Referendo sobre o aborto na Irlanda: um poderoso golpe contra a Igreja Católica

Na sexta-feira. 25 de maio, a Irlanda foi às urnas para decidir sobre a revogação da 8 a emenda da Constituição, que negava às mulheres o direito ao aborto enquanto o feto não-nascido apresentasse batimentos cardíacos. Sob essas leis, que faziam parte do legado da dominação da Igreja Católica da Irlanda, o aborto era ilegal, inclusive sob as circunstâncias terríveis de estupro, incesto ou anormalidades fetais. A revogação da 8 a emenda é uma bofetada marcante na face da Igreja Católica e do establishment na República.

Quando os resultados foram anunciados, ficou evidente que as pessoas haviam se mobilizado em grandes números. O eleitorado irlandês votou pela revogação da emenda e pela introdução do direito ao aborto, com 1.429.981 votos a favor e 723.632 votos contra. O comparecimento às urnas alcançou o impressionante registro de 64,1%, mais alto até mesmo que os 60,5% que votaram pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2015. Milhares foram de avião apenas para votar, algumas viajando mais de 14 mil quilômetros de distância. Com um enorme empurrão, a mão morta do passado foi varrida para o lado. Mais que qualquer coisa, foi um poderoso golpe contra a Igreja Católica, que durante décadas manteve as mulheres escravizadas na Irlanda.

O voto pelo “Sim” obteve 66,4% do total, sendo vitorioso em todos os distritos eleitorais com a única exceção de Donegal, onde a participação foi a mais baixa. Em Dublin a votação chegou aos 75%. Mas mesmo nas zonas rurais, onde a campanha do “Não” pensava ter folga, o voto pelo “Sim” ganhou alcançando 63%. Entre a juventude, os níveis de apoio ao “Sim” chegaram a esmagadores 87,6% para os jovens de 18 a 24 anos de idade. Mas entre todos os outros grupos etários abaixo de 65 anos de idade, ganhou o voto pelo “Sim”. Entre as mulheres, 72,1% votaram “Sim”. Mesmo no tradicionalmente conservador distrito de Roscommon-Galway, único que votou contra o casamento gay em 2015, 57% votaram pela revogação da emenda, com um comparecimento às urnas de 65%.

Outro momento revolucionário

Para avaliarmos o quão revolucionárias para a sociedade irlandesa foram essas mudanças, precisamos apenas lembrar que a Igreja Católica teve até recentemente a Irlanda sob seu controle. Até o final da década de 1990, a homossexualidade e o divórcio continuavam ilegais. De uma ilha rural dominada pelos padres sob a égide da Igreja Católica nos anos 1980, a Irlanda se transformou em uma sociedade urbana e voltada para o futuro, com uma grande, educada e jovem classe trabalhadora.

Há exatamente 35 anos um referendo foi realizado para introduzir a 8 a emenda com esmagadora maioria, similar à que agora a repeliu. Mesmo em 2002, um referendo para tornar o aborto mais restritivo foi derrotado por margem estreita. No entanto, no passado, a Igreja Católica não temia fazer campanha por “pureza moral” direto do púlpito. Nesse referendo, como no de 2015 sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a Igreja se destacou por sua ausência. E não é de admirar – ela está hoje totalmente desacreditada e só ajudaria o voto pelo “Sim” com sua intervenção.

As milhares de mulheres que se reuniram no Castelo de Dublin para ouvir o anúncio dos resultados estavam gritando “tirem seus rosários de nossos ovários”!

Igreja e Estado

Desde que o Estado Livre foi estabelecido nos anos 1920, a Igreja dominou o povo irlandês, mantendo-o sob o domínio de uma teocracia ao estilo medieval. As mulheres sofreram os piores abusos. Enquanto negavam o direito ao aborto, as que tinham filhos fora do casamento eram rejeitadas como “mulheres perdidas”. Seus bebês podiam ser tirados delas e adotados. As próprias mulheres eram encarceradas em instituições como as lavanderias de Magdalene.

Nesses buracos infernais, a “santidade da vida” foi pisoteada. As mulheres eram despojadas de suas posses, de sua dignidade e até mesmo de seus nomes e forçadas a realizar trabalho escravo para as ordens religiosas. A partir do trabalho dessas mulheres escravizadas, a Igreja juntou milhões. Ali elas eram submetidas à tortura mental, física e sexual, e quando morriam mulheres e crianças nessas instituições, como aconteceu muitas vezes, seus cadáveres eram despejados em valas comuns e fossas sépticas.

