Por ocasião do 50º aniversário da Comuna de Paris, em 1921, Leon Trotsky escreveu este brilhante artigo à luz da então recente Revolução Russa de 1917 e da posterior Guerra Civil da qual saiu vitorioso o Exército Vermelho comandado pelo próprio Trotsky.
A cada vez que estudamos a história da Comuna descobrimos um novo matiz graças à experiência que nos foi proporcionada pelas lutas revolucionárias posteriores, não apenas a revolução russa, mas também a alemã e a húngara. A guerra franco-prussiana foi uma explosão sangrenta, prenúncio de uma imensa carnificina mundial; a Comuna de Paris foi como um relâmpago, anunciando uma revolução proletária mundial.
A Comuna nos mostrou o heroísmo das massas operárias, sua capacidade para unir-se em bloco, sua generosidade de se sacrificar pelo futuro... Mas, ao mesmo tempo, evidenciou a incapacidade das massas de encontrar seu caminho, sua indecisão na direção do movimento, sua tendência fatal a deter-se depois dos primeiros êxitos permitindo desta forma que o inimigo se recuperasse e retomasse suas posições.
A Comuna chegou demasiado tarde. Teve todas as possibilidades de tomar o poder em 4 de setembro, o que teria permitido ao proletariado de Paris colocar-se à cabeça de todos os trabalhadores do país em sua luta contra as forças do passado, tanto contra Bismarck quanto contra Thiers. Mas o poder caiu nas mãos dos charlatães democráticos, os deputados de Paris. O proletariado parisiense não tinha nem um partido nem líderes a que estivessem ligados estreitamente através de lutas anteriores. Os patriotas pequeno-burgueses, que se acreditavam socialistas e buscavam o apoio dos operários, careciam completamente de auto-confiança. Não faziam mais que minar a confiança do proletariado em si mesmo, procurando continuamente advogados famosos, jornalistas, deputados, cuja única bagagem consistia em uma dúzia de frases vagamente revolucionárias, para lhes confiar a direção do movimento.
A razão pela qual Jules Favre, Picard, Garnier-Pagès e companhia tomaram o poder em Paris em quatro de setembro é a mesma que permitiu a Paul-Boncour, A. Varenne, Renaudel e muitos outros tornarem-se durante um período de tempo os amos do partido do proletariado.
Por suas preferências, seus hábitos intelectuais e por seu comportamento, os Renaudel e os Boncour, e mesmo os Longuet e Pressemane, estão muito mais próximos de Jules Favre e de Jules Ferry que do proletariado revolucionário. E justamente porque Favre, Simon, Picard e os demais abusaram da fraseologia democrático-liberal, seus filhos e seus netos tiveram de recorrer à fraseologia socialista. Mas se trata de filhos e netos dignos de seus pais, continuadores de sua obra. E, quando se trata de se decidir não a composição de uma camarilha ministerial e sim que classe deve tomar o poder, Renaudel, Varenne, Longuet e seus iguais estarão no campo de Millerand – colaborador de Gallifet, o verdugo da Comuna... Quando os charlatães reacionários dos salões e do Parlamento se encontram cara a cara, na vida, com a Revolução, nunca a reconhecem.
O partido operário – o verdadeiro – não é instrumento de manobras parlamentares, é a experiência acumulada e organizada do proletariado. Somente com a ajuda do partido, que se apóia em toda sua história passada, que prevê teoricamente a direção que os acontecimentos seguirão; que prevê suas etapas e define as linhas de ação precisas, pode o proletariado se libertar da necessidade de recomeçar constantemente sua história: suas dúvidas, sua indecisão, seus erros.
O proletariado de Paris carecia de tal partido. Os socialistas burgueses, dos quais estava repleta a Comuna, elevavam seus olhares para o céu esperando um milagre ou uma palavra profética, duvidavam e, durante esse tempo, as massas andavam às cegas, desorientadas por causa da indecisão de uns e da fraqueza de outros. O resultado foi que a Revolução explodiu no meio delas demasiado tarde. Paris estava cercada.
