cultos xiitas desde o Ismailia aos Alauitas, assim como certas divisões de casta como os Sayyds e os Musielis. Contudo, há uma maior tolerância e harmonia mútua entre as seitas xiitas, em comparação à recente e exacerbada beligerância e violência entre as seitas sunitas. De acordo com as tradições muçulmanas, o declínio do Islã seria sintomático com a emergência de 72 seitas.
A famosa Madrassa [escola religiosa islâmica – NDT] fundada em Deoband (agora em Uttar Pradesh, Índia), em 1866, é a base dos primórdios de Deobandi. O Ahle-e-Hadith era um ramo da tradição internacional Salafista, fortemente influenciada pelo movimento revivalista ortodoxo do Wahabismo, fundado por Mohammad Abdul Wahab (1703-1792) em Nejd, na Península Arábica. Os chefes atuais, com vínculos particularmente estreitos com a brutal monarquia árabe saudita, realizaram um despotismo atroz em conformidade com os preceitos desta versão puritana do Islã, que se remonta às origens desta tradição no século XVI. Mas até recentemente uma maioria dos sunitas no Paquistão, na medida em que estava ciente de pertencer a alguma tradição política do Islã, pertencia à tendência dos Barelvis, em homenagem a uma Madrassa fundada em 1880 na cidade de Bareilly – agora também em Uttar Pradesh, Índia.
Até o final da década de 1970, os preconceitos religiosos sectários eram tão irrelevantes que a maioria das pessoas não sabiam a que seita particular pertenciam. Xiitas e sunitas se casavam e nunca havia qualquer estigma social envolvido. No entanto, depois da draconiana ditadura de Zia, que foi uma angustiante contrarrevolução, o movimento das massas trabalhadoras foi empurrado para trás e a reação começou a dominar a sociedade. O déspota reacionário necessitava dos mulás para perpetuar seu domínio abominável através da manipulação dos setores mais primitivos da sociedade, particularmente a pequena burguesia, com a intolerância religiosa, os ódios sectários e o chauvinismo. Enquanto isto, os mulás, que nunca tiveram uma base de massas generalizada, utilizaram-se desta ditadura feroz não apenas para ganharem patrocínio do estado, como também para se entregarem ao desejo de acumular grandes riquezas e construir seus seminários e aparatos para encarcerar a sociedade. Com a traição às massas pelo lado da esquerda tradicional e das lideranças populistas, a apatia e a alienação das massas se agravaram. O astuto Zia não somente utilizou o Islã político para assegurar seu domínio, como também despertou ódios sectários islâmicos para dividir e atomizar ainda mais as classes trabalhadora e camponesa. Politicamente, ele tentou remodelar o partido tradicional das classes dominantes paquistanesas, a Liga Muçulmana, com conotações islâmicas. As várias Ligas Muçulmanas (N, Q, Z, A etc.) são os filhos adotivos do brutal legado de Zia.
As massas continuaram a sofrer mesmo depois da queda de Zia com a introdução de um patético ciclo de regimes burgueses democráticos. O segundo governo do PPP de Benazir Bhutto chegou a atribuir ao general da reserva Naseerullah Babar, enquanto seu Ministro do Interior, a tarefa de organizar, armar e treinar o Talibã, para constituí-lo como uma força militar que pudesse capturar Cabul. Era essa a característica secular desta mulher que foi primeira-ministra, e que rejeitou e descartou o legado socialista de seu pai e do PPP em nome da democracia e do secularismo. O Talibã sob as ordens de Mullah Omer criou o emirado islâmico e lançou tudo o que havia de infernal sobre os oprimidos, particularmente as mulheres, no Afeganistão. A palavra Talibã significa estudantes e eles estudam esta educação religiosa fundamentalista em Madrassas Deobandi de distintas facções da JUI. Agora, Abu Bakar Baghdadi e o ISIL estão tentando imitar aquele emirado afegão para criar este monstruoso estado islâmico. Em ambos os casos, pelo menos inicialmente, os EUA e os imperialistas europeus foram os principais apoiadores e financiadores desses bestiais fanáticos islâmicos.
Os principais partidos islâmicos que representam essas tradições sectárias são o JUI, representando a escola Deobandi, o Jamaat-e-Islami, que é principalmente uma manifestação da Ahle-e-Hadith, e do JUP anteriormente, e o PAT de Qadri, que vem tentando cercar os prédios estatais em Islamabad com suas longas marchas e sentadas, e que é a moderna versão reformista da seita Barelvi. Seu caráter não é menos reacionário do que o das outras seitas. Todos estes partidos, e muitos outros grupos que emergem da política islâmica, usaram extensivamente o trabalho social e as operações de resgate de desastres naturais para expandir sua base social. O Jamaat ul Dawa, profundamente vinculado à agência de espionagem estatal autônoma, o ISI, anteriormente Lashkar a Tayyaba, organização que foi acusada do bombardeio terrorista em Bombaim em 2008, é o que mais se destaca. Esta é uma prática realizada pela maioria das organizações religiosas sejam elas cristãs, judias, hindus ou muçulmanas. Mas com a intensificação do sofrimento, as massas estão desnorteadas e desesperadas por encontrar uma saída dessa orgia de escravidão capitalista e repressão. Nestas depressivas circunstâncias econômicas, sociais e culturais, a adesão a uma rede islâmica é percebida como provedora de um sentimento de segurança entre os setores mais pobres e alienados, incluindo os elementos lúmpens urbanos e rurais. A pobreza ganha a forma de simplicidade e austeridade religiosa, em meio a contínuas humilhações e tentações.
Apesar dos sonhos utópicos de um estado do bem-estar islâmico, todos estes partidos, grupos terroristas fundamentalistas e seitas defendem o capitalismo, não importando quantas vezes o neguem. A este respeito, seu conflito com o imperialismo é temporário e superficial. Até o final dos anos 1980, estavam na vanguarda da Jihad do dólar e da repressão à esquerda, instigados pelo imperialismo. O Islã político somente está na arena devido ao apoio de setores do estado nesta época de rápida erosão da reação moderada. Uma vez que entre em irrupção o movimento de massas, a luta de classes vai colocar em primeiro plano a divisão real da riqueza material e dos recursos entre o governo e as classes trabalhadoras. Somente a vitória de uma revolução proletária pode dar um fim a esta privação e alienação insuportável. Isto poderia ser o início do fim do Islã político no Paquistão, e a religião se tornará um assunto privado dos indivíduos, sem qualquer pressão externa, ditados sociais, interferências ou imposições de adotar qualquer seita ou religião particular. Uma vitória revolucionária socialista é a única garantia para desafiar e evitar a iminente ameaça de uma barbárie selvagem que representa um risco terrível à existência da civilização humana no Paquistão.