Somente a partir dos anos 1990 essa tortura sistemática de mulheres e crianças inocentes e uma série de outros abusos vieram à tona. Isso levou a uma onda de repulsa contra a subjugação das mulheres pela Igreja. Desde 2008 e do colapso do “Tigre Celta”, a autoridade de todos os pilares do sistema entrou em colapso.

No entanto, apesar de sua declinante autoridade, a Igreja continua a manter profundas ligações com a classe capitalista irlandesa e seu Estado. Até hoje ela continua a administrar 90% das escolas primárias e 50% das escolas secundárias, assim como muitos hospitais. Na teoria existe “separação entre Igreja e Estado” na Irlanda. Na prática, não há nenhuma. Ironicamente, a Igreja (através de seu controle da educação sexual) e a pobreza que o capitalismo cria, sem dúvida aumentaram o número de gravidezes indesejadas.

Os persistentes efeitos

A luta contra a 8 a emenda mostra que o legado da Igreja ainda não é coisa do passado. Isso veio à tona de forma chocante em 2012 com o trágico caso de uma jovem mulher indiana, Savita Halappanavar.

Savita chegou ao hospital em completa agonia, sofrendo claramente um aborto espontâneo. Não havia nenhuma possibilidade de se liberar o feto com êxito e Savita implorou aos médicos para abortar. Disseram-lhe “infelizmente, este é um país católico”, enquanto ela jazia em agonia, morrendo.

Desde então dezenas de mulheres compartilharam suas histórias de horror. O que está claro é que essas leis não evitavam abortos. Em vez disso, as mulheres eram forçadas a ir para fora do país. Todos os anos, um fluxo de mais de 3 mil mulheres viaja da Irlanda para Liverpool, Manchester ou Londres procurando um aborto. Inevitavelmente tais viagens requerem milhares de euros e dias de repouso, razão por que se persegue mais duramente as mulheres da classe trabalhadora.

Para as mulheres que não podem pagar o voo sempre existiram alternativas mais arriscadas: a compra de pílulas abortivas online, por exemplo, com todos os seus riscos inerentes.

Elites liberais

A natureza esmagadora da votação significa que é quase inevitável que o governo terá que introduzir o direito à terminação da gestação em até 12 semanas.

Deve-se notar, no entanto, que aqueles dos quais se espera que cumpram a vontade do povo são conversos muito recentes à ideia de que as mulheres podem ser capazes de controlar seus próprios corpos. Tanto Leo Varadkar quanto Michael Martin, junto ao restante do establishment da coalizão de governo Fine Gael-Fianna Fail, eram tradicional e incondicionalmente pró-vida.

Na verdade, o ministro da saúde do Fine Gael (FG), Simon Harris (que deverá ajudar a redigir o projeto das novas leis sobre o aborto), escreveu à Campanha Pró-Vida em 2011 buscando seu apoio para sua eleição:

“Por favor, tenham a certeza de meu apoio. Necessito de uma votação significativa na sexta-feira para estar em condições de apoiar essas posições no Dail Eireann” [Câmara Baixa do Parlamento Irlandês – NDT].

Na expectativa de uma corrida apertada, um dos colaboradores mais próximos de Varadkar em 2017 disse à imprensa:

“Ele não acredita na abolição absoluta da emenda. Ele fala de uma mudança mínima. Ele quer reequilibrá-la”.

Agora, ele está celebrando uma “revolução silenciosa” que tornou a Irlanda um lugar “mais amável”. Parece que Varadkar, como todos os políticos liberais, pode mudar de princípios tão facilmente quanto muda suas meias coloridas. De fato, o establishment lentamente colocou distância entre si e a Igreja Católica por um tempo, em antecipação ao voto pelo “Sim”.

No entanto, nenhum deles esperava o que aconteceu. Todos os especialistas e comentaristas da imprensa anteciparam uma pequena maioria para o “Sim”, mas o que aconteceu foi um terremoto. Mais uma vez, a classe dominante liberal demonstrou precisamente o quanto está desconectada da realidade.

Olhos voltados para o Norte

Em nenhum lugar o choque dessa votação foi sentido com mais força do que no norte da Irlanda. Com a revogação da 8 a emenda, a lei em vigor na Irlanda do Norte se tornou ainda mais reacionária do que em qualquer outro lugar dessas ilhas. Agora há um crescente clamor para que Theresa May faça algo para enfrentar essa injustiça prolongada contra as mulheres, com os conservadores mais antigos até mesmo pedindo um referendo sobre o direito ao aborto na Irlanda do Norte.