Passaram-se seis meses até que o proletariado recuperasse a memória das revoluções anteriores, de suas lições, dos combates anteriores, das reiteradas traições da democracia, e tomasse o poder.
Estes seis meses foram uma perda irreparável. Se, em setembro de 1870, à cabeça do proletariado francês se encontrasse o partido centralizado da ação revolucionária, toda a história da França e, com ela, toda a história da humanidade teria tomado outra direção.
Se, em 18 de março, o poder passou às mãos do proletariado de Paris, não o foi porque este tivesse se apoderado dele conscientemente e sim porque seus inimigos haviam abandonado a capital.
Estes últimos iam perdendo terreno constantemente, os operários os desprezavam e odiavam; perderam a confiança da pequena burguesia e os grandes burgueses temiam que já não fossem capazes de defendê-los. Os soldados estavam enfrentados aos seus oficiais. O governo fugiu de Paris para concentrar em outra parte suas forças. Então, o proletariado se tornou o amo da situação.
Mas não entendeu isto até o dia seguinte. A Revolução caiu-lhe sobre os ombros sem que a esperasse.
Este primeiro êxito foi uma nova fonte de passividade. O inimigo havia fugido a Versalhes. Por acaso não era isto uma vitória? Nesse momento teria sido possível esmagar a facção governamental sem maiores efusões de sangue. Em Paris, teria sido possível deter todos os ministros, a começar por Thiers. Ninguém teria movido um dedo para defendê-los. Mas não se fez isso. Não havia um partido organizado de forma centralizada capaz de uma visão de conjunto sobre a situação e com organismos especiais para executar as decisões.
O restante da infantaria não queria retroceder para Versalhes. Os vínculos que ligavam oficiais e soldados eram muito frágeis. E se existisse em Paris um centro dirigente de partido, haveria ele introduzido entre as tropas em retirada – visto que havia a possibilidade de retirada – algumas centenas ou pelo menos algumas dezenas de operários leais, aos quais seriam dadas instruções para alimentar o descontentamento dos soldados contra os oficiais e aproveitar o primeiro momento psicológico favorável para liberar a tropa de seus comandantes e conduzi-la a Paris para se unir ao povo. Teria sido fácil fazer isso, segundo confessaram até mesmo os partidários de Thiers. Mas ninguém pensou nisso. Não havia ninguém que pensasse. Nos grandes acontecimentos, por seu lado, tais decisões somente podem ser tomadas por um partido revolucionário que espera uma revolução, que se prepara para ela, que se mantém firme, um partido que está habituado a ter uma visão de conjunto e que não teme a ação.
E o proletariado francês carecia exatamente de um partido de combate.
O Comitê Central da Guarda Nacional era, de fato, um Conselho de Deputados dos operários armados e da pequena burguesia. Tal Conselho, eleito diretamente pelas massas que tomaram o caminho da revolução, representa uma excelente estrutura executiva. Mas, ao mesmo tempo, e justamente por causa de sua ligação imediata e elementar com as massas que se encontram tal e como as encontrou a revolução, reflete não somente os pontos fortes das massas, como também suas debilidades, e reflete mais as debilidades: sua evidente indecisão, sua tendência a ficar esperando, sua tendência à inatividade depois dos primeiros êxitos.
O Comitê Central da Guarda Nacional necessitava de direção. Era indispensável dispor de uma organização que encarnasse a experiência política do proletariado e que estivesse presente em todos os lugares – não somente no Comitê Central, mas também nas legiões, nos batalhões, nas camadas mais profundas do proletariado francês. Por meio dos Conselhos de Deputados – que, neste caso, eram órgãos da Guarda Nacional – o partido teria podido estar continuamente em contato com as massas, monitorando dessa forma o seu estado de ânimo; seu centro dirigente teria podido lançar diariamente palavras de ordem que os militantes do partido teriam podido difundir entre as massas, unindo seu pensamento e sua vontade.
