Em 1780 a imperatriz russa Catarina II e seu hóspede, o imperador habsburgo José II, visitaram as novas terras ao norte do mar Negro, tomadas ao Império Otomano e anexadas pela Rússia. O governador das novas províncias, e também favorito de Catarina II, o príncipe George Potemkin, fez o possivel para impressionar seus nobres visitantes. As estradas pelas quais Catarina e José passariam foram "asseadas". Tudo que pudesse aborrecer ou desagradar os reais visitantes foi disfarçado por trás de tapumes ou decorações. Apenas gente de aparência agradável, homens esbeltos e belas mulheres, tiveram a oportunidade de ver os soberanos itinerantes. O trabalho titânico mais tarde seria básico para tornar-se uma lenda bem conhecida sobre as aldeias de papelão onde camponeses eram substituídos por atores. Daí a expressão "aldeias de Potemkin" tornar-se sinônima de mistificação e obra de fachada.
Passaram-se 220 anos desde a gloriosa viagem, e a lenda das "aldeias de Potemkin" permanece viva e sólida na Rússia de nossos dias. E emergiu mais uma vez nas celebrações do trecentésimo aniversário da fundação de São Petersburgo.
São Petersburgo – ou Leningrado, como era conhecida durante a era soviética – é uma das mais belas cidades da Europa, mas enfrenta tempos difíceis agora. Em 1991, durante o levante "anti-comunista", a cidade recuperou seu antigo nome e com isto dissabores estavam sendo preparados para sua população.
A nova Rússia capitalista não tem dinheiro para preservar os tesouros da cidade. Os velhos edifícios históricos no centro urbano estão em ruínas. O furto dos arquivos e museus da cidade assumiu hoje em dia características epidêmicas. Os transportes públicos e os serviços comunitários arruinaram-se. A administração da cidade desde o começo dos anos 1990s notabilizou-se pela desenfreada corrupção. Vale a pena frisar que o presidente russo Vladimir Putin foi membro da administração durante anos e envolveu-se em várias atos de corrupção.
Em 28 de maio de 2003, a cidade iniciou os eventos comemorativos dos 300 anos desde que Pedro o Grande criou a nova capital russa. As atuais autoridades russas estão sempre a proclamar que não dispõem de fundos para os serviços sociais, para os trabalhadores, para os professores e também para as forças armadas, mas sempre conseguem encontrar recursos para celebrações faustosas e a construção de monumentos suntuosos.
O período de Ieltsin foi repleto de celebrações e festividades infindas – o 750º aniversário de Moscou, o 200º aniversário da universidade Puchkin, e de centenas de outras celebrações. Milhões de dólares foram gastos em espetáculos. Essas celebrações eram o motivo real para que homens de negócio firmassem novos contratos e funcionários corruptos os manipulassem. É o comportamento típico de muitos regimes apodrecidos diante do declínio e do colapso.
Putin também tinha evidentes razões políticas para tomar parte nestas celebrações. Ele convidou líderes políticos de muitos paises, inclusive dos Estados Unidos, da Comunidade Européia, da Índia e da China. O presidente russo tencionava usar as celebrações para melhorar a imagem da Rússia como potência mundial, imagem esta seriamente prejudicada aproximadamente na última década. Putin também planejava utilizar o encontro para negociações sérias com o presidente americano G.W. Bush e melhorar as relações entre os dois paises após a guerra no Iraque, onde empresas russas perderam seus contratos com a ocupação americana.
Antes da Revolução de 1917, a dinastia Romanov sozinha possuía cinco
grandes palácios: o Perterhof, o Czerskaoe Sélo, o Gatchina, o Pavlovsk e o
Oraniembaum. Muito mais, portanto, do que outros monarcas europeus possuíam.
O segredo era simples – os monarcas absolutos russos podiam tomar o dinheiro
do estado sem nenhuma limitação da parte do parlamento ou de outro qualquer
órgão legislativo. No decorrer da época soviética, o capitalismo ocidental
demagogicamente atacava as luxuosas condições de vida da burocracia
soviética. Mas o tom de suas críticas mudou, agora que os dirigentes "democráticos"
da "Nova Rússia" de hoje aprontam-se para viver no mesmo estilo do Czar.
