A luta se espalha nas duas maiores cidades sírias, Damasco e Aleppo e o movimento de massas deu lugar à luta de guerrilha nas ruas. Para onde vai a Síria e qual será o resultado da revolução, ou pelo menos, o que sobra dela?
Em uma série de artigos anteriores, elucidamos os fatores que fizeram a revolução síria prostrar-se em sangue, e consequentemente, permitir que o regime se mantivesse no poder por mais tempo. Nós enumeramos esses fatores abaixo, mas o leitor pode consultar maiores informações em artigos anteriores.
1-) A revolução síria, com predomínio inicial da juventude, surgiu no contexto mais amplo da revolução árabe. Apesar disso, boa parte da sociedade síria, em especial nas cidades, foi pega de surpresa pelo movimento. Não fossem os exemplos vindos da Tunísia e do Egito, provavelmente levaria mais alguns anos para o movimento eclodir no país.
2-) A classe trabalhadora síria tem sido esmagada e reprimida há décadas. Mais importante, o proletariado do país não tinha, e ainda não tem, suas próprias organizações, nas quais possa expressar seus interesses de classe e exercer um papel de liderança nas lutas atuais. Isso é de uma importância decisiva. As imensas greves na Tunísia e no Egito paralisaram o estado e viraram a maré a favor das massas. Isso não aconteceu na Síria. No geral, mesmo com as manifestações imensas que ocorriam por todo o país, as fábricas, estações de energia, ferrovias, telecomunicações, aeroportos, portos, setor público etc. permaneceram funcionando normalmente, dando ao regime a estabilidade necessária para se reagrupar e reprimir com firmeza as massas em revolta.
3-) A Síria é um país bastante diversificado, com consideráveis minorias étnicas e religiosas, além de uma estrutura social bastante heterogênea. A essência do regime esta baseada na minoria Alawita. O governo assegurou o apoio da maioria dos Alawitas, cristãos, Druzes (outra minoria étnica) e muçulmanos sunitas liberais graças ao medo que esses grupos tem de que um regime fundamentalista islâmico poderia comprometer sua liberdade religiosa e estilo de vida. É preciso lembrar que boa parte dos elementos que enfrentam o regime gritam palavras de ordem religiosas, o que tem sido habilmente explorado pela máquina do governo.
4-) A Síria esta localizada em uma região extremamente instável politicamente, fazendo fronteira com a Turquia, Iraque, Líbano, Jordânia e Israel. Tonou-se um lugar onde interesses antagônicos se enfrentam; monarquias sunitas contra xiitas apoiados pelo Irã, o que por sua vez reflete na disputa travada entre interesses americanos, de um lado, e russos e chineses, do outro. Turquia e França também atuam na região. Além disso, a experiência da invasão americana do Iraque em 2003 deixou os sírios temerosos de uma intervenção imperialista em seus assuntos internos, bem como as consequências que isso poderia ter. Novamente, o regime explorou esse temor da população para angariar ainda mais apoio, de todas as classes sociais.
5-) Todos os fatores citados acima poderiam ter sido anulados, e todas as massas sírias unidas em torno da bandeira da revolução, se houvesse uma direção revolucionaria com um programa político, econômico e social claro, de caráter socialista, que atraísse toda a classe trabalhadora síria.
6-) A oposição, representada pelo Conselho Nacional Sírio, está longe de ser essa direção. Pelo contrário. O CNS tem ligações estreitas com a elite local, interessada em derrubar Assad, e não possui qualquer interesse em comum com as massas. Na verdade, suas intenções são antagônicas às do povo em luta. O CNS é uma marionete do imperialismo americano, sendo financiado por ele e sediado no exterior, sem qualquer conexão concreta com a oposição no país. Pior ainda tem sido os apelos constantes do CNS (e também do ELS) para uma intervenção externa no país, o que prejudicou a imagem da revolução para muitos na sociedade, levando-os de volta aos braços do regime de Assad. Muitos desses sírios poderiam ter sido ganhos para a revolução com uma direção diferente e correta.