Mal o governo havia se retirado para Versalhes, a Guarda Nacional já se apressou a declinar de toda responsabilidade, precisamente quando esta responsabilidade era enorme. O comitê central imaginou eleições “legais” para a Comuna. Estabeleceu conversações com os vereadores de Paris para se cobrir, pela direita, com a “legalidade”.
Se, ao mesmo tempo, tivesse preparado um ataque violento contra Versalhes, as conversações com os vereadores teriam significado uma astúcia militar plenamente justificada e de acordo com os objetivos. Mas, na realidade, estas conversações foram mantidas para tentar que um milagre evitasse a luta. Os radicais pequeno-burgueses e os socialistas idealistas, ao respeitar a “legalidade” e as pessoas que encarnavam uma parcela do Estado “legal”, deputados, vereadores etc., esperavam, desde o mais profundo de seu ser, que Thiers se detivesse respeitosamente ante a Paris revolucionária tão logo quanto esta se dotasse de uma Comuna “legal”.
A passividade e a indecisão viram-se favorecidas neste caso pelo sagrado princípio da federação e da autonomia. Paris, como podem comprovar, não é mais que uma Comuna entre outras. Paris não quer se impor a ninguém; não luta pela ditadura, em todo caso seria a “a ditadura do exemplo”.
Em resumidas contas, isto não era mais que uma tentativa de substituir a revolução proletária que estava se desenvolvendo por uma reforma pequeno-burguesa: a autonomia comunal. A verdadeira tarefa revolucionária consistia em assegurar ao proletariado o Poder em todo o país. Paris deveria servir de base, de ponto de apoio, de praça de armas. Para alcançar este objetivo era necessário derrotar Versalhes sem perda de tempo e enviar por toda a França agitadores, organizadores, forças armadas. Era necessário entrar em contato com os simpatizantes, convencer aos que duvidavam e quebrar a oposição dos adversários. Mas, em vez desta política de ofensiva e agressão, a única que poderia salvar a situação, os dirigentes de Paris tentaram se limitar à sua autonomia comunal: eles não atacariam aos demais se estes não os atacassem; cada cidade deveria recuperar o sagrado direito de autogoverno. Esta tagarelice idealista – uma espécie de anarquismo mundano – camuflava na realidade a covardia ante uma coalizão revolucionária que havia necessidade de se levar até suas últimas conseqüências, pois, de outra forma, não se deveria ter começado...
A hostilidade a uma organização centralizada – uma herança do localismo e do autonomismo pequeno-burguês – é, sem sombra de dúvidas, o ponto débil de certa fração do proletariado francês. Para alguns revolucionários, a autonomia das sessões, dos bairros, dos batalhões, das cidades, é a suprema garantia da verdadeira ação e da independência individual. Mas isto não foi mais que um grande erro que custou muito caro ao proletariado francês.
Sob a forma de “luta contra o centralismo despótico” e contra a disciplina “asfixiante” livra-se um combate pela autopreservação dos diversos grupos e subgrupos da classe operária, por seus mesquinhos interesses, com seus pequenos líderes de bairro e seus oráculos locais. A classe operária em sua totalidade, embora conserve a originalidade de sua cultura e seus matizes políticos, pode agir com método e firmeza, sem ir a reboque dos acontecimentos e dirigindo seus golpes mortais contra os pontos fracos do inimigo, desde que esteja sendo liderada, acima de bairros, seções e grupos, por um aparelho centralizado e unido por uma disciplina férrea.
