Em 23 de dezembro de 2003, o governo dos Estados Unidos reconheceu oficialmente a erupção da EEB (Encefalopatia Espongiforme Bovina) num rebanho de Washington. Este é oficialmente o primeiro caso da doença da vaca louca nos Estados Unidos, mas na realidade é o segundo que surgiu na indústria integrada de carne bovina dos Estados Unidos e do Canadá. É interessante notar que a segunda ocorrência desta zoonose foi descoberta num rebanho em Washington, mas o animal infectado provinha também de Alberta (Canadá). A crise da EEB e a forma como os governos de ambos os paises estão enfrentando a situação estabelece um perigoso precedente. O fato de registrarem-se dois casos da doença no espaço exatamente de oito meses é por demais nefasto, mas a situação real e os riscos para a produção de alimentos são ainda piores.
O transtorno dos criadores e da pecuária, conseqüentemente, está na raiz da crise do capitalismo em escala mundial e resulta da “globalização”. O problema, na América do Norte e no restante do mundo, é que os alimentos não são produzidos com base nas necessidades e na segurança, ou para o maior benefício social. São produzidos na realidade para gerar lucros. A razão por que a indústria alimentícia nos tem envenenado muitas vezes antes – na Europa com sua epidemia da vaca louca, no final dos anos 1990s, e no Japão apenas há alguns anos – é sempre a busca de dinheiro.
O problema fundamental de tudo isto reside no modo de produção capitalista da indústria alimentar. Grandes empresas agropecuárias que poderiam efetivamente estabelecer a base para a produção segura de alimentos em larga escala, e que teriam condições de também contribuir para resolver o problema da fome no mundo, continuamente cortam gastos e evitam medidas de segurança objetivando o amento de seus lucros.
Com o propósito de aumentar o volume da produção leiteira dos rebanhos, acrescenta-se proteína a suas rações. Para consegui-lo, os rebanhos de bovinos, de ovinos, de suínos e os frangos transformam-se em canibais, alimentados com restos de bovinos e ovinos e também recebem antibióticos e hormônios acrescidos a suprimentos alimentícios. Isto levou diretamente ao desenvolvimento da vaca louca e sua penetração na cadeia alimentar, causando mortes horríveis entre seres humanos e animais ao mesmo tempo. Além disto, é mais barato alimentar animais com restos de outros animais já processados do que adquirir feno ou pastagem para os rebanhos.. Mais uma vez o que esta em causa é o problema monetário. Em lugar de desfazer-se das carcaças de maneira eficiente e beneficia para o meio ambiente, é mais barato também transformar ditas carcaças em ração para outros animais. Esta foi uma medida generalizada a que recorreram grandes empresas agropecuárias com o objetivo de manter baixos seus custos. A questão do dinheiro é basicamente a causa primordial de todos as preocupações relacionadas com a produção de alimentos e as epizootias nas fazendas da América do Norte e pelo mundo afora.
Um outro problema é que os animais e a carne devem ser transportados por longas distâncias – causando forte estresse nos animais e baixando a qualidade da carne. A carne deve passar por processamento de cura e receber uma porção de substâncias químicas a fim de que não se estrague. Isto pode ser claramente observado no primeiro caso de vaca louca detectado em Alberta. Parte do rebanho a que pertencia a vaca doente permaneceu embarcada através da América do Norte – até o Texas e o México. A carcaça da vaca fora embarcada para Vancouver, onde foi transformada em ração para frangos. Algumas destas aves por sua vez foram despachadas para Alberta para utilização em rações de bovinos e suínos. A vaca acometida de EET em Washington tinha vindo de Alberta, e a carne infectada foi despachada para sete estados norte-americanos e também para a ilha de Guam. Tudo, combinado com as péssimas condições reinantes nos enormes abatedouros e nas indústrias de transformação, resultou no conhecido desastre.