Ieltsin foi o primeiro. Sua administração gastou cerca de 3 bilhões de dólares na reconstrução de apartamentos do Kremlin para o uso do "primeiro presidente russo". Para Ieltsin, várias novas residências foram construídas por toda Rússia. Estas vilas substituíram as datchas(a) do antigo "secretário-geral" soviético(b), abandonadas durante o colapso da União Soviética. Naturalmente, todos os trabalhos foram realizados por empresas estrangeiras que levaram os materiais de construção de fora da Rússia. Tudo isto feito num país cuja economia estava em colapso, e pedia constantemente a ajuda do FMI e do Banco Mundial.
Hoje, Putin está construindo a chamada "residência presidencial", o palácio Constantinovski, da "Nova Petersburgo. Não só abrigará luxuosos apartamentos, mas também contará com amplo parque, e até mesmo cais para o iate presidencial. Em volta do palácio, várias residências luxuosas serão construídas para visitantes estrangeiros.
Em geral, as autoridades russas planejam expender mais ou menos um bilhão e duzentos mil dólares nestas celebrações. Teoricamente, toda esta quantia será empregada somente na reconstrução de edifícios históricos, na infra-estrutura urbana e nas próprias celebrações. Mas a maior parte dos trabalhos infra-estruturais ainda não terminou (muito embora as celebrações já tenham começado), e parece que não findará antes do fim do ano. Isto é típico. De efeito, quase dez anos se passaram desde que os trabalhos de restauração de apenas uma estação do metrô começaram! A população, a imprensa e até as próprias autoridades dizem abertamente que o dinheiro para esses projetos foi surrupiado.
Vemos o mesmo quadro na restauração de edifícios históricos. Muitos deles, estão realmente bloqueados por tablados protetores. O resto do dinheiro foi simplesmente gasto na camuflagem de sítios desagraveis. Exatamente como no século 18, montanhas de entulhos próximas ao aeroporto foram encobertas com pranchas e cercas, mas as rodovias principais receberam reparos. Conforme alguns jornais, até ativaram-se ventiladores especiais para afastar o mau-cheiro.
Às vezes, a "restauração" assume formas estranhas. Por exemplo, o velho edifício do senado, famoso momento de Pedro o Grande, foi posto de lado para que uma empresa hoteleira francesa o transformasse num hotel de alta classe, enquanto o arquivo público e a enorme coleção do herbário, alojados no edifício, foram jogados nas ruas. As autoridades apenas ignoraram os protestos dos funcionários e dos historiadores. Elas necessitam de hotéis e não de "papéis velhos"!
Os hóspedes de destaque e personagens muito importantes aguardam passeios pela cidade, espetáculos e mesmo comemorações noturnas no Neva. No século 18, as autoridades interditavam celebrações e lugares públicos a pessoas que não portavam vestes não-européias, o que significava "acesso apenas à nobreza’. Hoje, a política "recomendada" em relação à gente das cercanias é mantê-la afastada das áreas onde ministros, homens de negocio e presidentes participarão das comemorações. Ela ou permanecerá em casa ou simplesmente sairá da cidade. O centro urbano está de fato interditado pela política. Todos os "indesejáveis" ou "suspeitos" foram removidos ou presos. O principal aeroporto urbano vai ser fechado nos dias comemorativos. A linha de trem entre São Petersburgo e Moscou está igualmente fechada. Ninguém deve perturbar a classe dominante no curso das celebrações.
As pessoas comuns só pensam em como fugir de São Petersburgo. Esse espetáculo representa meramente transtornos para elas e festividades destinadas à elite. Para a esquerda e organizações de trabalhadores, as comemorações significam simplesmente mais repressão. No entanto, mais cedo ou mais tarde tudo isto mudará. Trotsky escreveu em "Para onde está indo a URSS?" que a classe operária despenderia dinheiro não em clubes para a burocracia, mas para suprir as necessidades do povo trabalhador. O proletariado vitorioso fará a mesma coisa de novo no futuro, em seguida à nova Revolução Russa, o que na verdade fez após 1917. Os novos palácios, as luxuosas casas de campo serão outra vez transformados em museus para fruição de todos.
Junho de 2003.
N. do trad. – (a) em russo, casas de campo; (b) referência a Stalin.
Tradução de Odon Porto de Almeida