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O partido não cria a revolução ao seu gosto, não escolhe conforme lhe convém o momento para tomar o poder, mas intervém ativamente em todas as circunstâncias, monitora a todo o momento o estado de ânimo das massas e avalia as forças do inimigo, determinando assim o momento propício para a ação definitiva. Esta é a mais difícil de todas as suas tarefas. O partido não conta com soluções que valham para todos os casos. Necessita de uma teoria justa, de um contato estreito com as massas, de uma certeira compreensão da situação, de uma visão revolucionária e de uma grande firmeza. Quanto mais profundamente penetrar um partido revolucionário em todas as esferas da luta revolucionária e quanto mais unido estiver em torno de um objetivo através da disciplina, melhor e mais rapidamente pode realizar sua missão.
A dificuldade consiste em ligar estreitamente esta organização centralizada de partido, soldada intimamente por uma disciplina de ferro, ao movimento das massas, com seus fluxos e refluxos. Não se pode conquistar o poder sem uma poderosa pressão revolucionária das massas trabalhadoras. Mas, nesta ação, o elemento preparatório é inevitável. E quanto melhor compreenda o partido a conjuntura e o momento, melhor preparadas estarão as bases de apoio, melhor repartidas estarão as forças e seus objetivos, mais seguro será o êxito e menos vítimas causará. A correlação entre uma ação cuidadosamente preparada e o movimento de massas é a tarefa político-estratégica da tomada do poder.
A comparação entre o 18 de março de 1871 e o 7 de novembro de 1917 é, a partir deste ponto de vista, muito instrutiva. Em Paris, houve absoluta falta de iniciativa para a ação por parte dos círculos dirigentes revolucionários. O proletariado armado pelo governo burguês era, de fato, dono da cidade e dispunha de todos os meios materiais do poder – canhões e fuzis – mas não se deu conta disso. A burguesia fez uma tentativa de arrebatar a esse gigante suas armas: tentou roubar ao proletariado seus canhões. Mas fracassou na tentativa. O governo fugiu aterrorizado de Paris a Versalhes. O campo estava livre. Mas o proletariado só se deu conta de que era o amo de Paris no dia seguinte. Os “chefes” iam a reboque dos acontecimentos, tomavam nota deles somente quando já se haviam produzido e faziam de tudo para restringir o alcance revolucionário.
Em Petrogrado, os acontecimentos se desenvolveram de forma muito diferente. O partido caminhava firme e decidido para a conquista do poder. Distribuiu seus militantes por todas as partes, reforçando todas as posições e aproveitando todas as ocasiões para aprofundar a brecha entre os operários e a guarnição, de um lado, e o governo, de outro.
A manifestação armada das jornadas de julho foi uma vasta verificação que fez o partido para sondar o grau de união no seio das massas e a capacidade de resistência do inimigo. Esta verificação se transformou em luta de postos avançados. Fomos rechaçados, mas, ao mesmo tempo, mediante a ação, se estabeleceu a conexão entre o partido e as mais amplas massas. Durante os meses de agosto, setembro e outubro desenvolveu-se um poderoso fluxo revolucionário. O partido o aproveitou e aumentou de maneira considerável seu apoio no seio da classe operária e da guarnição. Depois, a harmonia entre os preparativos da conspiração e a ação de massas foi quase automática. O Segundo Congresso dos Sovietes foi marcado para 7 de novembro. Toda nossa agitação anterior devia conduzir à tomada do poder pelo Congresso. O golpe de Estado ficou marcado para 7 de novembro. Tratava-se de um fato perfeitamente conhecido e compreendido pelo inimigo. Por isso, Kerensky e seus conselheiros tentaram consolidar sua posição em Petrogrado, na medida do possível, face ao momento decisivo. Sobretudo, necessitavam retirar da capital o setor mais revolucionário da guarnição. De nossa parte, aproveitamo-nos desta tentativa de Kerensky para derivar dela um novo conflito que teve importância decisiva. Acusamos abertamente ao governo de Kerensky – e nossa acusação se viu depois confirmada por escrito em um documento oficial – de planejar o afastamento de um terço da guarnição de Petrogrado, não por considerações de ordem militar e sim por interesses contrarrevolucionários. O conflito fez com que estreitássemos ainda mais nossas relações com a guarnição e implicou em que esta última se colocasse uma tarefa bem definida: apoiar o Congresso dos Sovietes marcado para 7 de novembro. E, visto que o governo insistia – embora de forma pouco enérgica – em que a guarnição fosse afastada, com o pretexto de se verificar as razões militares do projeto governamental, criamos no Soviete de Petrogrado, que já dominávamos, um Comitê revolucionário de guerra.