Posto que o Canadá e os Estados Unidos já integrem totalmente a indústria da carne, ainda há algumas contradições internas. A resposta americana fechando a fronteira com o Canadá após a detecção do mal, agora ameaçando seres humanos, tem mais a ver com protecionismo do que com segurança e preocupação sanitária. Mesmo após sua confirmação, funcionários americanos alegavam que sua origem não era os Estados Unidos mas o Canadá, porque a vaca procedera de Alberta. O único problema com este argumento é que os Estados Unidos baniram as importações de gado vivo desde maio de 2003. Isto significa que o animal infectado deve ter sido embarcado anteriormente, bem antes do surgimento da crise e, visto que os dois mercados são integrados, não importa realmente donde a vaca procedeu. De muitas maneiras, segundo a compreensão de inúmeros pecuaristas de ambos os paises, o caso de EEB em Alberta não era razão para o fechamento das fronteiras, mas apenas uma desculpa que se aguardava. Antes de sua comprovação, o Canadá exportava 80% de sua carne e aproximadamente 100% de seu gado em pé para os Estados Unidos. Igual ao caso de sua madeira branca, a carne bovina barata canadense estava prejudicando a indústria de carnes americana.
Podia-se pensar após o primeiro caso de EEB no Canadá, que os governos norte-americano e canadense alterariam suas normas de segurança e procurariam resolver alguns dos problemas da industria bovina – ou talvez tivessem eles mudado suas políticas em seguida ao surto britânico de dez anos passados. Todavia, ambos os governos têm sido relutantes na mudança de políticas sob a alegação de que as duas indústrias já não se harmonizavam por mais tempo. O real motivo é a força dos lobbies da indústria de carnes bovinas. Estes grupos de pressão nos Estados Unidos doaram 22 milhões de dólares a partidos políticos desde 1990, principalmente ao Partido Republicano, a fim de minimizarem-se as inspeções e medidas de segurança em suas atividades.
Uma das principais preocupações concentra-se nas rações, pois, a rigor, o uso de resíduos animais e medula como componentes de rações animais deve ser banido, algo que os governos do Canadá e dos Estados Unidos temem fazer, por causa do enorme lobby ligado à indústria de carne bovina que conta com o argumento monetário – mais uma vez – afirmando-se que seria demasiado dispendioso alimentar rebanhos com produtos de outras origens – pastagens, feno etc.
O outro principal ponto é segurança e inspeção. O departamento de agricultura despendeu 6,6 milhões de dólares em pesquisas relacionadas à EEB e a scrapie no ano passado. A indústria de carnes por sua vez gastou 50 milhões de dólares na promoção de seus produtos. Os fatos e os números são espantosos. A única conclusão a que se pode chegar é que a atual crise pode apenas aumentar e agravar-se, e avultar o perigo para as populações, este já extremamente alto. Uma fonte categorizada de segurança do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos afirmou ao Guardian, em 12 de janeiro último: “em nosso próprio círculo, achamos que nosso sistema de inspeção é o mais ordinário do mundo.” Ele também alegou que os testes de EET são raros e fortuitos, e executados por pessoal com o mínimo de treino e conhecimento do mal. A secretária da agricultura dos Estados Unidos, Anne Veneman, baniu a matança de gado estropiado – vacas que se encontram doentes de tal forma que não podem caminhar para dentro do abatedouro – e tem alegado que os Estados Unidos duplicarão os testes para detecção da EEB. A mesma fonte categorizada em matéria de segurança alega que pouco se tem feito efetivamente neste aspecto. Também afirmou que a coisa mais chocante quanto à eclosão da EEB é que ela foi realmente tornada pública!
Para compreender a abrangência das falhas da segurança e da inspeção na indústria de carnes devem-se examinar algumas cifras importantes. Na Europa, um em cada quatro animais é testado; no Japão submetem-se a testes todos os animais. Nos Estados Unidos, testa-se um num grupo de 7.000 animais – e seria sido pior não fosse um moderado aumento na inspeção nos últimos dois anos. Mesmo que os Estados Unidos decidam dobrar o número de animais testados, será apenas uma de cada 3.500 cabeças! Outro número chocante mostra que 200.000 vacas sedadas para abate foram abatidas para consumo humano no ano passado nos Estados Unidos. De todas estas vacas, algo em torno de 70 a 80%, a maioria era portadora de doenças do sistema nervoso central, mas passou pela inspeção, mormente porque os veterinários não receberam treinamento que os habilite a reconhecer a EEB. Se estes números parecem desfavoráveis diante da erupção no Canadá, o governo americano criticou o sistema de inspeção canadense por insuficiente. A vaca de lá fora efetivamente abatida em janeiro de 2003, e os resultados do teste chegaram somente no início de maio do mesmo ano.