A LUTA CONTINUA
Em dezembro do ano passado publicamos um artigo intitulado “Regime do Assad começa a rachar à medida que a revolução alcança níveis mais altos”, no qual fazemos a seguinte análise:
“A revolução síria se dá em condições incomuns, sem sindicatos independentes e sem uma direção revolucionária que guie o processo e realize as tarefas necessárias para a vitória’. As pressões da revolução explodiram na forma do exército livre. Essa é, até o momento, a única organização de massa na revolução. Pela falta de alternativas, é também a que assumiu o comando do processo. Isso quer dizer que, nessas condições, todas as questões da revolução serão tratadas no interior dessa organização.
Não faltam perguntas sobre a verdadeira natureza do ELS. Será um exercito de verdadeiros soldados revolucionários, a milícia armada da revolução? É dominada pelos extremistas islâmicos ou não passa de um fantoche dos EUA? Qualquer observador sério não pode deixar de concluir que não se trata de nada disso. A natureza da organização ainda é indefinida.
Os eventos dos últimos meses confirmaram nossa analise. O ELS tem crescido em tamanho, força e popularidade. Tornou-se o ponto central da luta contra o regime de Assad. Contudo, isso não diz tudo. Esse crescimento tem se dado ás custas do movimento de massas. Está claro que a participação delas tem diminuído, em beneficio do ELS. Por exemplo, a rebelião nos subúrbios de Damasco foi mais uma operação militar do ELS, sem muito apoio de manifestações populares. Vimos a mesma coisa em Aleppo, dias atrás. Na verdade, o regime estava tão fraco na capital que uma rebelião popular poderia ter levado ao seu colapso. Mas isso não ocorreu. O movimento de massa esta desaparecendo, e o que resta dele se tornando um apêndice do ELS. Isso é um grande passo para trás. Além disso, temos que repetir a pergunta feita em dezembro de 2011: qual é a natureza do ELS? É constituído por forças revolucionárias ou há facções internas com interesses distintos da revolução?
Não é segredo que forças reacionárias, tais como a monarquia da Arábia Saudita e do Qatar, assim como algumas empresas, têm fornecido ajuda material e financeira abundante para algumas milícias que compõem o ELS. A Turquia mantém bases de treinamento para o ELS em seu território, de maneira a impulsionar seus interesses no país. A França também tem jogado papel relevante na formação dessas forças reacionárias entre as milícias. Os franceses querem recuperar a influencia perdida na ex-colônia, razão de seu envolvimento maciço no conflito. Os EUA, depois de queimarem os dedos no Iraque e no Afeganistão, não desejam se envolver diretamente em outro conflito, embora já tenham declarado que apoiam certas milícias.
Eis a questão: quem esta recebendo esse apoio? Todas as milícias? De jeito nenhum. Na verdade, muitos combatentes do ELS já declararam frustração diante da falta de armamentos e recursos para continuar sua luta, bem como da recusa de outras facções do ELS a oferecer ajuda. Quem são esses que estão recebendo apoio externo? A resposta é simples: são focas ultrarreacionárias, não muito distintas do exército de Assad. Eles defendem ideologias extremistas, bem como dos seus patrocinadores externos, cujos interesses são opostos aos do povo sírio. São forças da contrarrevolução, que atuam para destruir o movimento enquanto combatem o regime.
A realidade é a seguinte; o ELS contém milhares de combatentes honestos, filhos do proletariado sírio. Eles são frequentemente ligados aos comitês e conselhos revolucionários. Mas o ELS contém uma ala reacionária, que cresce sobre as costas dos militantes honestos. O enfraquecimento do movimento de massa isolou os revolucionários, deixando um vácuo que esta sendo preenchido por essa camarilha reacionária.
Na ausência de qualquer alternativa, bem como a opção pela luta armada, os grupos que possuem melhor logística, organização e principalmente, tem acesso ao melhor armamento e a apoio financeiro, naturalmente assumirão a liderança. E esses são os mais reacionários, ligados á Irmandade Muçulmana, aos salafistas e até mesmo à Al-Qaeda. Esses grupos são os que recebem recursos sauditas e do Qatar, afinal, o apoio militar está ligado à afinidade política.
A situação descrita acima demonstra o que esta ocorrendo dentro e fora do ELS: a degeneração do movimento revolucionário. Isso pode ser comprovado não apenas quantitativamente, pela perda do apoio de massas, mas também qualitativamente. Muitas das palavras de ordem são diferentes, até mesmo reacionárias, daquelas que eram levantadas no começo da revolução. Por exemplo, no começo ouvia-se “um, um, um, o povo sírio é um só” e agora o que se ouve é “estamos lutando por Alá”. Isso não é mero detalhe. E definitivamente não encoraja os muçulmanos liberais e as minorias religiosas a se juntar ao movimento.