Desta forma, dotamo-nos de um órgão puramente militar, à cabeça das tropas de Petrogrado, que era realmente um instrumento legal de insurreição armada. Ao mesmo tempo, nomeamos comissários (comunistas) em todas as unidades militares, nos arsenais militares, etc. A organização militar clandestina executava as tarefas técnicas especiais e proporcionava ao Comitê Revolucionário de Guerra militantes de plena confiança para as operações militares de grande importância. O essencial do trabalho de preparação e de realização da insurreição armada era feito abertamente, com um método e uma naturalidade que a burguesia, com Kerensky à cabeça, mal percebeu o que se passava debaixo de seus próprios narizes. (Em Paris, o proletariado somente compreendeu que era o dono da situação imediatamente após sua vitória real, uma vitória que, por outro lado, não havia buscado conscientemente. Em Petrogrado, foi o contrário. Nosso partido, com o apoio dos operários e da guarnição, apoderou-se do poder, e a burguesia, que passou uma noite bastante tranquila, somente se deu conta à luz do dia de que o governo se encontrava já nas mãos de seus coveiros.)
No que dizia respeito à estratégia, deram-se em nosso partido muitas divergências de opinião.
Como se sabe, parte do Comitê Central declarou-se em oposição à tomada do poder, pois acreditava que ainda não havia chegado o momento de agir, que Petrogrado encontrar-se-ia isolada do restante do país, que os proletários não contariam com o apoio dos camponeses, etc.
Outros camaradas acreditavam que não prestávamos atenção suficiente aos detalhes do complô militar. Em outubro, um dos membros do Comitê Central exigia que se cercasse o Teatro Alexandrina, sede da Conferência Democrática, e que se proclamasse a ditadura do Comitê Central do Partido. Ele disse: “ao concentrar nossa agitação, bem como o nosso trabalho de preparação militar para o momento do 2º Congresso, estamos mostrando o nosso plano para o adversário, estamos dando a ele a possibilidade de preparar-se e até mesmo de aplicar-nos um golpe preventivo”. Mas não há dúvidas de que a tentativa de um complô militar e o cerco do Teatro Alexandrina teriam sido elementos alheios ao desenvolvimento dos acontecimentos que teriam provocado o desconcerto das massas. Inclusive no Soviete de Petrogrado, em que nossa fração era majoritária, uma ação que se antecipasse ao desenvolvimento lógico da luta não teria sido compreendida nesse momento, sobretudo no seio da guarnição, na qual ainda havia alguns regimentos que hesitavam e nos quais não se podia confiar, principalmente a cavalaria. A Kerensky ter-lhe-ia resultado muito mais fácil esmagar um complô inesperado para as massas que atacar a guarnição, e ter-lhe-ia permitido consolidar-se muito mais em sua posição: a defesa de sua inviolabilidade em nome do futuro Congresso dos Sovietes. A maioria do Comitê Central rejeitou com razão o plano de cerco à Conferência Democrática. A conjuntura havia sido avaliada perfeitamente: a insurreição armada, com um mínimo de derramamento de sangue, triunfou precisamente no dia que havia sido marcada, de forma prévia e aberta, para a convocação do 2º Congresso dos Sovietes.