Os números apontam para um desastre que se prenuncia aconteça na América do Norte. Mas o perigo não jaz apenas na segurança. Há também sérios riscos econômicos. Por volta de agosto de 2003, uma vaca que seria normalmente vendida por $1.300 (mil e trezentos dólares) no Canadá foi vendida por somente quinze dólares. Desenvolvem-se sérios transtornos econômicos nos campos canadenses à medida que a queda de produção se espalha por todas as áreas da viva rural. Pastagens, empresas abastecedoras de combustíveis, camioneiros, vendedores de equipamentos rurais, madeireiras, criadores de búfalos, alces, cervos e ovinos, indústrias de carcaças animais, produtores de rações para animais de estimação, de sementes etc. todos foram seriamente afetados. Recente pesquisa revela que 8 em cada 10 agronegócios foram atingidos, com quase todos eles assinalando a mesma coisa – vendas decrescentes, pedidos cancelado; impossibilidade de exportação, aumento de custos e dispensa de mão-de-obra. Pequenas cidades passam por séria escassez monetária também. Aqui tudo, desde vendedores de automóveis, lojas de confecções e de móveis atravessa um período de retração de vendas entre 20% e 40%. Além disto, uns 10% de muitos impostos municipais, acima de 1 milhão de dólares em cada município, estão em atraso desde o último ano como resultado de séria estiagem. O mais grave é que os trabalhadores rurais e empresários agrícolas já não dispõem de dinheiro para suas aquisições, e uma severa queda nas despesas de consumo semelhante a que temos visto pelos campos causará, por seu turno, mais dificuldades econômicas.
Os riscos serão também altos para a economia estadunidense: 43 paises cancelaram a importação da carne americana. Isto poderia significar distúrbio econômico maciço uma vez que a indústria de carne americana supre 25% do consumo mundial. Junte-se isto às presentes dificuldades econômicas dos Estados Unidos e a crise da carne poderia ser o catalisador que empurra a economia para uma situação crítica.
A solução para o problema reside na nacionalização, sob controle operário, da produção de alimentos na América do Norte e no restante do mundo. Muitos de nós ou têm lido ou ouvido sobre as temíveis condições de trabalho em numerosas indústrias de embalagem e empresas de entrega nos Estados Unidos e no Canadá. A maior parte dessas firmas recorre à mão-de-obra de imigrantes insuficientemente treinada, e onde as condições de trabalho se assemelham às mesmas de 100 anos atrás. Os trabalhadores são obrigados a labutar longas horas em situação de insegurança e insalubridade. Tais condições, conseqüentemente, suscitam muitas questões quanto à segurança na produção de alimentos nesses estabelecimentos.
É óbvio que devemos nacionalizar as companhias agroquímicas, os centros de produção e supermercados que destroem as vidas de granjeiros e trabalhadores. Enquanto a produção de alimentos permanecer sob o domínio do capitalismo e do mercado, a qualidade do que comemos irá de mal a pior a ponto de presenciarmos mais casos de EET e coisas semelhantes. Devemos iniciar um plano de produção de produtos agrícolas e pecuários, voluntário e socializado, que proteja o trabalho e a segurança dos produtores rurais e a boa qualidade higiênica dos alimentos para todos, inclusive para a população pobre de todo mundo. Qualquer tipo de produção agropecuária, empresarial, de pequeno porte ou familiar, preocupa-se, agora, unicamente com o resultado final – o lucro. Não se cuida da segurança, da sanidade ou dos efeitos das muitas substâncias químicas e da engenharia genética que entra na cadeia alimentar. Os trabalhadores e os próprios produtores agropecuários devem monitorar as normas de segurança e os aspectos sanitários dos alimentos, pois que eles devem consumir o que produzem. Os alimentos devem ser produzidos para atender as mais amplas necessidades e conveniências sociais e não fins estritamente lucrativos. Será a única forma de afastar a presente crise alimentar mundial.
19 de janeiro de 2004.
Tradução de Odon Porto de Almeida