O regime foi bem sucedido ao usar massacres para provocar fortes sentimentos anti-alawitas na população sunita, de maneira a empurrar o movimento ainda mais fundo no sectarismo. Esse não é um problema menor, uma vez que leva as massas para uma direção que essas jamais devem tomar. Slogans como “defender nossa religião... defender os sunitas... essa é a Jihad contra os infiéis” só servem para empurrar uma parte da população de volta aos braços do governo.
PARA ONDE VAI A SÍRIA
É difícil prever o desfecho de uma situação complexa como a da Síria. Está claro que o regime de Assad vai cair. Evidencias como a deserção do primeiro ministro de Assad para a “revolução”. Assim como ocorreu na Líbia, esta claro que o regime, mesmo bem armado, esta com os dias contados uma vez que cada vez mais elementos de comando buscam desertar para cuidar de seus próprios interesses. O fato de que essas figuras estejam migrando para a “revolução” mostra o quão reacionário se tornou o processo em curso. Esses elementos não pegaram em armas para apoiar a revolução, e sim para destruí-la. Eles se preparam para o futuro, onde pretendem destruir o que ainda sobra da revolução.
Isso explica porque o colapso do regime não significaria necessariamente uma vitória da revolução. Pelo contrario, parece que os revolucionários já estão a caminho de serem derrotados uma vez que não perdem o controle sobre forças que não podem controlar. Não quer dizer que esse processo é irreversível, mas não há nada no futuro que leve a crer que isso aconteça. Isso precisa ser dito cruamente para os trabalhadores e a juventude síria.
Porém, a analise não pode terminar aqui uma vez que pode haver desfechos diferentes. O regime, que tenta dar á revolta um caráter sectário desde o começo, poderia recuar para o litoral, onde goza do apoio da minoria alawita. De lá, poderia continuar a conduzir a guerra civil ainda por muitos anos ou mesmo estabelecer um mini estado. Isso é inteiramente possível, uma vez que ainda haverá milhares de milicianos alawitas armados até os dentes, mesmo se o governo for expulso de Damasco. Países como o Irã e a Rússia estão preparados para apoiar essas milícias. Por outro lado, países como os EUA, Arábia Saudita e Qatar farão o mesmo com as guerrilhas que se aliem aos seus interesses. Um cenário de guerra civil isolaria qualquer aspecto progressista nessa questão. Isso levaria a um cenário igual ao do Líbano dos anos 80, ou seja, uma catástrofe total para a Síria e seu povo.
Outro elemento da equação é o povo curdo. Vendo que não poderia mais controlar áreas curdas, o governo abandonou-as a favor de elementos ligados à partidos de independência curdos. É algo que a Turquia não pode permitir, pois levaria a um aumento do nacionalismo curdo em seu próprio território. Por isso, o regime de Assad tem dois objetivos: retirar as áreas curdas (que já não controla mais) de um front unido da oposição e reforçar a imagem do conflito como sendo uma resistência a uma intervenção estrangeira, dessa vez, da Turquia.
Os Alawitas, e talvez os cristãos e outras minorias, vão lutar pelo regime de Assad a medida que elementos reacionários islâmicos aumentem seu domínio entre os “rebeldes” e avancem com uma plataforma religiosa e anti-alawita. É preciso que os trabalhadores e a juventude mantenham-se unidos tanto contra Assad quanto contra esses elementos reacionários que começam a surgir sob a bandeira do ELS. Essa é a única forma de conseguir que os alawitas comuns tomem parte na revolução. Mas como esses elementos contrarrevolucionários assumem cada vez mais o comando, esse é o menos provável dos cenários. A ausência de um partido revolucionário capaz de unir, sob uma proposta classista, todos esses setores da classe trabalhadora é a principal razão desse impasse.
Mesmo se uma guerra civil for evitada, o melhor que os sírios podem esperar para o próximo período é um país fracionado como a Líbia atual. Não nenhuma liderança política capaz de unir as massas em um programa revolucionário. Elementos oportunistas aparecem com cada vez mais força, reclamando cargos de liderança. As massas estão desgastadas e é pouco provável que façam frente a esses elementos. As milícias, hoje unidas contra Assad, irão disputar poder e influencia assim que ele cair. Não podemos nos iludir com a queda do ditador, imaginando que os problemas do proletariado sírio estarão resolvidos de alguma forma. Nem devemos levar a juventude e a classe trabalhadora síria a pensar dessa forma. O regime que subir ao poder poderá ser ainda mais brutal e reacionário do que o de Assad.