Contudo, essa estratégia não pode ser convertida em norma geral, necessitou de condições específicas. Ninguém acreditava já na guerra contra a Alemanha, e mesmo os soldados menos inclinados para a revolução não queriam mais marchar ao front. E embora somente por esta razão a guarnição inteira estivesse do lado dos operários, ela se reafirmava cada vez mais em sua decisão à medida que se tornavam conhecidas as maquinações de Kerensky. Mas o estado de ânimo da guarnição de Petrogrado tinha uma causa ainda mais profunda na situação do campesinato e no desenvolvimento da guerra imperialista. Se a guarnição tivesse se dividido e Kerensky tivesse a oportunidade de se apoiar em alguns regimentos, nosso plano teria fracassado. Os elementos puramente militares do complô (conspiração e grande rapidez na ação) teriam prevalecido. E fica claro que teria sido necessário escolher outro momento para a insurreição.
A Comuna também teve a possibilidade de se apoderar dos regimentos, inclusive daqueles formados por camponeses que haviam perdido totalmente a confiança e o respeito pelo poder e por seus comandantes. Contudo, nada fez nesse sentido. A culpa não deve ser lançada às relações entre os camponeses e a classe operária e sim à estratégia revolucionária.
O que pode acontecer nesse sentido na Europa atual? Não é nada fácil de prever. Contudo, levando em consideração que os acontecimentos se desenvolvem lentamente e que os governos burgueses aprenderam bem a lição, é de prever que o proletariado terá que superar grandes obstáculos para ganhar a simpatia dos soldados no momento preciso. Será necessário que a revolução realize um ataque hábil no momento adequado. O dever do partido é preparar-se para isso. Justamente por essa razão deverá conservar e acentuar seu caráter de organização centralizada que, dirigindo abertamente o movimento revolucionário das massas, é, ao mesmo tempo, um aparato clandestino para a insurreição armada.
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A questão da elegibilidade do comando foi um dos motivos do conflito entre a Guarda Nacional e Thiers. Paris se recusou a aceitar o comando designado por Thiers. Varlin formulou imediatamente a reivindicação de que todos os comandos da Guarda Nacional, sem exceção, fossem eleitos pelos próprios guardas nacionais. Foi esse o principal apoio do Comitê Central da Guarda Nacional.
Esta questão deve ser considerada a partir de duas perspectivas: a política e a militar. Ambas estão relacionadas entre si, mas é necessário diferenciá-las. A tarefa política consistia em depurar a Guarda Nacional dos comandos contrarrevolucionários. O único meio para conseguir isto era a total elegibilidade, visto que a maioria da Guarda Nacional estava composta por operários e pequeno-burgueses revolucionários. Ainda mais, o lema da elegibilidade devia ser estendido também à infantaria. De um só golpe Thiers teria sido privado de sua principal arma, a oficialidade contrarrevolucionária. Mas para realizar este plano ao proletariado lhe faltava um partido, uma organização que dispusesse de adeptos em todas as unidades militares. Em uma palavra, a elegibilidade, neste caso, não tinha como objetivo imediato dotar os batalhões de comandos adequados, e sim de liberá-los do comando dependente da burguesia. Teria funcionado como uma cunha para dividir o exército em duas partes, ao longo de uma linha de classe. Assim sucederam as coisas na Rússia na época de Kerensky, sobretudo às vésperas de Outubro.
Mas quando o exército se libera do antigo aparato de comando inevitavelmente se produzem a fragilização da união em suas fileiras e a redução de seu espírito de combate. O novo comando eleito é freqüentemente bastante débil no terreno técnico-militar e no que diz respeito à manutenção da ordem e da disciplina. De forma que, quando o exército se libera do velho comando contrarrevolucionário que antes o oprimia, surge a questão de dotá-lo de um comando revolucionário capaz de cumprir sua missão. E este problema não pode ser resolvido simplesmente através de eleições. Antes que a grande massa de soldados pudesse adquirir experiência suficiente para selecionar seus comandantes, a revolução seria esmagada pelo inimigo, que aprendeu a escolher seus comandantes durante séculos. Os métodos de democracia formal (a simples elegibilidade) devem ser complementados e, em certa medida, substituídos por medidas de seleção de cima para baixo. A revolução deve criar uma estrutura composta de organizadores experientes, seguros, merecedores de uma confiança absoluta, dotada de plenos poderes para escolher, designar e educar o comando. Se o particularismo e o autonomismo democrático são extremamente perigosos para a revolução proletária em geral, são ainda dez vezes mais perigosos para o exército. Isto nos demonstrou o exemplo trágico da Comuna.