No passado, os políticos unionistas do Norte podiam apontar para o conservadorismo do Sul e seu domínio pela Igreja Católica como argumento contra a unificação. Agora, as coisas se transformaram em seu inverso. O júbilo ao norte da fronteira mostra que essa é realmente uma luta de toda a Irlanda. Arlene Foster e o Partido Unionista Democrático (DUP) tentaram subestimar o significado totalmente irlandês da revogação da oitava emenda. No entanto, o partido Sinn Fein já levantou a necessidade de uma votação sobre a reunificação irlandesa.

A situação no norte da Irlanda representa um incêndio crescente na retaguarda dos conservadores. A cada dia, as razões para se rejeitar uma votação sobre a fronteira se tornam mais tênues. Na última eleição à Assembleia, o unionismo perdeu sua maioria histórica. No entanto, como disse May em recente reunião de 150 deputados conservadores, ela não está perto de arriscar uma votação sobre a fronteira tão cedo porque não tem a garantia de ganhá-la.

Com May sendo forçada a manter uma aliança precária com os podres reacionários do DUP, parece pouco provável que faça concessões sobre o direito ao aborto. Em vez disso, foi-nos assegurado que essa é uma questão para o parlamento da Irlanda do Norte, o Stormont – que provavelmente não voltará do túmulo tão cedo.

Os conservadores não foram os únicos que sacrificaram os direitos reprodutivos para apaziguar o DUP. Em 2008, foram apresentadas emendas à Lei da Fertilização Humana e Embriologia por ninguém mais que Jeremy Corbyn, John McDonnel e Dianne Abott. Se aprovadas, teríamos visto a legalização do aborto na Irlanda do Norte. Mas como o governo do Novo Trabalhismo na época dependia do DUP, decidiram sabotar as emendas para manter o DUP manso.

E agora?

Embora seja improvável que os políticos no Dáil [Câmara Baixa do parlamento irlandês – NDT] tentem impedir a legislação que dá às mulheres seu direito ao aborto, ainda há obstáculos. A campanha reacionária do “Não” – e a Igreja Católica por trás dela – se esforçará e poderá impedir que o direito ao aborto se torne uma realidade.

Um porta-voz da campanha “Save the 8th” deixou bem clara sua amargura quando ameaçou os piquetes das clínicas de aborto:

“Se e quando as clínicas de aborto forem abertas na Irlanda, por causa da incapacidade do governo de manter sua promessa de um serviço dirigido por uma GP, nos oporemos a isso também. Todas as vezes que uma criança não-nascida perder sua vida na Irlanda, vamos nos opor a isso e faremos ouvir nossa voz”.

A Igreja Católica continua sendo um setor imensamente poderoso da classe dominante, com grande quantidade de riqueza e influência no Estado. Como marxistas, acreditamos que é o momento para uma revolução que elimine por completo a influência da Igreja. Todos os seus ativos devem ser nacionalizados sem indenização e deve ser eliminada da educação. A religião deve ser assunto privado.

Mas a Igreja sozinha não é o único obstáculo. Há outro: a austeridade que está sendo conduzida pelos partidos Fine Gael e Fianna Fail. Não é somente para fazer abortos que o povo irlandês está sendo obrigado a viajar para o exterior todos os anos. Tal é o estado da saúde pública que somente no ano passado mais de 2 mil pessoas viajaram ao exterior para cuidar da saúde porque as listas de espera eram longas demais em seu país. Mesmo operações simples, como a remoção de catarata, podem envolver esperas de cinco a seis anos.

A classe dominante pode garantir o direito teórico de acesso aos procedimentos médicos. No entanto, sob condições de crise contínua, ela está tirando da classe trabalhadora o acesso básico à saúde, o que contribui para um padrão de vida semicivilizado.

Portanto, a luta pela plena libertação material das mulheres deve estar vinculada à luta para derrubar o capitalismo.

Os impactos do terremoto da revogação estão sendo sentidos em todo o mundo. A votação é uma manifestação de um sentimento subterrâneo – um sentimento revolucionário – de raiva e de oposição à velha ordem, desenvolvido internacionalmente. E, em todos os lugares, esse ânimo em desenvolvimento é acompanhado pelas lutas das mulheres. Na América Latina, as mulheres se levantaram contra a violência de gênero; na Polônia, pelos direitos reprodutivos; na Espanha, há o exemplo fabuloso da greve feminista de 8 de março.

Para serem finalmente bem-sucedida e alcançar a plena igualdade e libertação das mulheres, essas lutas devem correr, como muitos afluentes, em uma só torrente. Só a luta revolucionária da classe trabalhadora de todo o mundo para derrubar o capitalismo e criar uma sociedade socialista pode dar um fim de uma vez por todas à opressão das mulheres.

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