O QUE DEFENDEM OS MARXISTAS?
Marxistas não trabalham com o abstrato nem concebem algo como uma situação “branca ou preta”. Nossa analise é apenas um guia para a ação, na verdade, uma tentativa de nos guiar em direção aos caminhos corretos. O que defendem os marxistas quanto á situação da Síria, sua juventude, o papel dos revolucionários e o ELS?
As milícias do ELS, os comitês de coordenação local, os conselhos revolucionários etc., são todos improvisações de massas e soldados revolucionários. Alguns estão sob o domínio dos reacionários. Outros mantêm suas posições iniciais, comprometidas com a transformação do país através da revolução.
A fraqueza do movimento, que permitiu a eclosão dessa camarilha oportunista e contrarrevolucionaria, é política. O impasse no qual o movimento se encontra e o militarismo que passa a tomar conta dele surgiram graças a falta de um programa socialista, que combinasse a exigência por democracia com as demandas sociais e econômicas, que unisse as massas em torno de seus interesses de classe, cortando todo o apoio ao regime de Assad.
Uma guerra revolucionaria não pode ser reduzida a uma questão de armas, pois depende antes de tudo de um programa político correto. Muitas vezes, ao longo da história, forças revolucionarias militarmente fracas, mas politicamente consolidadas em meio ao seus povos, foram capazes de derrotar as mais avançadas e letais máquinas de guerra de suas épocas.
Do nosso ponto de vista, portanto, essa é a primeira questão que precisa ser atendida. Porque estamos lutando? Não é o suficiente responder que é pelo fim do regime atual, uma vez que para a população, os substitutos parecem ser ainda piores, como os fundamentalistas islâmicos. A ideia de substituir Assad pela Irmandade Muçulmana, alinhada ao empresariado, não terá apelo algum entre os trabalhadores, principalmente entre os que não são sunitas ou que são seculares. Da mesma forma, os mais nacionalistas rejeitarão um regime fantoche, como o existente no Iraque, que se limite a seguir os comandos do imperialismo norte-americano.
A tarefa dos marxistas é explicar, pacientemente, a importância do programa socialista, o único que pode unir a democracia com as demandas sociais e econômicas de qualquer povo. Revolucionários genuínos devem se organizar como uma facção independente e impulsionar suas ideias com firmeza e de forma coletiva. Acreditamos que a única forma da revolução vencer a reação é colocar em prática as seguintes teses:
- Não uma luta religiosa, mas uma luta de classes. Não um jihad, mas uma luta revolucionária.
- Defender as ideias originais da revolução. Democracia, justiça social, igualdade e respeito são princípios pelos quais milhares de revolucionários deram suas vidas.
- Derrotar Assad significa expropriar toda a riqueza roubada por sua família assim como colocar toda a economia sob o controle democrático dos trabalhadores.
- Nenhuma ilusão com as potencias imperialistas. Contra a intervenção externa por parte dos EUA, França, Rússia, Turquia, Qatar e Arábia Saudita. Apenas o povo sírio pode libertar a si mesmo.
- Tropas armadas devem ser postas sob o controle dos conselhos revolucionários em todos os níveis.
- Todas as forças e comitês revolucionários devem ser absolutamente democráticos. Uma pessoa, um voto. Defender total liberdade de discussão no interior das organizações revolucionárias. Nada deve ser imposto sob a vontade da maioria.
- Atenção com o envolvimento de oportunistas vindos do topo do regime ou de “conselhos” amigos dos imperialistas. Todas as decisões devem ser tomadas pelos revolucionários em luta.
- Construir comitês em todos os locais de trabalho, para que a classe trabalhadora possa emergir como protagonista do processo. Coordenando esses comitês a nível regional e nacional, estaria formada a base para um governo representante dos interesses dos pobres e trabalhadores sírios. Sem isso, o movimento será tomado por forças reacionárias incapazes de resolver os problemas reais do povo trabalhador sírio.
Syria: Reaction on both sides of the divide! - Traduzido por Arthur Penna