O Comitê Central da Guarda Nacional baseava sua autoridade na elegibilidade democrática. Mas quando teve necessidade de desdobrar ao máximo sua iniciativa na ofensiva, sem a direção de um partido proletário perdeu o rumo e se apressou em transmitir seus poderes aos representantes da Comuna, que necessitava de uma base democrática mais ampla. E brincar de eleições foi o grande erro nesse momento. Mas, uma vez celebradas as eleições e reunida a Comuna, teria sido necessário que ela mesma criasse um órgão que concentrasse o poder real e reorganizasse a Guarda Nacional. Mas não foi assim. Junto à Comuna eleita estava o Comitê Central, cujo caráter eletivo lhe conferia uma autoridade política graças à qual podia enfrentar àquela. Ao mesmo tempo, via-se assim privado da energia e da firmeza necessárias nas questões puramente militares que, depois da organização da Comuna, justificavam sua existência. A elegibilidade, os métodos democráticos não são mais que uma das armas à disposição do proletariado e de seu partido. A elegibilidade não pode ser de forma alguma um fetiche, uma panacéia contra todos os males. É necessário combiná-la com as designações. Mas, uma vez criada a Comuna, dever-se-ia reorganizar toda a Guarda Nacional com mão firme, dotá-la de comando seguro e instaurar um regime disciplinar muito severo. A Comuna não o fez, privando-se por isso de um poderoso centro dirigente revolucionário. Por essa razão, foi esmagada.
Podemos folhear página por página toda a história da Comuna e encontraremos uma só lição: é necessária a enérgica direção de um partido. O proletariado francês se sacrificou pela Revolução como nenhum outro o fez. Mas também foi enganado mais que outros. A burguesia o deslumbrou muitas vezes com todas as cores do republicanismo, do radicalismo, do socialismo, para melhor aprisioná-lo nas correntes do capitalismo. Por meio de seus agentes, de seus advogados e de seus jornalistas, a burguesia colocou uma grande quantidade de fórmulas democráticas, parlamentares, autonomistas, que não são mais do que grilhões com os quais ata os pés do proletariado e que o impedem de avançar.
O temperamento do proletariado francês é como uma lava revolucionária. Mas, por ora, está coberta com as cinzas do ceticismo, que resultou de muitos enganos e desencantos. Por essa razão, os proletários revolucionários da França devem ser mais severos com seu partido e denunciar sem desculpas toda discrepância entre as palavras e os fatos. Os operários franceses necessitam de uma organização para a ação, forte como o aço, com dirigentes controlados pelas massas em cada nova etapa do movimento revolucionário.
Quanto tempo nos concederá a história para nos prepararmos? Não o sabemos. Durante 50 anos a burguesia francesa manteve o poder em suas mãos, depois de ter erigido a Terceira República sobre os cadáveres dos comunardos. Àqueles lutadores de 1871 não faltou heroísmo. O que lhes faltou foi claridade de métodos e direção organizada e centralizada. Por essa razão foram derrotados. Metade de um século se passou antes que o proletariado francês pudesse colocar como meta a vingança pela morte dos comunardos. Mas agora intervirá de forma mais firme, mais concentrada. Os herdeiros de Thiers terão que pagar a dívida histórica, integralmente.
Fevereiro de 1921,
Leon Trotsky
* Tradução de Fabiano Adalberto Leite.
Source: Esquerda Marxista (Brzsil)